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architexts ISSN 1809-6298


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Este artigo reflete sobre o espaço urbano, considerando-o não uma entidade abstrata e isolada, mas um sistema complexo, envolvendo operações ao mesmo tempo lógicas, aritmético-algébricas e intuitivas.


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ABASCAL, Eunice; ABASCAL BILBAO, Carlos. Arquitetura e ciência. Razão, intuição e equidade em planos e projetos urbanos, ou a perequação. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 204.06, Vitruvius, maio 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.204/6562>.

A ação de planejar o território urbano e metropolitano, com base em planos e projetos urbanos, é hoje matéria interdisciplinar, ao envolver um conjunto de múltiplos fatores, forças e agentes sociais. Como representação de processos complexos, planos e projetos intermediam, em várias linguagens, raciocínios e diálogos – lógicos, algébricos, topológicos e estéticos, reunindo em seu âmbito razão e criação, rigor e intuição. Apresentam-se como um tecido de decisões especializadas, visando à transformação de um território.

Este artigo reflete sobre o espaço urbano, considerando-o não uma entidade abstrata e isolada, mas um sistema complexo, envolvendo operações ao mesmo tempo lógicas, aritmético-algébricas e intuitivas. A intuição é definida não como um processo obscuro, ou um a priori idealista, mas o resultado de uma complexa figuração, própria ao projeto de arquitetura e urbanismo, e que se torna inteligível em seu processo.

O projeto urbano, entendendo-o como representação de uma trama qualificada de conhecimentos, e resultante de um diálogo intertextual, é abordado como um complexo dispositivo, uma resposta ao contexto socioeconômico, político e cultural em que é produzido. Trata-se de uma lógica responsável, no sentido de dar resposta espacialmente a um conjunto de demandas, o que é fundamentado pelo conceito desenvolvido por Jean Piaget de espaço infralógico. Este teria a capacidade de reunir em uma só totalidade, num contínuo espacial, aspectos de diversas ordens – topológicos, algébricos e figurativos – integrando razão e intuição, sem que se estabeleça entre estas uma oposição fatal. A intuição espacial piagetiana, no entanto, resumiu-se à Geometria – a arquitetura, e o projeto compreendido como um complexo dispositivo de representação, não é abstração espacial – e nisto difere da topologia pura, da álgebra isolada, ou mera produção de imagens figurativas desconectadas das determinações socioterritoriais.

Para desenvolver o tema e apresentar a aplicação desse conceito, o exemplo do planejamento urbano contemporâneo em Portugal, em especial, dos planos municipais de ordenamento e planos de pormenor é destacado, como a escala que possibilita dirimir sobre os interesses públicos e particulares, de maneira direta e imediata (1). Tais planos consideram uma gama de interesses confluentes em uma área, a expressão infralógica expressa no dispositivo do projeto e desenho urbano, e vinculam sua implementação a instrumentos urbanísticos de compensação de direitos de populações afetadas e deveres público-privados em áreas de intervenção, denominados mecanismos perequativos.

A aplicação desses instrumentos aos planos municipais e de pormenor integrados a projeto urbano, definem um método de ponderação e sopesamento de direitos à terra urbana e deveres para todos os agentes diretamente afetados por intervenções urbanas, visando o equilíbrio de forças e conflitos. Projetos urbanos são compreendidos em sua complexa acepção, não apenas um desenho, mas um sistema de perequação compensatória, procedendo a uma “concreta e exaustiva definição da situação fundiária da área de intervenção” (2), ao classificar, qualificar e delimitar perímetros urbanos, e estabelecer uma estratégia para o seu desenvolvimento por meio de especificações qualitativas e quantitativas.

O plano, assim compreendido, é a racionalização de múltiplos meios e instrumentos para alcançar um fim, envolvendo para isso um conjunto de proposições diversas – lógicas, topológicas e métricas (algébricas), imagéticas e intuitivas. Trata-se de um instrumento de inovação e conformação ao mesmo tempo, não sendo o resultado de uma mera aplicação da lei. Consiste, nas palavras de Oliveira (3), na criação de um modelo espacial, para ações futuras eficazes e previsíveis para os atores envolvidos, criando-lhes segurança jurídica e a possibilidade de aplicação do direito público, por contemplar não somente uma superfície total, mas compensações entre as partes – terrenos, empreendimentos imobiliários, infraestruturas e equipamentos, espaços livres e patrimônio público, coadunando assim interesses públicos e privados.

A concepção e execução do plano e do projeto é atividade discricionária por natureza (4), ao revelar os interesses do poder público e demais atores, sobretudo em nível municipal, como os principais agentes da transformação induzida do território urbano. Conforme esta autora, o planejamento é uma forma exponencial do poder de decisão de seus atores e ação criativa, pois se enriquece em sua aplicação a situações novas. Em circunstâncias singulares de defesa dos interesses públicos e privados em uma porção do espaço urbano, planos e projetos assumem o papel de mediações de uma tensão criadora de direitos, face às suas condições concretas – espaciais, temporais e sociais –, valendo-se da aplicação de parâmetros e instrumentos urbanísticos para distribuição equitativa do produto da valorização do solo requalificado.

O plano cria direitos ao realizar uma ação “criadora de fins” (5), fixando e hierarquizando ações e aplicando padrões (indicadores e instrumentos urbanísticos) para alcançar objetivos, como “tarefa inovadora de configuração social” (6). Do ponto de vista dos raciocínios lógicos engendrados, o plano supera o condicionamento do princípio de exclusão, pois trata de um conjunto de objetivos.

Exige definir prioridades, hierarquias e instrumentos compensatórios de eventuais desigualdades produzidas pelo sobrevalor da terra urbana, cujo complexo de deveres e direitos acarretado valerá então como norma, um complexo valorativo que implica em alternativas, mudança de pressupostos, ponderação e juízos de prognose, o qual nasce da situação concreta.

Este tecido de proposições elabora uma fina arquitetura de decisões, juízos de probabilidade e cenários futuros, exigindo previsão, organização, decisão e gestão. Uma coordenação integradora de informações e demandas setoriais a princípio dispersas se faz então necessária, na área do plano-projeto. Estes assumem papel prescritivo e propositivo (7), complementando-se pela execução, e por mecanismos de ponderação dos múltiplos interesses que assistem às decisões, contrapartidas e compensações, que se expressam lógica, métrica e algebricamente. Planos e projetos se inserem em um domínio lógico especial – infralógico, que expressa categorias qualitativas e se articulam a quantidades.

Operações espaciais infralógicas: uma lógica espacial rigorosa e intuitiva

Amsterdam, Jorge Macchi, 2004
Foto divulgação [website do artista]

Há operações às quais Jean Piaget (8) denominou infralógicas, e que correspondem a uma lógica regida pelas relações espaço-temporais. Estas operações coordenariam conhecimentos intuitivos (símbolos e imagens), e também operações lógico-matemáticas, sendo rigorosas a despeito de reunirem diferentes linguagens.

Tais operações explicitariam não apenas os encaixes de classes da lógica formal (partes dentro de um todo), mas relações entre as partes de um todo. Por essa razão, substituem a “semelhança”, tratada pela lógica usual, por diferença e posição. Tratam do deslocamento e da localização – da noção topológica de vizinhança. Junto com a localização vem a medida, pois entre partes com uma posição no espaço se estabelecem métricas, diferentemente da noção abstrata de “número”. Quando traduzidas em linguagem lógica, operações infralógicas são enunciados hipotéticos, possibilidades realizáveis no contínuo (no espaço) e relativas às suas partes – o descontínuo, ou “discreto”, na terminologia matemática.

Piaget sustenta que as operações infralógicas, ao contrário do que se pode supor, não são inferiores às lógicas ou matemáticas, mas as reúnem, e contribuem para a noção de objeto e de contínuo. Estas operações são acompanhadas, em seu caminho figurativo, de representações intuitivas – imagens mentais ou representações figuradas (9). Não é uma intuição primária, no dizer de Poincaré (10), temos muitas espécies de intuição: do apelo aos sentimentos e à imaginação, até presidir a direção geral do pensamento. Sinalizando que há uma lógica e uma matemática próprias do espaço, envolvidas com formas de incorporação de conteúdos complexos. O infralógico constitui um sistema completo em si mesmo, e envolve a reunião de operações lógicas e aritméticas, e intuitivas.

As operações infralógicas, mesmo reunindo a figuração são rigorosas, apoiando-se em relações de diferença de ordem e deslocamento. Podem ser traduzidas por proposições hipotético-dedutivas-, mas se caracterizam por um domínio, uma totalidade, ou contínuo. Como um sistema, figuram “objetos” de espécies distintas. Não se dissociam do que se denominou “intuição”, pelo fato de (11) entre suas múltiplas figurações e operações, admitirem imagens mentais ou representações analógicas. Na concepção piagetiana do infralógico, sistemas espaciais e métricos admitem uma tradução, um correspondente de classes e algébrico, o que faz das relações lógico-matemáticas sistemas solidários da vizinhança e de ordem. Em outras palavras, nestes sistemas, várias textualidades comparecem para estabelecer formas de conhecimento – espaço, imagem e figuração analógica, e proposições lógico-matemáticas.

Conforme esse entendimento, não haveria contradição e sim solidariedade nos sistemas infralógicos, revelando-se formas de intertextualidade e dialogismo (12), entendendo essa operação como relações complementares de textos, com o objetivo de formar um sentido para o todo. O espaço não resulta de operações lógicas e matemáticas, mas as incorpora e admite o isomorfismo destas (13). Dessa maneira, Piaget (14) entende o espaço ou as operações espaciais como a solidariedade das “intuições geométricas”, acrescidas das relações lógico-matemáticas, e ainda, das figurações imagéticas, o que nos permite compreender o projeto de arquitetura e urbanismo como uma expressão dessas relações complexas.

Piaget & Inhelder (15) afirmam que as operações espaciais (infralógicas) quando representadas são ações interiorizadas – e que incorporam outras representações. Como possíveis, visam à intervenção nos objetos reais – o que é bastante próximo ao projeto no campo da Arquitetura e Urbanismo, e seu desdobramento em intervenção. Com base na reflexão de Piaget, planos e projetos urbanos podem ser compreendidos como proposições hipotéticas mediadoras de demandas socioterritoriais, e que envolvem a fina trama da lógica, da matemática e da intuição – que articula a criação, aplicação de parâmetros urbanísticos e contrapartidas compensatórias, bem como a discricionariedade de planos e projetos, e de direitos que se referem ao espaço.

São ao mesmo tempo determinação e criação, uma resposta qualitativa singular ao que o território, em sua composição complexa revela, e uma fonte de discricionariedade e criação. Piaget complementa a ideia de criação, pois as operações espaciais são reversíveis – como proposições hipotéticas, são possibilidades de intervenção – projeto. E, prossegue, as operações desse gênero admitem conexões funcionais entre representação e significado, transformando-se de modo contínuo e reversível, engendrando possibilidades de relações das partes com o todo (quantidade intensiva) e das partes com outras do mesmo conjunto, envolvendo diversos cenários de localização e medida (quantidade extensiva).

Para Piaget (16) o contínuo – o espaço – se define como simultaneidade das quantidades intensiva e extensiva, já que os espaços métricos – extensivos, evoluem da topologia. Apesar de esta conceituar o contínuo extensivo, pesquisas revelaram que a criança, por falta de amadurecimento operativo, extrai da topologia relações intuitivas e intensivas, definidas por agrupamentos de vizinhança e de posição. A intuição topológica do contínuo evolui em espaços projetivos e euclidianos – isto é, percepção de diferentes pontos de vista do espaço e conservação das distâncias – definem para a criança operações extensivas, ao conscientizar-se da métrica e de sua operação, alcançando progressivamente níveis maiores de abstração, até chegar ao hipotético-dedutivo. Piaget acata uma divisão clássica da matemática, separando o contínuo do descontínuo (discreto).

Essa intuição orienta a ação no espaço, pode estar sempre presente nas operações mais abstratas que a ele se referem, mas é ofuscada pelo caráter formal lógico-matemático do espaço métrico. A intuição faz parte da evolução das operações cognitivas desde a infância (17), mas é ofuscada ou subjugada, conforme o grau de abstração envolvido em áreas do conhecimento abstratas. Para Piaget, somente o geômetra conserva essa intuição, que aparece em segundo plano, mas que sempre estará presente.

Intuição tem sido objeto de debate e muitas vezes de obscuridade, mas na acepção piagetiana, é a percepção fundamental do espaço, enquanto noção de contínuo. A representação desta noção toma corpo com a produção de linguagens, capazes de transformar uma vaga definição de espaço em operação, pressentida no fazer do projeto de arquitetura e urbanismo. Essa trama de transcrições e intertextualidade, que se realiza entre espaço, álgebra e semântica foi teorizada pelos matemáticos e topólogos – ao enunciarem que todo contínuo (o “todo”) é passível de transcrição em suas partes constituintes, ao corresponder cada ponto de um espaço abstrato aos pontos de uma circunferência, criando uma relação comutativa entre o todo e as partes – estas representadas pelos números naturais, de zero em diante. A estas operações de transcrição, os matemáticos denominam análise harmônica (18), sinalizando o entrosamento da topologia e da álgebra, e diferenciando uma matemática do contínuo (todo) e outra matemática discreta (partes), sem deixar, no entanto, de sinalizar o diálogo de ambas.

Desde as primeiras décadas do século 20 foi proposta uma matemática sintética evidenciando o parentesco da álgebra e da topologia, e sistemas ao mesmo tempo produto de cálculo e de vizinhanças. Eckman (19) enunciou que existem “grupos topológicos comutativos”, como a teoria desenvolvida tais por Patryagen, sobre a circunferência, cujo resultado principal diz que “O resultado principal da teoria diz agora que os grupos contínuo e discreto que assim se correspondem determinam-se completamente um ao outro” (20).

Piaget contribuiu, no entanto, para combater toda forma de reducionismo de um campo de conhecimento a outro: “A lógica não se ‘aplica’, pois de fora à matemática: ela lhe é parcialmente incorporada e se acha assim generalizada em lógica matemática. Inversamente, a matemática não se reduz tampouco à lógica, mas a completa e modifica num processo de troca contínua” (21). E segue, essa assimilação integra “a quantificação lógica [que] reduz-se às relações da parte ao todo e de complementaridade (quantidade intensiva), enquanto as estruturas matemáticas supõem além disso uma relação quantitativa entre as próprias partes dos conjuntos (quantidade extensiva) (22).

Exigências de axiomatização, tanto da lógica quanto da matemática, no final do século 19 e início do século 20, sustentaram um projeto positivista de logicização da matemática e inversamente, matematização da lógica, obscurecendo debate da intuição como fundamento do conhecimento abstrato, o que fora proposto por Kant desde o século 18. Na década de 1930, Göedel (23), ao demonstrar o teorema da incompletude, sinalizou o equívoco do projeto positivista, pois nenhuma linguagem está submetida à outra, mas interagem, e no espaço alcançam singular forma de diálogo.

Procurando as relações intrínsecas de espaço e número, Eckmann (24) atenta para que embora raciocínios algébricos e geométricos sejam geralmente separados, identificando duas matemáticas – a do contínuo (espaço) e do descontínuo (o “discreto”), chama a atenção para o fato de que a um olhar mais atento, os dois modos de pensar são entrelaçados, e não é fácil traçar fronteira entre eles.

Espaço e número, sob essa perspectiva, são interdependentes; e ao contrário do que se pode supor, de que a matemática defina o espaço, Piaget e Inhelder (25) sustentam que o número nasce do espaço, e que na infância a formação de uma estrutura topológica antecede a quantidade, o que torna a topologia e sua evolução em espaços métricos um dos principais ramos da matemática, denominada “matemática do contínuo”. No entanto, embora tenha identificado uma matemática do contínuo e outra do descontínuo, Piaget nunca enunciou decisivamente uma relação delas, ao contrário alguns contemporâneos. Autores como Eckman (26) sustentaram que Topologia e Álgebra se entrelaçam, as relações de vizinhança e conectividade por caminhos podem se integrar à álgebra, o todo (matemática do contínuo) às partes (matemática discreta), sem disputas de primazia. O que conta são as operações possíveis, internalizadas como representação – que convêm a ideia de projeto – e que articulem espaço e número.

A relação entre Topologia e Álgebra hoje é bem conhecida, e produziu inúmeros trabalhos acadêmicos, alguns com títulos dramáticos tais como “Topologia y Álgebra: hasta la muerte los separe” (Marco António Castillo Rubi) (27). A maioria se fundamenta essa relação através da homotopia; se considerarmos caminhos em um espaço topológico “x” e colocarmos um ponto inicial “x0” em x o conjunto de caminhos formará um grupo com a operação * (qualquer operação, que transforma o caminho), tal grupo é dito fundamental de “x”. Sabendo-se que x0 não é um ponto fixo, serve para qualquer ponto do grupo.

Se escolhermos um x1 de outro grupo topológico y, e os unirmos por caminhos, de x 0 para x1 e de x1 para x 0, ou seja, sua função inversa, esses grupos topológicos x e y compartilham o mesmo grupo fundamental, sendo isomorfos e homeomorfos. O conceito de “grupo” é um conjunto de elementos associados a uma operação, que combina dois elementos do mesmo conjunto (operação binária) para formar um terceiro, desde conjunto. Para ser um grupo, é preciso satisfazer a algumas condições: ter propriedade associativa (x + y) + z = x + (y + z), ter elemento neutro, que na multiplicação corresponde a.x = x.1, o número 1 (um) e ao número 0 (zero) na soma, x = x + 0, e também elemento inverso, o caminho inverso, o que em topologia corresponde à homotopia por caminhos. E, finalmente, a última condição para que a topologia corresponda à álgebra, ou seja a * b = b * a, ou seja um grupo comutativo, denominado Aveliano. Colocar pontos x 0, x 1, e sua inversa x 1 e x 0, num período de tempo t, e os caminhos que se constituem em uma associação desses pontos é uma operação da matemática discreta, já que uma das definições de álgebra é ser uma parte da matemática que generaliza a aritmética, introduzindo variáveis que representam os números, e simplificando e resolvendo por meio de fórmulas problemas nos quais as grandezas são representadas por símbolos.

Esse fato indica que quantidade e qualidade andam juntas, e são as relações topológicas e por definição, qualitativas do contínuo que originam as relações métricas discretas das partes, sinalizando que as ações compensatórias presentes nos projetos urbanos são possíveis somente por que há espacialidade, estabelecendo assim uma estreita dependência de tais operações compensatórias expressas numericamente ao espaço produzido. Na ação projetual, ao nível da linguagem e da representação, se revelaria uma integração da topologia e da álgebra, como estrutura rigorosa em que o espaço e álgebra não se dissociam. O que significa que intuição e razão comparecem juntas, de forma que: “as duas maneiras de pensar têm funções diversas, e são a expressão dos dois caminhos tão diferentes, o do raciocínio e da intuição; completam-se e apoiam-se mutuamente da melhor maneira. Porém a diferença entre elas é apenas aparente; a sua síntese não só dá um todo fechado, mas a possibilidade da passagem de uma à outra” (28).

Projetos Urbanos: um complexo formado por espaço e sociedade: o espaço como precursor e condição da objetividade

Monoblock, Jorge Macchi, 2003
Foto divulgação [website do artista]

Os Projetos Urbanos são dispositivos de representação (linguagem), que envolvem na prática um número expressivo de atores e agentes, fontes e recursos disponíveis para materializar espacialmente um amplo conjunto de determinações e objetivos. Pressupõem, em sua constituição, um programa de intervenções que incide em um perímetro definido (uma quantidade de espaço com bordas fechadas – um contínuo e seus limites. Podem ser descritos como projetos complexos por superar uma ação setorial e visar promover, no âmbito da sociedade capitalista, o desenvolvimento local com equidade – de ofertas e oportunidades.

A integração de soluções de natureza econômica, social e material, bem como as várias soluções propostas para a arquitetura, espaços públicos, infraestrutura, habitação e equipamentos públicos nos projetos urbanos, conferem-lhes um caráter de articuladores de uma qualidade intensiva e extensiva – partes e todo. É a quantidade intensiva que confere um significado às partes dentro de um conjunto; por conseguinte, cria-lhe uma identidade – e esse conjunto formado de posições e localização é um conjunto métrico.

A este todo é possível agregar valores e significados; por exemplo, a cada porção representada por parcelas de solo e arquitetura, em uma área de intervenção, poderão ser atribuídos valores financeiros, determinadas contrapartidas e aplicados indicadores que definirão volumetrias genéricas, a partir de instrumentos e parâmetros urbanísticos – Lei de Zoneamento e exceções a esta, como por exemplo, o potencial construtivo negociado. Este esquema volumétrico define genericamente as partes no todo, e ainda não são projeto – pois suas qualidades, sua singularidade, serão especificadas com a criação dos arquitetos.

O projeto urbano, assim definido, fundamenta-se em uma complexa estrutura – lógica, topológica e algébrica rigorosas, espacializando direitos compensatórios e contrapartidas incidentes na área ou perímetro de intervenção. Esta estrutura espacial da totalidade – o contínuo métrico, será subdividido, na ação projetual, pela definição de suas arquiteturas, espaços livres e caminhos. O arquiteto, ao criar caminhos e unir suas partes, divide o contínuo, sem deixar que este desapareça nessa operação, criando uma álgebra, inerente e que acompanha o detalhamento do projeto.

Os valores ou contrapartidas que serão pagos e cobrados do conjunto dos atores – empreendedores e população afetada, devem ser gerenciados pelo poder público municipal, cuja operação define a ação gerencial do Estado como mentor e aplicador da política urbana e de seus principais marcos regulatórios, no caso brasileiro, o Plano Diretor e leis específicas que regem as áreas de intervenção induzida. Quaisquer sejam os procedimentos de gestão de contrapartidas, estes são indissociáveis da estrutura lógica, topológica e algébrica que ora se apresenta, na forma de instrumentos, índices e parâmetros urbanísticos vigentes. Assumem expressões distintas conforme o processo adotado no país de origem, gerando índices e cálculos diferenciados, como na perequação portuguesa, e regras de exceção aos coeficientes previstos na lei de uso, parcelamento e ordenamento do solo, expressando-se como solo criado.

Em uma lógica espacial, a aplicação desses parâmetros gera valores financeiros; como por exemplo, a negociação de potencial adicional construtivo, gerando solo criado. Estes parâmetros, indicadores e valores estão vinculados a cada uma das parcelas em uma área, expressando-se como empreendimentos diversos, e definindo as partes do todo – e os sistema de vizinhanças. Quando se aplica a cada parte (terreno e empreendimento) valores financeiros, ao multiplicar um valor x por metro quadrado, seus vizinhos compartilham os mesmos indicadores, ocorre um homeomorfismo algébrico, uma correspondência de grupos com a mesma operação. Sua aplicação define uma álgebra ao projeto, uma estrutura condicionante da expressão espacial total, determinando as operações, neste caso financeiras, que conferem uma relação entre espaço e economia, facilitando o pagamento de contrapartidas, já que custos e lucros nessa área admitem um valor financeiro.

No processo de correspondência se verifica o contato do espaço infralógico e a álgebra, representada pelos valores negociados em contrapartidas, incluindo a ação de outros agentes, além do planejador e legislador, como bancos, empreiteiras e agentes públicos. No planejamento, esse valor financeiro é dependente do espaço, e é engendrado por uma lógica capitalista e desigual, no que toca à equidade de direitos nas áreas em intervenção. A política urbana deve agir para que esses valores produzidos sejam reinvestidos na área ou na cidade; no caso português esse é objetivo, pois o princípio adotado é o de contemplar a todos os que tem direitos na área-alvo, estabelecendo-se uma clara álgebra para tais operações de contrapartidas – a perequação.

Como representação, o projeto urbano é uma ação intertextual, que articula linguagens e relações algébricas, topológicas e lógicas indissociáveis, em que qualidade e quantidade caminham juntas, definindo sua complexa condição. Tal espaço de integração é o que Piaget definiu como infralógico, incluindo a gestão de indicadores econômico-financeiros, um dos fatores hipotético-dedutivos trabalhados em projetos urbanos.

Tal complexidade vai além de uma relação causal entre projeto, topologia e álgebra, pois o projeto, ação singular de desenho é uma criação, uma concepção que apesar do que está rigorosamente definido e condicionado, é capaz de criar uma forma específica de relação do espaço público e privado, que por sua condição concreta ultrapassa o que é definido pela aplicação de índices e parâmetros urbanísticos.

Assim, Nuno Portas (29) viu nos Projetos Urbanos um processo de concepção indissociável de uma quantidade, representada pelos aspectos de viabilidade econômica. Assim, os Projetos Urbanos se definem como uma complexa articulação de interesses concretos afeitos à população residente e trabalhadora na área de intervenção, que precisam ser preservados por ações compensatórias, a partir da aplicação de instrumentos urbanísticos talhados para esse fim. Tais mecanismos visam à manutenção da população afetada na mesma área, a despeito da transformação das relações espaciais, dos espaços livres, infraestruturas e arquitetura.

Apesar dessa base rigorosa, como concepção e criação, os projetos urbanos incluem aspectos discricionários, alcançados na criação do desenho urbano e da arquitetura, e na inexorável questão de como os direitos de seus atores são criados ou preservados, mesmo diante de suas pré-condições e conformações urbanísticas. Borja (30) salienta a vinculação, nos Projetos Urbanos, de economia e sociedade a um desenho ou esquema territorial, e outros autores tais como Hall (31) salientaram sua capacidade de condicionar, em suas áreas objeto, a ação do mercado imobiliário pela gestão pública, com o objetivo de mitigar desequilíbrios e inequidades socioterritoriais e ambientais. Esse balanceamento de interesses é solidário a uma estrutura ou sistema, que abrange gestão e política urbana, investimentos, contrapartidas pagas a proprietários, moradores, empreendedores imobiliários, fazendo dos Projetos Urbanos não apenas forma, mas desenho informado, vinculado ao desenvolvimento induzido do território.

Essas definições, encontradas no longo percurso de definição da noção de projeto urbano aproxima-o de uma atividade de representação do contínuo métrico definido por seus limites (perímetro), no interior do qual haverá a operação ordenada de partes, acompanhada do conjunto de indicadores urbanísticos incidentes na área de intervenção. Como projetos que definem índices e parâmetros de produção de potencial adicional de construção e compensação na forma de solo criado, os Projetos Urbanos são representações complexas que integram espacialidade, métricas e atributos de qualidade.

O projeto, e em especial o Projeto Urbano, passa sob essa ótica à condição de um dispositivo de linguagem, capaz de representar o espaço-tempo, a partir de seu fundamento operacional, e singular contingência de criação.

Plano e Projeto Urbano: a criação do direito e os métodos perequativos nos Planos de Pormenor em Portugal

Tour, Jorge Macchi, 2010
Foto divulgação [website do artista]

As decisões da política urbana, e a criação de direitos, mediados por planos e projetos urbanos, resultam de condições espaço-temporais, e do processo que unifica espaço e sociedade. Tal solidariedade pode ser exemplificada pelos Planos de Pormenor, aplicados em Portugal. Estes reúnem instrumentos como a perequação, para a justa distribuição de vantagens para a população afetada e transformação de peças urbanas.

O instrumento de perequação, aplicado em planos de pormenor portugueses permite compreender um método de distribuição equitativa de valores financeiros compensatórios no espaço criado, e seu ulterior desdobramento em espaços livres, infraestrutura e construções. Define-se como um conjunto de medidas compensatórias com geração de cálculos e indicadores, propostos para que sejam estipuladas contrapartidas, tanto entre os diversos proprietários de imóveis e terrenos, e o poder público – visando repartir da forma mais justa os benefícios e encargos que derivam do plano (32).

Em Portugal, desde os anos de 1990 foram realizados projetos urbanos de iniciativa pública para a recuperação de áreas urbanas de especial importância estratégica ou patrimonial (33). A despeito de projetos urbanos de gestão pública, a maior parte das urbanizações surgiram pela mão da iniciativa privada, e em meados dos anos 1980 (depois do 25 de Abril), com o Decreto-lei 152 de 1982, surgiram as ADUPs – Áreas de Desenvolvimento Urbano Prioritário. Nos anos 1990 foram então regulamentados Planos Diretores Municipais para a maior parte dos municípios. Em sua maioria, esses Planos definiam tão somente zoneamentos, e índices e parâmetros insuficientes para articular a iniciativa privada e a ação dos municípios. Ainda nos anos 1990, foram regulamentados os Planos de Pormenor, definindo as escalas de intervenção no âmbito do município. Tais planos admitiram não somente a aplicação da lei de zoneamento, mas o reparcelamento gerando nova repartição fundiária, agrupando terrenos, dividindo-os de outra forma, e cedendo ao município parcelas destinadas a espaços públicos e equipamentos.

Novos instrumentos de gestão urbanística surgiram então em finais da década de 1990, (Decreto-lei 380 de 1999), que em seu capítulo V, determinou formas de execução, compensação e indenização, dirimindo direitos e deveres dos proprietários e usuários, a fim de contribuírem para o financiamento de obras públicas e equipamentos, cabendo uma distribuição perequativa de benefícios e encargos (34). Operações urbanísticas passaram a ser realizadas em “unidades de execução” (áreas de intervenção), delimitadas para que nelas de realizasse uma repartição de benefícios e encargos – relacionando as partes entre si, estas e o todo, e criando a repartição discreta dessa superfície – o “contínuo”.

Nestas unidades ou perímetros, aplicam-se o processo de justa repartição de benefícios e encargos, em áreas abrangidas por planos de pormenor sobre os quais incide discussão pública. Em todas as unidades, é preciso determinar índices perequativos, tais como “aproveitamentos-padrão” e “encargos-padrão” (35). Para isso, definem-se índices tais como um “benefício-padrão” – por m2– calculando uma média ou uma expectativa construtiva de cada propriedade – as partes do “todo” representado pela área de intervenção – a sua “álgebra”. Para calcular é preciso determinar uma fórmula para avaliar as potencialidades construtivas das propriedades antes e depois da intervenção, em função da valorização ocasionada pela aplicação do plano. A legislação portuguesa recomenda que para evitar cálculos complexos, todas as propriedades tenham um mesmo aproveitamento médio, definido em m2de área bruta de construção por m2de terreno, e em se tratando de Plano de Pormenor articulado a um Projeto Urbano, o valor da parcela resulte também dos usos previstos e dimensão do logradouro.

A complexidade técnica e o poder discricionário do planejamento resultantes do Decreto-Lei 380 de 1999 e dos mecanismos perequativos são possíveis com instrumentos de justa repartição de vantagens e ônus públicos e privados em uma área objeto de transformação induzida. A perequação permite ponderar e compensar a população afetada, visando à equidade de oportunidades e à defesa do interesse público. Podem ser aplicados sistemas de compensação sob formas distintas de associação dos proprietários: entre si realizam a perequação e cedem ao município um valor (na forma de taxas); pode ser determinado ainda um sistema de cooperação de gestão municipal, aberto aos proprietários e interessados, que ficarão sujeitos à expropriação caso não concordem com o Plano; ou sistemas de imposição administrativa, em que a tarefa de urbanizar é do município, concessionando a urbanização e os envolvidos poderão concordar ou não, sendo então indenizados por expropriação.

As compensações serão realizadas na área objeto de intervenção, na forma de cessão de terreno (cedências em espécie), diretamente entre proprietários e associações de proprietários, ou entre estes e a municipalidade, compensações em numerário ou índices de potencial adicional construtivo – solo criado. Deve-se notar que no método perequativo, a compensação poderá ser feita também com indenizações expropriatórias – quando o interessado não aderir à realização do plano; cessão de potencial adicional de construção e solo criado quando da troca de terrenos, cujo resultado poderá ser materializado no mesmo local ou parcela da propriedade, ou em outra parcela, na mesma área, realizando-se cessão compensatória em metros quadrados. Encargos serão cobrados pelo poder público na forma de taxas – pagas em troca de benefícios aos particulares. A complexidade deste instrumento mostra claramente o contato entre as proposições de uma lógica resultante da regulação e dos embates da participação no espaço, e de sua álgebra.

O isomorfismo das linguagens expresso na representação do Projeto Urbano reside no fato de que todos os atores envolvidos são consultados e são discutidas as formas de compensação de seus direitos – a sua álgebra, mediante as especificidades do plano e do Projeto correlato. As necessidades públicas são atendidas por um processo de reparcelamento que gera novas localizações das propriedades, obtendo espaços livres para criar vias, parques públicos, equipamentos sociais, o que acarreta na permuta da localização e na compensação perequativa.

O procedimento de ponderação – sopesamento dos direitos e deveres dos implicados, usado na perequação, implica distinguir, no âmbito jurídico, a diferença entre este e a lógica de subsunção, utilizada no Direito. Subsumir implica incluir alguma coisa em algo mais amplo. Como definição jurídica, “[...] configura-se a subsunção quando o caso concreto se enquadra à norma legal em abstrato” (36). Assim, ações e situações de fatos se conformam às regras da lei – submetem-se à proibição ou permissão, como por exemplo, na aplicação da lei de zoneamento.

Conforme Oliveira (37), a regulação social surge cada vez mais como estrutura principiológica, e menos como norma ou regra de subsunção. No planejamento urbano, a diferença entre princípios e regras é crucial, e ameniza o caráter meramente prescritivo das leis. Intervenções urbanas de perequação são geridas pela integração da qualidade à quantidade – produzem espaço à luz de compensações, no âmbito dos planos de pormenor e de execução. Tais mecanismos perequativos assumem o papel de quantificadores a gerir essas intervenções, e definem um meio para o controle dos valores gerados.

Enquanto as normas impõem, proíbem ou permitem, os princípios determinam diferentes graus para o seu cumprimento; princípios valoram e ponderam questões, buscando compromissos e consensos. Regras são antinômicas – tendem a eliminar conflitos; princípios convivem, não eliminam os conflitos, mas hierarquizam-nos ponderando bens e valores por eles expressos. Pela lógica ponderativa, todos os interesses representados pela ação de particulares em uma porção do território devem ser contemplados, e a solução legal para estes leva à coexistência de valores e bens geridos para compensar diferenças e pesos distintos de direitos. A aplicação de princípios significa que estes estão vinculados ao objetivo prático a atingir: se este é a oferta equitativa de valores e benefícios realizados em um território, caracterizam políticas (38), fixando metas, propósitos econômicos, expressos em ordenamento urbanístico, meios para alcançar fins mais amplos, como a equidade, a liberdade e a dignidade humanas.

Reunindo este debate ao anterior para a quantidade intensiva e extensiva, as regras de subsunção representam uma quantificação lógica reducionista, pois envolvem relações de parte ao todo – quantidade intensiva, já que regras prescritivas não se comunicam e não são relacionáveis. A ponderação, baseando-se nos princípios expressam uma quantidade extensiva, pois engendram relações entre as próprias partes e entre estas e o todo, – os princípios se comunicam e não se anulam. Sua relação se dá pela técnica do sopesamento – ou seja, cada princípio determina um peso, maior ou menor, como no caso das contrapartidas que podem ser pagas aos particulares diante de diferentes valores da terra e de suas propriedades, e vice-versa.

Planos e projetos são instrumentos ponderativos de gestão de contrapartidas aos usuários e moradores das áreas de intervenção. Admitem um peso relativo de “princípios, bens e valores e interesses contrapostos” (39); pois são um caso concreto, que permite “a realização simultânea [...] através de concessões recíprocas [...] sacrificando o mínimo de cada um” (40). Podem ser conceituados como formas de ordenamento urbanístico para “encontrar o direito, para resolver casos de tensão entre bens juridicamente protegidos” (41).

Questões fundamentais ao planejamento do território urbano envolvem o papel do Estado, e a função pública por este desempenhada na transformação das cidades, como agente implementador do planejamento. Neste, o método da ponderação assume (42) o maior destaque, sendo para superar conflitos de interesse, gerados pelo “uso do território, sendo no seu seio que deve ser encontrada a solução [...] pelo método da ponderação” (43). O plano seria o locus por excelência processo de ponderação.

Como representação, o projeto urbano, no marco da sociedade capitalista, pode ser abordado como instância mediadora e mitigadora de conflitos e desigualdades expressos no território urbano, visando à equidade socioterritorial. Sob essa perspectiva, um projeto urbano é a requalificação de uma área de intervenção, como expressão qualitativa com base em uma estrutura compensatória (quantitativa) de direitos e contrapartidas que incidem sobre os particulares, ou população afetada, relativas à valorização da terra urbana, à propriedade e direitos fundiários.

É possível dizer que o sistema perequativo é um conjunto de operações infralógicas; consistem em figurações muito distintas da noção genérica de classe ou número; como sistemas complexos de medida e sopesamento (ponderação), definem o espaço como tradução das noções “fundamentais de vizinhança e de ordem espacial” (44). Esse domínio infralógico e ponderativo, ao mesmo tempo, é rigoroso, distinto das relações formais da lógica pura e da aritmética; pode-se dizer que é formador da noção de objeto e não apenas daquela de “coleção ou conjunto de objetos”, própria à lógica formal.

O projeto define um espaço que engloba um amplo esquema, “um único bloco” (45), um contínuo dos elementos que o definem. Uma classe lógica, no entanto, define uma reunião descontínua de peças unidas apenas por semelhança. Planos e projetos implicam na representação de um todo e de suas partes, como conjunto reunindo a quantidade “intensiva” e a comparação e diferenciação destas partes – quantidade “extensiva”. Incluem também a subsunção (normas) que também orientam o planejamento. Sem isso não se pode falar em processo ponderativo das partes e do todo. Por exemplo, há que levar-se em conta as normas relativas à preservação do patrimônio histórico e cultural, previstas no Plano Diretor e em Leis específicas, presentes no âmbito de Planos e Projetos Urbanos (quantidade intensiva), mas estas normativas têm que ser contempladas em âmbitos maiores, nos perímetros dos Projetos Urbanos, definindo partes precisas e suas vizinhanças métricas (quantidade extensiva) – nesse caso, as arquiteturas preservadas e de interesse histórico e cultural. Nesse exemplo é possível observar as relações lógicas, topológicas e algébricas juntas.

Os Planos de Pormenor portugueses e suas unidades de execução sinalizam um desenho urbano independente das parcelas originais, rompem a divisão fundiária original com o método perequativo, o que os torna intervenções de conjunto. Isso refaz o todo e as partes, pois propõe que proprietários e envolvidos se associem, mediados por contratos. Programas de execução e planos de financiamento acompanham os Planos de Pormenor, obrigando a soluções contratuais para todos (46). Tais Planos permitem que no interior de suas unidades de execução (quantidade intensiva), suas partes – os empreendimentos imobiliários, as vias, as área e espaços livres se relacionem e se especifiquem, e expressem também um valor financeiro, uma volumetria e solo criado (quantidade extensiva).

Considerações finais

Liliput, detalhe, Jorge Macchi, 2007
Foto divulgação [website do artista]

À guisa de uma síntese, o espaço e sua manifestação como espaço urbano não se constituem em uma entidade isolada, mas num sistema, completo em si mesmo, envolvendo a reunião de operações lógicas, aritmético-algébricas e intuitivas. As operações denominadas infralógicas foram experimentalmente estudadas e comprovadas por Piaget, e reúnem a elaboração genética da figuração e das relações de diferença, ordem e deslocamento.

As pesquisas piagetianas, no entanto, identificaram a intuição com a geometria. No entanto, os arquitetos não projetam tão somente uma geometria abstrata, mas criam espaços complexos, nos quais se verifica a integração, pela ação pragmática de elaborar a representação, entre topologia e álgebra, bem como um amplo espectro de determinações sociais da figuração. Esta é uma complexa estrutura, como criar um cristal que elabora faces diversas de uma mesma totalidade, na forma de relações entre as partes e partes-todo. Esta intuição não é um a priori idealista, mas o resultado da elaboração de uma figuração complexa, que aparece em seu processo.

Todas estas operações, que envolvem razão e intuição, são rigorosas, topológicas, lógicas, algébricas e também figurativas. Trata-se de um sistema que encerra proposições hipotético-dedutivas, construindo um domínio, uma totalidade, ou um contínuo. Aproximam-se, por essas características, da ideia de projeto complexo, compreendido como uma ação hipotética, interiorizada e expressa pela representação, que reúne determinações diversas, e operações rigorosas. Estas noções aqui desenvolvidas, criam uma categoria para explicitar uma ciência da arquitetura e do urbanismo, fundamentada na ciência da linguagem e do espaço como um contínuo processo de elaboração. Não é a ciência dos geômetras, mas a criação do espaço, que envolve fronteiras claras com a criação do direito, da economia e da economia política, como gestão pública.

Planos de Pormenor e respectivos Projetos Urbanos como mediações sociais e formas para alcançar equidade fundamentados em uma política urbana, admitem uma regulação ponderativa – princípios de sopesamento, capazes de contemplar demandas múltiplas. Esta síntese de espaço e criação de direito, mediada por instrumentos algébricos – de contrapartidas – tais como os mecanismos perequativos no direito urbanístico em Portugal, são uma abordagem empírica para demonstrar estas categorias teóricas apresentadas neste artigo.

A gestão das demandas sociais que provêm da participação coletiva no processo de transformação induzida da cidade passa pela necessária criação do espaço com a aplicação desses instrumentos, que permitem ponderar – sopesar a distribuição de valores compensatórios, tais como os perequativos, somente possíveis com operações intertextuais entre topologia, álgebra, lógica e a especial elaboração figurativa e intuitiva que são próprias à Arquitetura e ao projeto. A experiência portuguesa é um exemplo de interesse. Os Planos de Pormenor e Projetos Urbanos sob essa ótica deixam a situação de conforto estabilizada tão somente como um meio para o planejamento racional do território, e alcançam uma definição integradora de quantidade e qualidade, parte-todo e relações de parte a parte. Têm caráter global, dirimem sobre os múltiplos e conflitivos interesses confluentes em uma área, reunindo operações perequativas de localização e valor econômico e financeiro.

O caso português revela uma intenção de exemplaridade, de criação de direito e equidade, entre espaço, direito e ao mesmo tempo, distribuição e criação de recursos e processos econômico-financeiros. Esta é uma condição quase ideal, mas revela uma metodologia de análise de situações empíricas nas quais a justa distribuição de recursos gerados em uma porção de espaço pelo planejador, nem sempre alcança tal condição. Daí as diferenças possíveis entre uma boa ou má gestão da coisa pública envolvida com a produção e a criação do espaço urbano, e dos recursos por ele gerados.

O diálogo entre múltiplos textos e determinações criador do espaço urbano se revela a própria essência da política urbana, eminentemente fundamentada pela intencionalidade do bem-estar da sociedade. Mesmo a discricionariedade e a intuição envolvidos na ação de projetar estão envolvidos no âmbito de uma ciência com seu rigor próprio – e por esta razão, devem mediar a produção do espaço urbano.

Somente dessa forma, pode-se embasar um repúdio a toda forma de captura dos interesses públicos por tramas de agentes isolados, e assim expressar a vocação coletiva do espaço urbano e das políticas públicas que o conformam.

notas

1
OLIVEIRA, Fernanda Paula. A discricionariedade de planeamento urbanístico municipal na dogmática geral da discricionariedade administrativa. Coimbra, Almedina, 2011.

2
Idem, ibidem, p. 32.

3
Idem, ibidem.

4
Op. cit.

5
OLIVEIRA, Fernanda Paula. Op. cit., p. 116.

6 Idem, ibidem, p. 116.

7 Idem, ibidem.

8 PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel (1981). A representação do espaço na criança. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.

9
Idem, ibidem.

10
POINCARÉ, Henri. Apud PIAGET, Jean. Ensaio de lógica operatória. 2ª. Edição. São Paulo, Globo/Edusp, 1976.

11
PIAGET, Jean. Ensaio de lógica operatória (op. cit.).

12
BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 2003.

13
ALMEIDA, Rosângela Doin (org.). Cartografia escolar. São Paulo, Contexto, 2014.

14
Idem, ibidem.

15
PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel. A representação do espaço na criança. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.

16
PIAGET, Jean. Ensaio de lógica operatória (op. cit.).

17
Idem, ibidem.

18
ECKMAN, Beno. Gazeta de matemática. Lisboa, ago. 1946. Lição inaugural proferida em 22 de Maio de 1943 na Escola Politécnica Federal de Zurich. Disponível em: <http://gazeta.spm.pt/getArtigo?gid=1140>.

19
Idem, ibidem, p. 7.

20
ECKMAN, Beno. Op. cit., p. 10.

21
PIAGET, Jean. Ensaio de lógica operatória (op. cit.), p. 19.

22
Idem, ibidem, p. 19.

23
Na década de 1930, Kurt Göedel demonstrou os Teoremas da Incompletude: qualquer teoria capaz de expressar a aritmética elementar é sequer consistente ou completa. Para qualquer teoria formal consistente que prove certa verdade da aritmética básica, há sempre uma afirmação aritmética verdadeira, mas não demonstrável. <https://www.ime.usp.br/~bianconi/mat359/incompletude.pdf>.

24
ECKMAN, Beno. Op. cit.

25
PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel. A representação do espaço na criança. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993  1ª. Edição – 1981.

26
ECKMAN, Beno. Op. cit.

27
RUBÍ, Marco Antonio Castillo. Topología y álgebra: hasta que la muerte las separe. Ciencia Ergo Sum, v. 11, n. 1, 2004. Disponível em: http://cienciaergosum.uaemex.mx/index.php/ergosum/article/view/3713. Acessado em 31 de março de 2017.

28
ECKMAN, Beno. Op. cit.

29
PORTAS, Nuno. L’emergenza del progetto urbano. Revista Urbanística, Roma, n. 110, jun. 1998, p. 1-6.

30
BORJA, Jordì. La ciudad conquistada. Madrid. Alianza Editorial, 2003.

31
HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva, 1998.

32
CARVALHO, Jorge; OLIVEIRA, Fernanda Paula de. Perequação, taxas e cedências. Administração urbanística em Portugal. Coimbra, Almedina, 2008.

33
Idem, ibidem.

34
Idem, ibidem.

35
Op. cit., p. 28.

36
SANTANA, Raquel Santos de. A dignidade da pessoa humana como princípio absoluto. In: DIREITONET, 2010. Disponível em:  <www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5787/A-dignidade-da-pessoa-humana-como-principio-absoluto>.

37
OLIVEIRA, Fernanda Paula. Op. cit.

38
Atentar ao sentido de policies. Cf. OLIVEIRA, Fernanda Paula. Op. cit.

39
Idem, ibidem, p. 141.

40
Idem, ibidem, p. 141.

41
Idem, ibidem, p. 141.

42
Idem, ibidem.

43
Idem, ibidem, p. 151.

44
Idem, ibidem, p. 471.

45
PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel. Op. cit., p. 477.

46
OLIVEIRA, Fernanda Paula. Op. cit.

sobre os autores

Eunice Helena Sguizzardi Abascal é Arquiteta e Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie. Doutora em Arquitetura e Urbanismo.

Carlos Abascal Bilbao é Arquiteto e Urbanista. Mestre em Ciências Sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política FESP, São Paulo.

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