Durante a ocupação pela Alemanha nazista da cidade francesa de Saint Nazaire foi construído uma base de submarinos; trata-se de um complexo militar de proporções monstruosas que hoje domina a paisagem urbana. A construção extremamente resistente inviabilizou a sua demolição. A solução encontrada foi a sua reabilitação e reutilização, numa tentativa de salvaguardar a história e tornar visíveis as aberrações da indústria de guerra. Ela é um símbolo da cultura militar e da ocupação nazista de Saint Nazaire, que aos poucos está sendo transformada em um novo espaço público. Usado hoje como museu, com cafés e bares se tornou um dos atrativos da cidade.
Neste trabalho o termo bunker é usado no sentido amplo para definir as edificações de concreto armado, algumas subterrâneas, que servem para abrigar soldados e armas (uso militar) ou para a proteção da população (uso civil). Embora com diferentes aspectos físicos, os efeitos destes dois tipos de bunkers na paisagem urbana são os mesmos. Este trabalho não tem a pretensão de fazer uma resenha histórica nem discursar sobre a ideologia nazista, mas sim sob o ponto de vista urbanístico tentar compreender o que significa para uma cidade conviver com estruturas gigantescas que hoje, além de obsoletas e supérfluas (desde o fim da guerra nunca tiveram um uso permanente), têm uma conotação histórica negativa.
O regime nazista e a construção dos bunkers
O regime nazista tinha planos para conquistar à força a Europa e o mundo. A sua ideologia se baseava na onipotência do aparelho estatal e em uma política racista, antissemita e antimarxista (1), e também na exaltação à forca e à violência. Com doutrina onipresente de Blut und Boden (literalmente, “sangue e solo”), justificava-se a expulsão e eliminação de povos não-germânicos, consideradas raças inferiores, inicialmente do território alemão e em seguida dos países ocupados. Essa política segregacionista e excludente estendeu-se contra todos os assim considerados “degenerados", grupos antissociais e adversários políticos, e culminou no homicídio sistemático, conhecido como Holocausto (2).
Com a ocupação de outros países tornava também necessário defendê-los. Um extenso plano de defesa, como o regime nazista comumente se expressava (3), previa uma vasta rede de fábricas, de depósitos de materiais bélicos e de bunkers; construções que deveriam resistir às bombas até então conhecidas. Muitas destas construções são subterrâneas e pouco conhecidas, enquanto outras foram construídas em áreas residenciais, para servir de abrigo à população ou camufladas para passarem desapercebidas.
Para a proteção das zonas costeiras da Noruega, Dinamarca, Holanda, Bélgica e França ocupadas foi construído a partir de 1940 um gigantesco colar de bunkers, casamatas e fortificações, transformando a costa ocupada da Europa continental em uma verdadeira fortaleza. Esses bunkers posicionados estrategicamente ao longo de quase 2.700 quilômetros entre o Mar do Norte e o Golfo de Biscaia, no Atlântico, representam na realidade somente uma pequena peça do que seria como “meta final" um novo Muro Ocidental, que do Oceano Ártico até o Mediterrâneo deveria impedir quaisquer operações de desembarque dos Aliados. Para a execução deste projeto, chamado de Atlantikwall (literalmente, “Muralha do Atlântico”), foi criada em 1940 a Organisation Todt (4), uma organização militar dirigida pelo engenheiro Fritz Todt, Ministro de Armamentos e Munições (Reichminister für Bewaffnung und Munition). A zona do Canal da Mancha e a costa atlântica francesa, pela proximidade com a Grã-Bretanha – o inimigo mor do regime nazista, eram consideradas de importância estratégica (5). Aqui a Organisation Todt começou em 1940 a posicionar armamentos pesados, protegidos por muros de concreto. Esta porção da costa recebeu 11.000 dos 15.000 bunkers construídos (6). É também nesta porção da costa francesa que os alemães constroem sete das 12 bases de submarinos; nos portos das cidades de Brest, Lorient, Saint Nazaire, La Pallice e Bordeaux, sendo as cinco outras instaladas na Alemanha e Noruega (7). Para essas construções o regime nazista valeu-se sistematicamente do trabalho braçal de milhões de prisioneiros; só na costa francesa o número chegou a mais de 290.000 trabalhadores forçados (8).
Nem todos os bunkers são hoje plenamente conhecidos. Por se tratar de obras militares, muitas vezes secretas, poucos tinham acesso a informações. Muitos documentos, ou foram intencionalmente destruídos ou foram perdidos com a guerra. Por outro lado, o regime nazista, para alimentar a sua máquina da propaganda, mas também para satisfazer Hitler, como tantos outros atos (9), documentou minuciosamente a construção dos bunkers. Muitas das fotos tiradas na época da sua construção estão conservadas em museus europeus. A revista alemã Der Spiegel disponibiliza em seu site uma série de 26 impressionantes imagens. Todo esse esforço militar, foi porém em vão: os nazistas perderam sucessivamente as batalhas navais, e algumas bases, como Lorient, foram pesadamente bombardeadas e se tornaram inutilizáveis (10). Quando os Aliados desembarcaram na Normandia, em 6 de junho de 1944, o Atlantikwall, ainda incompleto, não protegeu o Estado Nazista de ser aniquilado (11).
Apesar dos maciços bombardeamentos, os Aliados não conseguiram destruir muitas destas monumentais construções. O que resta são incontáveis ruínas, muitas ainda intactas, que dominam o panorama de alguns portos, como Saint Nazaire e Bordéus. Enquanto poucos bunkers, reutilizados se tornaram atrações turísticas, inúmeros caíram no esquecimento. Um aspeto comum é que muitas cidades buscam hoje ideias e alternativas para tratar essas monstruosidades de concreto, reminiscências da ocupação nazista. Essa realidade não desafia somente cidades fora da Alemanha. O país também viu a construção de bunkers em seu território, seja como abrigos antiaéreos ou como indústrias bélicas camufladas, principalmente em áreas centrais e densamente habitadas. Desde 1939 a cidade de Hannover, por exemplo, presenciou a construção de 47 dos 53 bunkers planejados, sendo que hoje 39 ainda existem, com um destino bastante incerto, já que eles, com o desenvolvimento de novos armamentos não mais oferecem proteção. A demolição destes bunkers é bastante onerosa, como prova a demolição de um abrigo subterrâneo de 1942 no centro da cidade. Com paredes de 1,8m de espessura, a demolição exigiu várias implosões, ocasiões em que por motivos de segurança os prédios vizinhos tiveram que ser evacuados. A demolição custou aos cofres públicos 1,5 milhão de euros e foram necessários mais de 3 meses (12). Em virtude dessas dificuldades, alguns bunkers foram reciclados para outros fins, mas a grande maioria permanece sem uso. Como o bunker de Hannover se encontrava a 2m abaixo da superfície, a área nunca pode ser aproveitada, e serviu por muitos anos como um mero estacionamento. O jornal local dispõe de uma série de imagens do bunker e da sua demolição (13). Com a retirada do bunker está sendo construído um complexo residencial e comercial de caráter social, com residências equipadas para a terceira idade e apartamentos pequenos com o aluguel reduzido, além da instalação de um jardim de infância. A nova edificação deverá seguir as novas normas de eficiência energética, conhecido por “casa passiva” – passive house design (14).
A cidade de Saint Nazaire
A cidade de Saint Nazaire, com 68 mil habitantes (15), fica na região de Pays de la Loire, na desembocadura do Rio Loire no Atlântico. Devido a esta localização, a cidade tem longa tradição em pesca e construção naval. A ocupação desta margem do rio remonta ao período neolítico, já foi parte do Império Romano e desde 1532, com a anexação do Ducado da Bretanha pela França, pertence ao território francês. Com uma posição estratégica, o seu porto sempre teve certa importância, porém por várias disputas regionais e internacionais o porto não se desenvolveu continuamente (16). No período colonial, o porto da cidade de Nantes, cerca de 60 km a montante, tornou-se o maior entreposto comercial da Europa. Como o transporte de mercadorias exigia embarcações cada vez maiores e o Rio Loire não permite o tráfego de navios de grande calado, o porto de Saint Nazaire foi absorvido pelo porto de Nantes que passou a administrá-lo (17). Em 1853 o porto é modernizado, duas docas com canais de acesso e comportas foram instaladas, isso permitiu controlar o nível de água e possibilitou o uso das docas independente da maré (18). O porto tornou-se uma base naval da Marinha e foi um importante centro da indústria naval francês. Em 1932, foi instalada a até então maior doca seca do mundo para a construção do transatlântico SS Normandie (19).
Saint Nazaire e as bases militares
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, Saint Nazaire se tornou um importante porto de desembarque das tropas Aliadas, particularmente para o exército norte-americano, que ao entrar no conflito desenvolveu a partir de 1917 a infraestrutura da cidade e do porto, com a construção de estações de tratamento de água potável, docas e armazéns de abastecimento. Na Segunda Guerra Mundial o porto assumiu uma função estratégica importante. Em maio de 1940 o exército nazista ocupou a França e declarou toda a costa como zona militar, colocando-a fora do acesso aos civis, exceto para os habitantes locais, que necessitavam de um passe especial (20).
Em janeiro de 1941, iniciou-se a construção da base de submarinos em Saint Nazaire, que ao contrário das outras bases foi instalada nas docas existentes, separando a cidade de seu porto. A base é composta por vários edifícios e dois bunkers para os submarinos. O bunker 1 com docas para 14 submarinos é de proporções impressionantes: 291 m de comprimento, 124 m de largura e 18 m de altura acima do solo, com uma superfície de 37.500 m2 exigiu 313.000 m3 de concreto (21). Tinha depósitos para munições e torpedos, casas de máquinas e transformadores, 62 oficinas diversas, 150 gabinetes e escritórios para a administração, além de quatro cozinhas e serviço médico-dentário, e nos 92 alojamentos pode abrigar o pessoal de manutenção e a tripulação dos submarinos. Mais de 4.600 trabalhadores foram requisitados pela Organisation Todt para a construção deste complexo (22).
No início de 1943, o governo militar alemão lançou as bases para o bunker 2. O ataque aliado de 27 de março de 1942, foi o evento que levou os alemães a melhorar o seu sistema de defesa e proteger de forma mais eficiente a entrada e saída de submarinos. Até aquele momento, os submarinos tinham que vir à tona para entrar e sair do complexo, o que os tornava vulneráveis. As dimensões do bunker 2 também são impressionantes: 150 m de cumprimento, 25 m largura, 15 de altura, das quais 7 m sob o nível do solo. O telhado tem quatro guaritas para armamento antiaéreo e no ângulo oriental uma cúpula blindada dava abrigo a uma metralhadora pesada. Embora concluído no final do ano de 1944, este bunker parece nunca ter sido usado pelos alemães (23).
Ao final da guerra, a base foi um dos principais alvos dos Aliados, tonando a cidade e seus habitantes as principais vítimas dos 13 bombardeamentos. Em 1943, ao perceber a impossibilidade de neutralizar a base, os Aliados decidem dificultar o seu funcionamento através de incessantes bombardeios (24). Os maiores ataques aconteceram em março de 1942, durante a chamada Operation Chariot ou Saint Nazaire Raid (25), quando 85% da cidade foi destruída (26). Porém a base não sofreu nenhum dano significativo e continuou operando até o fim da guerra. Em 1944, quando quase toda a França já havia sido libertada, a base de Saint Nazaire ainda permanecia em poder dos alemães, que ficaram cercados por forças americanas e da Resistência Francesa até maio de 1945. Ao fim da guerra a Marinha francesa assumiu a base, usando-a até 1948 para a reparação de navios de guerra e, mais tarde, para fins comerciais. Em seguida, ela foi usada por diversos estaleiros, e finalmente, até cair em desuso, como depósito para adubos e grãos por empresas agrícolas. Depois disso, a base permaneceu abandonada por muito tempo, até que em 1994 o município de Saint Nazaire decidiu pela integração da área ao tecido urbano.
A herança, a reconciliação e o convívio
No pós-guerra, Saint Nazaire foi reconstruída de costas para o mar e seu porto. Negando as estruturas urbanas do pré-guerra e partindo de uma tabula rasa, a cidade foi repensada sob o espirito modernista, onde prevaleceu o estilo minimalista, com arruamento de traçado ortogonal e parcelas simétricas. A espinha dorsal da reconstrução é uma larga avenida, a Avenue de La République que liga a nova Praça do Município e a sede da Câmara (Hotel de Ville) com a nova estação ferroviária, construída ao norte, após o remanejamento de toda a malha ferroviária. Com a Avenue de La République criou-se um novo eixo comercial. A exemplo de outras cidades modernistas, o plano de reconstrução de Saint Nazaire foi minuciosamente elaborado, com regras rígidas de zoneamento e para mobilidade. Para as edificações, por exemplo foram criadas regras de volumetria, proporção, uso de cores e ornamentos (27). Em 1962 a reconstrução de Saint Nazaire foi considerada concluída (28).
Nos anos 1990 a construção de um novo porto a leste da cidade, apto a receber os grandes porta-contêineres e petroleiros, tornou o antigo porto obsoleto. Abrindo assim novas perspetivas para a reintegração da estrutura portuária à malha urbana. Em uma reflexão sobre o futuro da cidade, questionou-se não só a relação entre a cidade e o porto, mas principalmente o destino da base de submarinos (29). Em 1995 é lançado um concurso internacional com o objetivo de captar ideias para a reintegração do porto à cidade. As propostas deveriam também desenvolver ideias para incrementar atividades comerciais e de lazer, criar uma infraestrutura de suporte cultural e de turismo, designar áreas para a construção de novas habitações, para a remodelação das áreas públicas e a melhoria da circulação do tráfego e de estacionamento (30). Em 2000 o município lançou o programa Ville-Port (literalmente, Cidade-Porto) baseado nas propostas elaboradas por Manuel de Solá-Morales, o arquiteto e urbanista Barcelonês vencedor do concurso (31). Através deste programa, o complexo portuário passou paulatinamente a ser reciclado e recebeu novas infraestruturas, incluindo vários museus, entre eles um museu ecológico (32) que, apesar do nome, é mais um museu naval, com réplicas de transatlânticos e algumas maquetes da cidade. No bunker 2 foi aberto a visitação o submarino Espadon, que entre 1960 e 1987 fez parte da Marinha francesa.
Em abril de 2000, as antigas docas foram abertas ao público seguindo da transformação do bunker 1 em um centro cultural, agora denominado Escal'Atlantic. Esta base de submarinos, que por décadas não passou de um formidável obstáculo entre a cidade e as docas, não foi destruída, mas integrada à cidade. O Escal'Atlantic transformou-se em um espaço central com diferentes instalações, tais como salas de exposições, cinemas e espaços comerciais com lojas, restaurantes, bares e cafés. Embora ainda seja um corpo estranho, principalmente pela sua dimensão, encontra-se agora melhor conectado a seu entorno, onde novos conjuntos habitacionais, áreas comerciais e serviços formam sendo introduzidos, e como elemento de conexão entre esses novos usos foram criados novos espaços públicos. Os itinerários dos transportes públicos também sofreram modificações para melhor integrar a área ao restante da cidade (33).
Em frente ao Escal'Atlantic, como seu salão de entrada foi criada a Praça Marceau, que construída em vários níveis aproveita o relevo acidentado. Dela parte uma rampa que leva pedestres diretamente ao telhado da base. Essa rampa, denominada Ponte dos Dois Séculos, com nove metros de largura, é na realidade uma nova esplanada e um convite para ir-se até o telhado da base, de onde sobre pontões de madeira se descortina uma espetacular vista panorâmica da cidade, do porto e do estuário do Loire. Ao longo do rio, obras de Gilles Clément e Felice Varini, instaladas como parte da bienal de arte contemporânea Estuário Nantes – Saint Nazaire (34), criam uma série de atrativos ao longo de toda a paisagem portuária.
Sob a égide do Programa Cidade-Porto, vários projetos, tanto públicos como privados vem sendo implementados, criando-se novos serviços à comunidade como um cinema, novas áreas habitacionais, um centro comercial, um hotel três estrelas etc., todos intercalados com novos espaços públicos. Em 2011, no local da antiga estação ferroviária e junto ao Escal'Atlantic foi construído o novo Teatro Municipal. A linguagem arquitetónica de para o teatro é emprestada do monolítico gigante e da áspera forma do bunker. O teatro que reintegra a como foyer partes da antiga estação, é também um monólito de concreto aparente, adornado com elementos florais, que segundo os arquitetos cria um link romântico para a estação e para os teatros românticos (35).
As melhorias nos espaços públicos e a reintegração do porto à cidade ganhou menção em 2002 nos arquivos do Centre de Cultura Contemporània de Barcelona – CCCB. Com os projetos e iniciativas do Projeto Porto-Cidade essa área, outrora desvinculada da cidade e esquecida, tornou-se um endereço e um destino. É interessante notar o contraste de cores e materiais entre os novos elementos (a rampa de acesso, a Praça Marceau com vegetação exuberante, pavimentação colorida da nova área de estacionamento) e o cinza do bunker e das construções portuárias. Esse contraste reforça a presença esmagadora de uma construção colossal cujas dimensões brutais, físicas e simbólicas, estão aos poucos sendo corrigidos por elementos que introduzem uma lógica mais humana, tanto para os arredores quanto para o interior da construção (36).
A apropriação do Bunker: Jardins da Terceira Paisagem
O topo do bunker 1 não só oferece um panorama deslumbrante quanto induz à reflexão – principalmente através das obras instigadoras lá instaladas. A primeira se trata de uma série de fotografias sobre a relação entre a cidade o seu porto e os bunkers. Em um outro projeto, o paisagista Gilles Clément projetou entre 2009 e 2011 o tríptico Jardins du Tiers-Paysage (literalmente, Jardins da Terceira Paisagem) (37), uma alusão às paisagens produzidas/manipuladas pelo homem, e que quando não mais necessárias são abandonadas à própria sorte. O tríptico é composto por unidades isoladas e dispersas no topo da base, ocupando uma área total de 2 ha. Clément usa espécies naturais da paisagem do estuário do Loire e espécies compatíveis com as condições específicas do piso da base – microclima, exposição e substrato reduzido.
O paisagista vê aqui “um lugar de resistência”, capaz de acomodar a diversidade ecológica do estuário e espécies pioneiras num local inóspito, constituindo um novo estrato sobre a arquitetura militar original. O tríptico é composto pelo Bosque de Choupos (Bois des Trembles), que ocupa a parte onde a última laje do telhado não chegou a ser construída mostrando as vigas aparentes de concreto que criam vários compartimentos. Cento e sete arbustos da espécie Populus tremula (conhecidos por choupo-tremedor) emergem destes compartimentos formando à distância um bosque, que só pode ser apreciado à distância, desde os pontões construídos sobre as vigas. O choupo-tremedor foi escolhido pelas suas qualidades cinéticas – as folhas, como o nome indica, tremulam incessantemente ao menor sopro de ar e parecem brilhar pelo contrate de coloração entre o verso (verde-acinzentado e pálido) e o reverso das folhas (verde fresco e brilhante).
O Jardim dos Sedum (Jardin des Orpins) ocupa a parte central. Aberturas nas enormes vigas, denominadas por Clément de portas comunicantes, permitem a conexão visual entres os diversos compartimentos. Um espelho de água atravessa vários compartimentos criando novas perspectivas e, ao mesmo tempo, impedindo a transposição dos compartimentos. Acompanham o espelho várias espécies de Sedum, Euphorbia e gramíneas. As altas vigas não permitem que o jardim seja visível na sua totalidade, ele pode somente ser apreciado em fragmentos ao se caminhar pelos pontilhões.
Observações finais
A história deixa rastros que são, em muitos níveis, difíceis de digerir, principalmente na esfera urbana (38), levantando a questão de como conviver com “rastros” que hoje são inóspitos. A base de submarinos em Saint Nazaire, um legado bélico nazista, condiciona a história da cidade e suas relações com o porto. Este bunker sempre dificultou a integração física e funcional e, portanto, social do porto à cidade, e fez com que a população convivesse com este corpo estranho e de proporções monstruosas. A Câmara de Saint Nazaire iniciou um processo de reversão desta situação que vale a pena um olhar mais atento. Com o Projeto camarário Port-Ville, que compreende uma série de elementos distintos, mas complementares, a Câmara de Saint Nazaire visa melhor a qualidade de vida e com isso a autoestima da população (39). O tecido urbano agora mais contínuo e perfurado, e com diferentes densidades, cores e materiais enriquece o minimalismo modernista, e ameniza a rispidez dos bunkers. O projeto é também uma resposta (psicológica e espacial) à tensão simbólica e física entre a cidade e a base de submarinos. O Escal'Atlantic transformou a base como uma âncora criando novas oportunidades. A apropriação e inclusão de atividades de lazer, culturais e comerciais no interior do bunker abre novas perspectivas, embora as intervenções não envolveram nenhuma alteração substancial em sua estrutura. Se a silhueta maciça e cinza era um marco de isolação, introversão e acesso restrito, hoje do mirante no telhado se vislumbra um panorama que somente deste vazio, altura e distância pode ser visto em seu todo. A conversão do bunker cria não apenas um novo atrativo, mas dá também um lugar à reflexão – sobre a indústria de guerra e as usas consequências. As soluções encontradas em Saint Nazaire podem servir de exemplo, pois elas reúnem os diferentes episódios da história e da geografia da cidade, tornando permeável um complexo isolado, trazendo-o de volta à cidade.
Os bunkers, não só em Saint Nazaire como nas tantas outras cidades, continuam sendo um imponente remanescente da Segunda Guerra Mundial, mas com o Projeto Port-Ville criam-se novos usos e novas perspectivas sobre a história e a produção da cidade. O projeto é um claro sinal de mudanças. Talvez a chave esteja na compreensão de que todas as cidades no seu contexto local são extraordinariamente privilegiadas, basta descobrir e compreender os potenciais. Outra lição importante: investir em espaços públicos de qualidade e adequados às necessidades da população sempre traz bons frutos. Em Saint Nazaire o espaço residual deu lugar à celebração do que chamamos urbanidade – criaram-se espaços com uma variedade de formas, capacitados a acolher uma gama de funções, enquanto calmamente estimulam a interação com o elemento natural. E prova que a presença e apropriação pela população continua a ser um fator determinante para superar barreiras físicas e simbólicas que sempre significaram isolamento total. Em todo processo de mudanças há três atores igualmente importantes: de um lado profissionais qualificados, sejam urbanistas, paisagistas etc., capazes de tanto desenvolver ideias e estratégias cativantes e inovadoras, como de usar recursos de maneira sustentável. Do outro lado, precisamos de gestores públicos e de políticos que, ao acreditarem nessas ideais e no diálogo, as priorizem na agenda política (e orçamentária). Entre ambos, temos a população, para quem afinal produzimos a cidade, e que deve ser protagonista no processo e participar da tomada de decisões.
notas
1
Lexikon Drittes Reich <www.lexikon-drittes-reich.de>.
2
ROSENTHAL, LUDWIG 'Endlosung der Judenfrage', Massenmord oder 'Gaskammerluge': eine Auswertung der Beweisaufnahme im Prozess gegen Hauptkriegsverbrecher vor dem Internationalen Militargerichtshof Nurnberg vom 14. November 1945 bis 1. Oktober 1946.
3
ATLANTIKWALL SUPERFORUM. Le mur de L'atlantique en France <http://atlantikwall.superforum.fr>.
4
ZALOGA, Steven J. The Atlantic Wall: France – Fortress. Santa Cruz CA, Osprey, 2007.
5
DHM – Deutsches Historisches Museum <www.dhm.de/lemo/kapitel/ns-regime/ns-organisationen/todt>.
6
ZALOGA, Steven J. Op. cit.
7
ATLANTIKWALL SUPERFORUM. Op. Cit.
8
WILLIAMSON, Gordon. U-Boat Bases and Bunkers 1941-45 – Fortress 3. Santa Cruz CA, Osprey, 2003.
9
Der Spiegel. NS-Bunkeranlagen am Atlantik: Der neue Westwall <www.spiegel.de/fotostrecke/organisation-todt-und-die-bunker-am-atlantikwall-fotostrecke-118101.html>.
10
WILLIAMSON, Gordon. Op. cit.
11
ZALOGA, Steven J. Op. cit.
12
Stadt Hannover. Bunker wird abgerrissen <www.hannover.de/Service/Presse-Medien/Landeshauptstadt-Hannover/Meldungsarchiv/Klagesmarkt-Bunker-wird-abgerissen>.
13
HAZ – Hannoversche Allgemeine Zeitung. Rundgang durch den Klagesmarktbunker <www.haz.de/Hannover/Fotostrecken-Hannover/Unterirdischer-Rundgang-durch-den-Klagesmarkt-Bunker#p1>.
14
GBH – Gesellschaft für Bauen Hannover. Neues Leben am Klagesmarkt <www.gbh-hannover.de/index.php/unsere-projekte/unsere-projekte/bauprojekt-klagesmarkt>.
15
INSEE – Institut National de la Statistique et des Études Economiques. Populations légales 2013 des communes du département <www.insee.fr>.
16
Mairie de Saint Nazaire. Découvrir Saint-Nazaire <www.mairie-saintnazaire.fr>.
17
Idem, ibidem.
18
ZALOGA, Steven J. Op. cit.
19
Wikipedia. SS_Normandie <https://pt.wikipedia.org/wiki/SS_Normandie>.
20
ZALOGA, Steven J. Op. cit.
21
Port de Nantes and Saint Nazaire. The port’s history. Recuperado em 12 de Outubro de 2016, de http://www.nantes.port.fr/about-the-ports-activities/the-ports-history
22
Uboat Base. St-Nazaire U-boat base <www.uboat-bases.com/en/St-Nazaire/st-nazaire-uboat-base.html>.
23
ZALOGA, Steven J. Op. cit.
24
Mairie de Saint Nazaire. Les architectures de la reconstuction <www.mairie-saintnazaire.fr/fileadmin/media/PLU/PLU_en_ligne/Annexes/Cahiers_ de_prescriptions_architecturales/architecture_ville_partie3.pdf>.
25
Wikipedia. St Nazaire Raid <https://en.wikipedia.org/w/index.php?title=St_Nazaire_Raid>
26
É possível ver uma série de fotos tanto da destruição quanto da reconstrução da cidade no website <http://rikostnaz.blogspot.de>.
27
Stadt Hannover. Bunker wird abgerrissen <www.hannover.de/Service/Presse-Medien/Landeshauptstadt-Hannover/Meldungsarchiv/Klagesmarkt-Bunker-wird-abgerissen>.
28
Mairie de Saint Nazaire. Découvrir Saint-Nazaire <www.mairie-saintnazaire.fr>.
29
Idem, ibidem.
30
Mairie de Saint Nazaire . L’organisation de la reconstuction <www.mairie-saintnazaire.fr/connaitre-la-ville/histoire/ville-darchitecte/lorganisation-de-la-reconstruction>.
31
SOLÀ-MORALES, Manuel de. Ville Port Saint-Nazaire, 1998-2002 <http://manueldesola-morales.com/proys/Saint-Nazaire_eng.htm>.
32
Mairie de Saint Nazaire . L’organisation de la reconstuction <www.mairie-saintnazaire.fr/connaitre-la-ville/histoire/ville-darchitecte/lorganisation-de-la-reconstruction>.
33
Mairie de Saint Nazaire. The ville-port Project <www.mairie-saintnazaire.fr/eng/saint-nazaire-port-magical/the-ville-port>; Mairie de Saint Nazaire. The Eco- Museum <www.mairie-saintnazaire.fr/culture/patrimoine/ecomusee>.
34
Bienal Estuaire Nantes. Saint-Nazaire <www.estuaire.info>; MASBOUNGI, Ariella. Estuaire Nantes – Saint Nazaire: Écométropole. Paris, Moniteur, 2012.
35
K-architecures <www.k-architectures.com/2010/11/zer>.
36
Mairie de Saint Nazaire. The ville-port Project <www.mairie-saintnazaire.fr/eng/saint-nazaire-port-magical/the-ville-port>.
37
Coloco. Jardins du tiers paysage <www.coloco.org/projets/jardins-du-tiers-paysage>.
38
CCCB – Centre de Cultura Contemporània de Barcelona. Public Space: Ville-Port, Saint-Nazaire (France), 2001 <www.publicspace.org/en/works/b001-ville-port>.
39
Mairie de Saint Nazaire. The ville-port Project <www.mairie-saintnazaire.fr/eng/saint-nazaire-port-magical/the-ville-port>.
sobre o autor
Carlos Smaniotto Costa (PhD) é graduado e doutorado em Arquitetura da Paisagem e Planejamento Ambiental pela Universidade de Hanover/Alemanha. Além de realizar vários projetos paisagísticos, ocupa-se como pesquisador com questões de desenvolvimento urbano sustentável, estratégias para a integração de espaços livres e preservação da natureza, e transformação da paisagem no contexto urbano. É professor de paisagismo e ecologia urbana, com atuação em ensino e pesquisa nos cursos de pós-graduação em Urbanismo e Arquitetura da Universidade Lusófona em Lisboa, onde coordena os Projetos CyberParks (cyberparks-project.eu ) e C3Places (c3.places.eu), ambos financiados no âmbito do Programa Europeu H2020. É autor de várias publicações em inglês, português, alemão e italiano.