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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Neste artigo propõe-se apresentar aspectos teóricos com enfoque na temática das persistências morfológicas, destacando autores seminais para a pesquisa realizada e procedendo com análise do objeto empírico, o Eixo Maruípe.

english
In this article, we propose to present theoretical aspects focusing on the theme of morphological persistence, highlighting seminal authors for the research carried out and proceeding with the analysis of the empirical object, the Eixo Maruípe.

español
En este artículo se propone presentar aspectos teóricos con enfoque en la temática de las perseveras morfológicas, destacando importantes autores para la investigación realizada y procediendo con análisis del objeto empírico, el Eixo Maruípe.


how to quote

BOTECHIA, Flavia Ribeiro. Uma avenida imperfeita. Um estudo morfológico sobre o Eixo Maruípe. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 213.01, Vitruvius, fev. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.213/6895>.

Autores como Morris, Kostof, Portas, Dias Coelho (1) se opõem à noção de cidade como obra acabada e se aproximam da forma urbana imperfeita porque “feita, refeita e desfeita”. Com esta perspectiva contribuem ao entendimento de que no tecido urbano coexistem diferentes elementos da forma urbana, produzidos em diferentes tempos e com ciclos de vida autônomos. Dessincronização elementar que se relaciona à, pelo menos, dois processos morfológicos: o de contínua transformação, como o que acontece mais frequentemente com edificações e usos; e outro que lida com a estagnação das estruturas, principalmente, no que se refere ao traçado e ao parcelamento fundiário (2).

Alguns termos podem ser associados ao processo de estagnação, temática que se pretende destacar, tais como inércia, permanência, persistência. Entretanto, estes não devem ser tratados como sinônimos. Para estudar os elementos que atravessam diferentes períodos, propõe-se como chave de interpretação trabalhar a noção de persistências morfológicas [PER-, da preposição do latim, “através de”, “por entre”; -SISTERE, “permanecer firme”, “ficar firme”], cuja etimologia indica “ser constante, perseverar, insistir”; do latim persistére; persistência (século 17); persistente (século 17).

Ao observar nos traçados urbanos vestígios de épocas anteriores, as evidências materiais apontam para catedrais ou mesmo edificações ordinárias; entretanto, não se deve esquecer que os elementos bidimensionais também possuem níveis de perenidade. É assim que um antigo caminho pode ser a forma pretérita do eixo de uma rodovia; canais de irrigação ou drenagem, de atuais vias urbanas pavimentadas; tramas agrícolas, de limites de lotes ou quarteirões. Com esse raciocínio seria possível identificar indícios, através da análise documental, de que a forma atual da cidade é resultado de um processo de permanência (sedimentação) e persistência (deformação) de estruturas anteriores sejam elas materiais ou mesmo imateriais.

Neste artigo, que deriva de tese de doutorado em arquitetura, propõe-se apresentar alguns aspectos teóricos, o estudo de caso e seus aspectos práticos, com enfoque na temática das persistências morfológicas. Para tanto, organiza-se este texto em duas partes. Na primeira, serão apresentados autores seminais referentes à temática sugerida, percorrendo exemplos europeus e latino americanos. Na segunda parte será apresentada a análise de um objeto empírico, qual seja um conjunto de vias que formam um eixo, aqui denominado por Eixo Maruípe, localizado na parte insular da cidade de Vitória, juntamente com dados obtidos e apresentados em uma linha do tempo regressiva, percorrendo os períodos históricos brasileiros.

Para fins de interpretação denominar-se-á o objeto de estudos por Eixo Maruípe, englobando uma sequência de vias desde a região central de Vitória até a Ponte da Passagem, a saber: Avenidas Vitória, Paulino Muller e Maruípe, além do trecho final, qual seja, a Rua Dona Maria Rosa. Este eixo será também previamente dividido em três trechos para fins de descrição e análise, justificado pelas inflexões formais e toponímias, cuja análise seguiu uma linha do tempo retrospectiva abordando primeiramente as fontes do período da República (1889-atual), do Império (1882-1889) e, por fim, do período Colonial (1500-1822). Cada um destes foi trabalhado na tese percorrendo as fontes cartográfica, textual e iconográfica, porém, neste artigo serão apresentadas parcialmente as informações obtidas.

Persistências morfológicas

Pierre Lavedan, MRG Conzen e Pierre Pinon (3) tornaram-se, no desenvolvimento da pesquisa, referencial teórico fundamental para entendimento do processo morfológico da persistência, ao se deterem sobre o estudo de cidades européias.

O historiador francês Pierre Lavedan é reconhecidamente um dos primeiros teóricos a fazer um estudo sistemático e aplicado sobre a persistência da forma urbana. Ao identificar os elementos geradores da planta da cidade através de análises cartográficas, o autor identifica uma lei, “não universal, nem absoluta”, a qual denomina “loi de la persistence du plan” (4). Segundo esta lei, as ruas de uma cidade são elementos que perduram por séculos. Testando este argumento, para verificar as formas urbanas transmitidas no tempo, Lavedan faz um estudo das plantas de algumas cidades tentando identificar casos de persistências: uma estrada no caso de Tell el Amarna, o plano da antiga cidade de Salonique, caminhos medievais de Fourvières, a muralha medieval convertida no caminhamento das avenidas em Beaumont, além de outros exemplos em Périgord, Cambridge, Paris e Munique. Com isso, o estudo cartográfico contribui no conhecimento e interpretação de períodos anteriores pelo simples fato de que pode ser estabelecida uma conexão comparativa entre distintos períodos da planta da cidade. E esta conexão é feita a partir dos elementos que permanecem.

Pierre Pinon, alguns anos mais tarde, com a publicação do artigo Défense et illustration de la loi de la persistance du plan, recupera a questão lançada por Lavedan para identificar a persistência de fragmentos de tecidos urbanos preexistentes na análise de plantas de algumas cidades francesas de fundação romana. Faz isso defendendo como método de reconstituição da materialidade do traçado, a prospecção retrospectiva feita através das fotografias aéreas, mapas cadastrais e análise morfológica dos tecidos urbanos.

Procedendo então com a análise retrospectiva das plantas cadastrais de Bourges, Amiens, D'Autin, Limoges e Paris, Pinon aponta as diferenças conceituais entre persistência e permanência (também tratadas por Lavedan, no texto de 1926). Além disso, evidencia pontos fundamentais para serem observados antes de se dar início a qualquer pesquisa neste campo teórico: a existência de tipos de plantas urbanas (de matriz colonial, ortogonal, romana, etc., a depender da história da cidade); o fenômeno da conservação do traçado (identificação preliminar de evidências topográficas, implantação de edifícios, antigos caminhos); e a possibilidade de se reconstituir as fases intermediárias da planta.

O geógrafo alemão M.R.G.Conzen, ao se deter sobre análises de pequenas cidades e vilas inglesas, na década de 1960, identificou a existência de processos morfológicos que agem sobre a substituição das formas urbanas, em três escalas: da planta da cidade, da edificação e dos usos. Pelo menos dois verbetes do Glossário de termos técnicos, elaborado por este autor, fazem referência à temática de interesse da tese: Persistence of inherited forms; e Systematic differentiated persistence of forms (principle of). Na definição destes verbetes, Conzen afirma que o plano urbano (composição bidimensional da planta da cidade) é dentre os elementos morfológicos aquele mais persistente no tempo e que a longevidade das formas urbanas está relacionada ao seu uso pois,

“when inherited forms continue to be functionally suitable to current and changed conditions of town life, or survive through material inertia, sometimes in a ruinous state. Since the length of persistence of forms has commonly depended on a great number of variable factors, it has tended to vary greatly by form complex and in spatial structure” (5).

Na América Latina, alguns autores procedem com investigações correlatas. Waisman em O interior da História (6), enumera conceitos instrumentais para o desenvolvimento de estudos históricos e prática arquitetônica, dentre os quais elenca a tratativa sobre “as durações históricas”. Ao fazer isso afirma a importância dos estudos sobre forma urbana e suas relações com o tempo na cidade latino-americana, considerando tanto o campo das materialidades quanto, o das ideias.

No Brasil, destaque pode ser dado ao trabalho desenvolvido pelos Professores Dr. Nestor Goulart Reis e Dr. Mauricio de Almeida Abreu, dentre outros. Reis (7) na investigação sobre as características e transformações de São Paulo, na passagem de Vila à metrópole, em trechos selecionados, dialoga com a hipótese de que estruturas anteriores podem ter condicionado, pela continuidade, estruturas subsequentes. Desse modo é possível identificar sinais, ao proceder com análise cartográfica, da direção de uma muralha, que já não existe mais, mas que persiste na composição do traçado das ruas da cidade. Na pesquisa sobre a Rodovia Anhanguera, de 2014, o mesmo autor demonstra, dentre outros aspectos, que este eixo viário, uma das saídas de São Paulo sentido Goiás, é a permanência parcial de fatores tangíveis como trilhas preexistentes, e intangíveis, como as memórias.

A relação entre preexistência e forma atual poderia ser identificada na cidade de Vitória e seus arredores? A falta de estudos com este perfil sobre a região, em paralelo à identificação de cartografias nos arquivos locais que possibilitassem este tipo de investigação, levou ao desenvolvimento de um estudo aplicado que se apresenta, em parte, a seguir.

O Eixo Maruípe

Na tentativa de individualizar um objeto específico que pudesse ser estudado, na cidade de Vitória, e que desse suporte a investigação dos casos de persistência morfológica elementar, estima-se que alguns documentos contribuíram fortemente tanto à identificação do objeto (propriamente dito) quanto ao desenvolvimento dos objetivos pretendidos.

Documento cartográfico Esboço da Planta da Ilha da Victoria [Arquivo Público do Estado do Espírito Santo]

Um deles é uma cartografia produzida, em 1896, pela Comissão de Melhoramentos da Capital denominada Esboço da Planta da Ilha da Victoria. Como parte do conjunto cartográfico que compõe o Projecto de um Novo Arrabalde, esta referida carta teve como objetivo representar numa planta de situação do município, o novo arrabalde projetado pelo Engenheiro Francisco Rodrigues Saturnino de Brito. Acompanha este documento, uma legenda. Dentre as indicações constantes nesta legenda, há a convenção gráfica de uma linha, na cor preta, indicada como “caminho para tropas”. Em paralelo a este caminho encontra-se representado um rio e as inscrições Maruhype e Jucutuquara. Em outra cartografia denominada “Estrada de rodagem [...]”, do mesmo conjunto anterior consta a representação gráfica de um projeto viário (da tal estrada) que seguia desde o núcleo fundacional até o novo arrabalde projetado. Quase sobreposta ao alinhamento da nova via projetada, na planta indica-se uma linha preta sinuosa junto à indicação “estrada antiga”.

Com estes documentos foi possível, mesmo que à primeira vista, notar que a indicação da referida convenção de uma linha preta na cartografia elaborada por Saturnino de Brito seguia (mais ou menos) a direção das atuais Avenidas Vitória e Maruípe (8) em suas retas e curvas... Colocou-se, então, claramente uma pergunta: de que tempo seriam as avenidas que percorrem a região de Maruípe? Se em 1896 já existiam, quem as projetou? Como e quando foram criadas?  Que estrada antiga seria essa?

Detalhe da legenda da carta Esboço da Planta da Ilha da Victoria
Corte elaborado pela autora a partir de imagem do documento original, 2017

Em A trilha sagrada (9), Sartório dá algum indicativo para estas perguntas ao tratar da existência de estradas gerais e outras vicinais na Província do Espírito Santo, durante o breve período entre 1822 e 1889 que durou o Império no Brasil. Buscando respostas, olhando outros mapas, lendo outros livros, chegou-se a uma hipótese para ser investigada: a Avenida Maruípe (que aparece na cartografia de Brito como caminho para tropas) poderia ser a persistência de trecho de uma estrada, correspondente a saída terrestre norte da ilha de Vitória, nomeadamente, a Estrada Geral da Costa que poderia ter passado por dentro da ilha de Vitória.

Análise documental retrospectiva

Durante a República, Vitória progressivamente foi urbanizada. O núcleo de povoamento de matriz colonial portuguesa encontrava-se, em 1889, restrito a cerca de 6% da área total da ilha. Neste limite insular, e no início do século 20, além do núcleo urbano principal as demais terras podem ser descritas, predominantemente, como de propriedade do Governo ou de poucos particulares, tendo caráter rural (como era o caso das fazendas) cujo relevo caracteriza-se pelo bioma “mar de morros” (10). Neste contexto, a passagem do rural ao urbano se deu lentamente e alguns vestígios anacrônicos podem ser identificados.

A representação das plantas de cadastro elaboradas nos anos de 1911, 1946, 1979 (início, meio e fim do século 20) e documentos cartográficos complementares foram fonte documental primária consultada, e redesenhada, para remontar aspectos morfológicos do Eixo Maruípe durante a República.

Plantas conjecturais de 1911, 1946 e 1979 do município de Vitória, com identificação em destaque para a direção de parte do Eixo Maruípe
Elaborado pela autora a partir do georeferenciamento de plantas cadastrais utilizando soft

A partir do redesenho da Planta Cadastral de 1911, observou-se que este Eixo, objeto de análise em questão, entremeava uma região suburbana, percorrendo as linhas de fundo de vale, junto ao sopé dos morros. Já tinha como ponto inicial a Rua Barão de Monjardim (Capixaba) e como limite final, a Ponte da Passagem. No trecho 1, paralelo a um sinuoso caminho existente, construiu-se, no decorrer das primeiras décadas do século 20, o eixo da atual Avenida Vitória (aquela projetada por Saturnino de Brito). A partir do trecho 2, nos limites do bairro Jucutuquara, o caminho então existente manteve um paralelismo em relação aos rios existentes na região (ainda com conformação natural) e a geometria não dominava seus aspectos morfológicos.

A característica formal de então se assemelhava mais a uma estrada do que propriamente a uma via urbana (com calçadas, meio fio ou posteamento), e passava por dentro de propriedades rurais privadas como as Fazendas Jucutuquara e Maruípe. Não por acaso o melhoramento de ruas e das estradas, como retificação e pavimentação, foi tema frequente no discurso dos Presidentes de Estado durante a 1ª. Republica (1889-1930), tendo sido constituído no Governo Aristeu Borges de Aguiar, dentre outras várias ações pontuais, o Plano de Estradas de Rodagem.

Fotografia da Avenida Vitória, em 1920: retificação do traçado e implementação da linha de bonde [Arquivo Público do Estado do Espírito Santo]

Em meados do século, apoiado no redesenho da Planta Cadastral de 1946 (e documentos auxiliares), executada pela Empreza de Topografia, Urbanização e Construção (Etuc) o Eixo Maruípe foi representado ora como rodovia, ora como caminho carroçável. Com o redesenho cartográfico, além de consulta à outros documentos textuais, verificou-se que a forma urbana do objeto empírico neste período resultou de uma série de ações pretéritas promovidas pelo agente público estadual que incluíram: retificação e urbanização das estradas convertendo-as em avenidas e ruas; canalização dos rios e córregos; drenagem do solo; parcelamento das glebas maiores e suburbanas em propriedades menores e urbanas (como chácaras ou loteamentos).

O levantamento cadastral subsequente, executado em 1979 pela empresa Maplan S.A., e por solicitação da Prefeitura de Vitória, utilizou-se da metodologia da aerofotogrametria para fins cadastrais e topográficos. Das ortocartas geradas a partir do voo, representadas na escala 1/2.000, foram selecionadas as pranchas referentes ao Eixo Maruípe para redesenho e interpretação. Por meio desse procedimento foi possível compreender que o trecho 1 se consolidou em relação à forma da avenida (largura e extensão), se intensificou a ocupação de suas bordas com parcelamentos e construções, recebendo sucessivamente elementos de mobiliário urbano. No trecho 2, que corresponde ao bairro Jucutuquara, a via principal ainda recebia o nome de Rua José Malta possuindo cerca de20 metros de largura e o córrego que passava pelo centro estava completamente tamponado, já correspondente a seu aspecto atual. No início do trecho 3, entre Fradinhos e a Ponte da Passagem, observou-se o início da construção de uma via paralela à Avenida Maruípe, com objetivo de alargamento e retificação.

Se por um lado a ação de agentes públicos, durante o século 20, desenhou e executou a forma urbana deste Eixo em práticas sucessivas, sobrepostas e acumulativas registradas na cartografia, por outro lado, em nenhuma das Mensagens de Presidentes de Estado, ou outra fonte textual consultada, verificou-se indicativos de que a avenida (ou estrada ou via) foi “aberta” ou “construída” na República. Não foram identificados também relatos de aspectos como grandes alterações de trajeto, envolvendo desapropriações, salvo especificamente em parte do trecho 3. O que se nota é sempre um registro de intervenções de melhoramento, alargamento, pavimentação e retificação do eixo existente, incluindo as inúmeras dificuldades técnicas e financeiras... O que se pode notar é uma persistência da direção deste eixo. Esta direção que vai desde o núcleo inicial de povoamento até a Ponte da Passagem, localizada à Nordeste, não é oriunda do período republicano. Poderia ser anterior a isso? Pelo que se pode verificar, já no Império havia estradas gerais ou vicinais, suporte físico para deslocamentos terrestres de comerciantes, viajantes, carteiros, tropas, registradas através de textos e plantas.

Mapa do município de Vitória, com identificação do Eixo Maruípe e da localização de sítios arqueológicos
Elaborado pela autora a partir de base do Google Maps e de informação pesquisada junto ao

No período do Império do Brasil pelo Espírito Santo passavam quatro estradas gerais interprovinciais, nomeadamente, Estrada Geral da Costa (sem data de inauguração identificada); Estrada de São Pedro de Alcântara (ou Estrada do Rubim, 1814); Estrada de Itapemirim (1830); Estrada de Santa Thereza (1848). Destas, pelo que se conclui a partir da análise cartográfica e documental, somente a Estrada da Costa passava dentro dos limites da capital da Província, Vitória.

Das sete cartas analisadas mais detidamente, a Estrada Geral da Costa foi considerada em cinco delas, a saber: as cartas do Espírito Santo produzidas nos anos de 1817, 1850, 1861, 1866, 1878. Este registro, alinhado aos documentos textuais (é mencionadaem diversos Relatóriosde Presidentes da Província), comprova a existência deste elemento e de sua importância na conexão terrestre entre núcleos de povoamento. Mais do que isso numa aproximação à escala da ilha de Vitória, observa-se que esta Estrada passava por dentro dos limites insulares e possuía a direção do Eixo Maruípe. Sua importância reside na distribuição de mercadorias desde o interior até o Porto de Vitória, principalmente no trecho dentro da ilha, ou seja, no mesmo Eixo Maruípe.

Uma das primeiras referências a esta Estrada é atribuída, por Sartório, ao Governador Francisco Alves Rubim, que a descreve como um eixo à beira mar que interligava as Capitanias do Rio de Janeiro à Bahia, tendo Vitória como uma espécie de ponto médio: “A estrada geral corre junto ao mar, ou próximo a elle” (11). E nos cerca de cinquenta Relatórios de Presidentes da Província do Espírito Santo consultados, a Estrada Geral da Costa aparece mencionada diretamente em 30% deles. Nestes, por sua vez, são ressaltadas suas características formais como sinuosidade, estreiteza, irregularidade, como dando indícios de que se trata de uma forma persistente:

Tenho mandado quebrar algumas pedras, que existem no caminho da Capichaba e que tornão difficil o transito, e continuarei á authorisar esta despesa por julgá-la indispensável, e a qual ha sido, e será dedusida da verba—-Estiadas — por que considero esse caminho, como princípio da estrada geral para as villas do Norte (12).

Identificação das Estradas Interprovinciais do Espírito Santo na Carta Chorographica da Província do Espírito Santo (1861)
Intervenções elaboradas pelo autor sobre imagem do mapa original fornecida pela Biblioteca

Entretanto, mais uma vez, em nenhum momento durante a consulta a estes documentos, ou mesmo na leitura das memórias de viajantes do século 19, em nenhum trecho destes textos, pode-se compreender que a Estrada em questão foi aberta durante o Império, ou que foi construída naqueles anos, ou mesmo que uma equipe de técnicos se dirigiu a campo para escolher o melhor lugar para sua construção. Antes, e pelo contrário, parece sempre ter estado ali. Portanto, coloca-se em dúvida novamente o tempo desta forma. Não poderia ter sido o Eixo Maruípe uma forma produzida no período colonial?

Primeiramente, reconhece-se que durante o período pré-colonial, os povos nômades e seminômades que ocupavam o território brasileiro tinham lógicas de circulação por caminhos de terra e de mar, o mesmo se dando no período colonial a partir da chegada dos colonizadores portugueses. Estes caminhos estão indicados em cartografias e textos de forma descritiva. Contudo e infelizmente, no caso do objeto de pesquisa, as informações contidas na cartografia não foram (neste momento) identificadas.

O estudo arqueológico coordenado, nas décadas de 1960 e 1970, dentro do Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), pelo Arqueólogo e Professor Dr. Celso Perota (UFES) identificou vestígios de primitivas aldeias indígenas em Vitória. Dentre as áreas que guardam evidências materiais da presença da cultura pataxó na ilha destacam-se algumas: região do bairro Fradinhos (sítio arqueológico); proximidades do Quartel da Polícia Militar (nas imediações da Avenida Maruípe); Cemitério de Maruípe; e Morro do Macaco. Assim sendo, os fragmentos recolhidos pelos arqueólogos em suas escavações apontam para a existência de aldeias não só na colina central, mas ao longo do Eixo em estudo.

Pois se haviam os pontos de assentamento supostamente deveriam existir as linhas (caminhos) que interligavam estes pontos. Como sinalizam Sergio Buarque de Holanda e Gloria Kok (13), durante o período colonial e imperial no Brasil, havia os caminhos de terra e os caminhos de mar. E alguns destes caminhos podem ter sido em parte aproveitados das trilhas estreitas (onde se andava em fila) utilizadas pelos povos indígenas, que para se deslocar por terra seguiam ora as linhas de talvegue, ora as linhas de cumeada a depender das condições tipo-mórficas do território. No caso especifico da região em estudo além da questão físico-territorial, corrobora a importância das linhas de talvegue para deslocamentos, a prática comum dos índios de caminhar em paralelo aos rios. (14) Então as rudimentares veredas (15) eram utilizadas pelas tribos para caminhar pelo território e, uma vez abertas em mata fechada, algumas parecem ter persistido formalmente.

Com tais características e aspectos formais locais, volta-se a questão inicial: de quando é o Eixo Maruípe? O raciocínio inflete no sentido de argumentar sobre a hipótese de que o Eixo Maruípe pode ter sido, nos limites da ilha, parte de uma trilha primitiva entre aldeias que já se enunciava no século 16. Este indicativo, como se nota, retrocede além do que foi proposto inicialmente, mas apresenta-se de modo imponderável.

Resultados e discussões parciais

A hipótese de trabalho se comprovou e foi além. Aspectos morfológicos do Eixo Maruípe são oriundos de uma forma pretérita, sendo exemplo de um caso de persistência, identificação sobre a qual se pode avançar em alguns argumentos.

Através de uma coleção de fragmentos, apresentados parcialmente no item anterior, é possível afirmar a existência de uma ligação terrestre entre o núcleo de povoamento inicial, em Vitória, seguindo na direção Norte, possivelmente oriundo do período colonial e que durante os séculos 17 e 18 se estabilizou, pouco a pouco, por consequência de sua função como rota comercial e infraestrutural. Entretanto, este não foi o único motivo de sua persistência. As características topográficas locais também influenciaram na manutenção do eixo e do trajeto da via. Assim, a partir dos dados pesquisados em relação ao Eixo Maruípe, como um resultado parcial da pesquisa, constata-se a existência de três escalas de persistência morfológica: a escala do território, da cidade e na região.

Quanto à persistência na escala do território, o Eixo Maruípe é um vestígio material do que teria sido parte de uma das estradas interprovinciais do Espírito Santo, aquela denominada Estrada Geral da Costa. Descrita nos documentos como estreita, sinuosa, que corria em paralelo ou junto ao mar, sem data definida de inauguração, quase natural, se estendia desde o Sul e continuava a se conectar com os principais núcleos litorâneos ao Norte. Numa comparação morfológica, amparada nos documentos encontrados e na qual são consideradas as linhas de talvegue da ilha, direção, inflexões, conclui-se que o Eixo Maruípe é correspondente à uma parte de um trecho da Estrada da Costa que passava por dentro da Ilha de Vitória. Portanto, o conjunto de vias que formam o Eixo Maruípe não foi uma criação da República, mas já existia no Império.

Entretanto, com o desenvolvimento das leituras, passou-se a acreditar que era possível retroceder no tempo ainda um pouco mais. Pelas descrições físicas desta estrada nos Relatórios e Mensagens dos Presidentes da Província do Espírito Santo não se percebeu, como na descrição das demais estradas, um tom sobre as tentativas para sua abertura, os sucessos, os fracassos. Pelo contrário, havia com frequência uma abordagem sobre a necessidade de melhorar, de investir, de pavimentar, de torná-lo um eixo carroçável.

O que parece semântica poderia ser o indício de uma persistência deste objeto na escala da cidade. Esta segunda escala de persistência ampara-se nas evidências de que existia, nos limites da ilha, trilhas primitivas entre as aldeias existentes naquela pequena escala, que seguiam as linhas de talvegue em paralelo aos rios. Seguindo a direção Norte, a linha de talvegue mais evidente é justamente o encaminhamento do Eixo Maruípe, por entre os Morros São João, Romão, Cruzamento, Jucutuquara, Macaco, Engenharia. Assim passou-se a supor que o trecho da estrada imperial que passava por dentro da ilha poderia ser a persistência de uma antiga trilha do período colonial.

Numa terceira escala de persistência, considerou-se o processo de urbanização da região Nordeste de Vitória por onde o Eixo Maruípe passa. Durante o século 20, esta região composta basicamente por duas fazendas maiores – Maruípe e Jucutuquara - foi vendida, parcelada em loteamentos, doada parcialmente ao Governo. Aos poucos, através da ação de agentes do Estado, a outrora estrada foi passando a ser denominada rua ou avenida por meio de uma série de melhoramentos. A toponímia estrada se apagou, mas não seu direcionamento ou sua materialidade. As transformações ocorrem? Sim e não. Concomitante às mudanças, o processo da permanência e persistência morfológica também ocorreu.

Esta linha de talvegue que recorta o território da ilha de Vitória, durante a República, num processo de acumulação de intervenções de projetos urbanos foi retificada, alargada, pavimentada e recebeu mobiliários urbanos de toda sorte. A toponímia de Estrada de Maruípe passou para as atuais Avenidas Vitória, Paulino Muller, Maruípe, Fernando Ferrari, mas morfologicamente seu eixo persistiu. Continua acompanhando em paralelo as linhas topográficas e os cursos d´água (mesmo que ocultos), o nível de cota continua sem grandes alterações, a direção se mantém ligando o núcleo urbano central e à Ponte da Passagem, e apesar da formação sucessiva do tecido urbano do entorno, não foi alterada.

Acredita-se, com isso, que esta forma material que veio do passado atravessando as camadas do tempo, continua no presente. Torna-se, mais um exemplo dentre outros que ocorrem (como visto na Literatura através dos estudos da Broadway,em Nova Iorque, ou do Caminho Peabiru,em São Paulo), da forma indelével. A aplicação da teoria à prática não se configurou como uma via de mão única pois exemplos e conceitos contribuíram à análise territorial, mas o contrário também foi verdadeiro. A análise do objeto retroalimentou a teoria.

Acredita-se que a análise urbana deve ser acrescida de outras camadas de interpretação, camadas nas quais o arquiteto expressa seu saber. A identificação de atores e agentes da forma urbana, o interesse sobre quem produziu a forma (e quais circunstâncias políticas e econômicas desta produção), tem equivalente relevância em relação à verificação sobre o que foi produzido, com qual geometria ou o processo com que esta forma foi produzida. O estudo da morfologia é, em vista disso, tanto uma porta aberta para entender o presente através do passado, quanto uma oportunidade para compreender e desenhar o futuro.

notas

NA - Este artigo foi apresentado no IX Seminário Internacional de Investigación em Urbanismo (Bogotá, 2017), deriva de pesquisa de Doutorado desenvolvida na Universidade Presbiteriana Mackenzie São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Maria Isabel Villac, e recebeu apoio institucional da Prefeitura Municipal de Vitória, do FACITEC (Fundo de Apoio à Ciência e Tecnologia - Vitória) e do Fundo Mack-pesquisa (Universidade Presbiteriana Mackenzie – São Paulo).

1
MORRIS, Anthony Edwind James. Historia de la forma urbana. Barcelona, Gustavo Gilli, 1979; KOSTOF, Spiro. The city shaped: urban patterns and meanings through History. London, Thames & Hudson, 2009; PORTAS, Nuno. Os tempos das formas. Volume 1: a cidade feita e refeita. Guimarães, Universidade do Minho, 2005. COELHO, Carlos Dias (Org.). Cadernos de morfologia urbana: os elementos urbanos. Volume 1. Lisboa, Argumentum, 2013.

2
CONZEN, M. R. G. Alnwick, Northumberland: a study in town plan analysis. Londres, Institute of British Geographer, 1960.

3
LAVEDAN, Pierre. Qu´est-ce que l´urbanisme? Paris, Henri Laurens, 1926; PINON, Pierre. Défense et illustration de la “Loi de persistance du plan": Le problème de la survivance du tracé des rues dans les villes françaises d’origine antique. In: BALLET, Pascale; DIEUDONNÉ-GLAD, Nadine; SALIOU, Catherine.(Org.). La Rue dans l’Antiquité: définition, aménagement, devenir. Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2008, p. 129-140.

4
LAVEDAN, Pierre. Op. cit., p. 91.

5
CONZEN, Michael P. Thinking about urban form. Papers on Urban Morphology, 1932-1998. Oxford, Peter Lang Publishers, 2004, p. 253.

6
WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de latino-americanos. São Paulo, Perspectiva, 2013.

7
REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo: vila, cidade, metrópole. São Paulo, Ministério da Cultura, 2004; REIS FILHO, Nestor Goulart. Caminho do Anhanguera. São Paulo, Via das Artes, 2014.

8
Maruípe aparece como uma toponímia da época colonial utilizada para indicar uma região, um bairro, um rio, uma fazenda, uma avenida e uma ponte na cidade de Vitória. Segundo consta Maruípe é um termo oriundo da língua tupi e significa “no rio dos mosquitos”, junção dos termos mberu ("mosca"); y ("água"); pe ("em").

9
SARTORIO, Élvio Antônio. A trilha sagrada. Volume 1: Anatomia histórica das estradas. Vitória, Edição do autor, 2007.

10
AB´SABER, Aziz. Os domínios de natureza no Brasil. São Paulo, Ateliê Editorial, 2003.

11
RUBIM, Francisco Alberto. Memórias para servir à história até ao anno de 1817 e breve noticia estatística da Capitania do Espírito Santo, porção integrante do Reino do Brasil, escriptas em 1818, e publicadas em 1840 por hum capixaba. Lisboa, Imprensa Venesiana, 1840-2003, p. 20.

12
Espírito Santo (Província) (1850) Relatório com que o Exm. Sr. Filippe José Pereira Leal Presidente da Província do Espírito Santo abriu a sessão ordinária da respectiva Assembleia Legislativa, no dia vinte e cinco de julho do corrente ano. p. 24.

13
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São Paulo, Companhia das Letras, 1994; KOK, Glória. Vestígios indígenas na cartografia do sertão da América portuguesa. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 17, n. 2, 2009, p. 91-109.

14
PEROTA, Celso. Sítios arqueológicos e acervo pré-histórico no Espírito Santo. Revista Fundação Jones dos Santos Neves, Vitória, ano II, n. 4, 1979, p. 19-20.

15
KOK, Glória. Op. cit., p. 93-94.

sobre a autora

Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997). É mestre em Arquitetura pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001) e doutora em Arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - São Paulo (2017), desenvolvendo pesquisas no campo teórico da Morfologia Urbana.

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213

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