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architexts ISSN 1809-6298


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português
O texto discute o papel de César Manrique na transformação radical da ilha de Lanzarote, ocorrida entre 1960 e 1974. Pautadas em valores culturais, as propostas arquitetônicas e territoriais ajudam a construir a identidade e a paisagem locais.

english
The text discusses the role of César Manrique in the radical transformation of the island of Lanzarote between 1960 and 1974. Based on cultural values, architectural and territorial proposals help to build local identity and landscape.

español
El texto discute el papel de César Manrique en la transformación radical de la isla de Lanzarote, ocurrida entre 1960 y 1974. Pautas en valores culturales, las propuestas arquitectónicas y territoriales ayudan a construir la identidad y el paisaje local.


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REIS, Almir Francisco; BEL, Joaquín Sabate. Arte, arquitetura e paisagem. César Manrique e a construção da identidade contemporânea de Lanzarote. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 223.00, Vitruvius, dez. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.223/7245>.

A mais oriental das Ilhas Canárias, Lanzarote, passou por um radical processo de transformação territorial, entre 1960 e 1974, através de uma série de políticas e propostas arquitetônicas e territoriais baseadas na paisagem e em valores artístico-culturais e identitários locais. Estas diretrizes de atuação apontaram um caminho alternativo para o desenvolvimento sócio espacial desta ilha que tem no turismo uma de suas principais fontes econômicas. César Manrique, artista plástico, ativista político e autor de inúmeras intervenções arquitetônicas, urbanísticas e territoriais foi personagem central desse processo. Neste artigo apresentamos e discutimos este trabalho ainda pouco divulgado no Brasil, ressaltando tanto as buscas por uma expressão artística regional quanto os resultados obtidos na direção de um processo de desenvolvimento que tem na identidade do território, de sua cultura e de seus habitantes sua inspiração maior. Fruto de tempos em que a regra foi a produção em série de espaços para o turismo, bem como o consumo indiscriminado de território, a singularidade das estratégias desenvolvidas em Lanzarote apontam importantes indicativos para o planejamento de áreas sujeitas ao crescimento urbano-turístico.

A singular paisagem de Lanzarote

O arquipélago canário
Elaboração Almir Francisco Reis

As Canárias constituem uma comunidade autônoma espanhola constituída por sete ilhas de maiores dimensões (Gran Canaria, Fuerteventura, Lanzarote, La Gomera, Tenerife, La Palma, El Hierro) e diversos outros pequenos ilhéus e rochedos. O arquipélago situa-se no Oceano Atlântico, entre os paralelos 27º3’ e 29º5’ de latitude norte e 13º20’ e 18º10’ de longitude oeste, a 52 milhas marítimas a oeste do litoral africano. De origem vulcânica, apresenta características orográficas bastante diferenciadas para cada uma de suas ilhas, que dizem respeito à idade de cada uma delas. O território total das Canárias é de 7.447 km2, comportando uma população de cerca de dois milhões de habitantes que se concentram, principalmente, em Tenerife e Gran Canária. A economia é baseada no setor terciário e tem no turismo uma de suas principais fontes de ingresso, num processo que, a partir dos anos 1950, levou a profundas alterações na estrutura sócio espacial do arquipélago.

Lanzarote é a ilha mais oriental do arquipélago canário, tendo uma superfície territorial de 846 km2(aproximadamente 50 x 15 km) e uma população de cerca de 90.000 habitantes. O meio físico, expressando valores ambientais e paisagísticos reconhecidos internacionalmente, é de origem vulcânica e caráter desértico, o que lhe atribui fragilidades e singularidades, bem como enormes dificuldades para a convivência humana, características claramente perceptíveis em toda a história da ilha.

O desenvolvimento turístico das Canárias como um todo se deve, primordialmente, à paisagem e ao clima. Neste contexto, Lanzarote, consolidando o turismo em etapas posteriores às demais ilhas e formulando um projeto alternativo que tem por base as características identitárias de sua paisagem, fornece importantes referências no que concerne a um processo de transformações que tem no turismo elemento fundamental na busca pela qualificação urbana e territorial.

Com sua paisagem vulcânica marcada por muitas movimentações da crosta terrestre, Lanzarote tem um relevo pouco pronunciado, onde se destacam os maciços montanhosos de Famara, ao norte e Los Ajaches, ao sul. Na área central da ilha, El Jable, corredores de areia depositados pelo vento, caracterizam outros aspectos de sua singularidade paisagística. Os muitos episódios vulcânicos marcam fortemente a identidade espacial desses lugares, com destaque para o campo de lavas de Timanfaya, cujas últimas erupções se deram em 1824, e onde ainda hoje acontece forte atividade vulcânica.

Água, terra e fogo. A peculiar paisagem natural de Lanzarote
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

Esta espetacular paisagem tem colocado, ao longo de toda a história, imensas dificuldades ao estabelecimento humano. A estrutura agrária, que resultou da ação do homem frente às rigorosas condições colocadas pela natureza, tem produzido entornos excepcionais, que demonstram o trabalho contínuo de busca por melhores condições para o plantio: reacomodação do solo, busca e conservação da água, proteção aos fortes ventos. Exemplo deste labor histórico, La Geria (situada nas proximidades de Timanfaya), a mais conhecida das paisagens agrícolas insulares, demonstra toda a energia empregada pelos habitantes insulares na criação de condições de vida em tão difícil meio.

Condições excepcionais geradas pela natureza, aliadas a uma busca incessante pela sobrevivência, geraram para a ilha uma paisagem excepcional caracterizada por plasticidade e texturas pouco usuais. Fruto da necessidade e da pobreza, a ilha possui também um patrimônio arquitetônico que demonstra o processo de adaptação humana às condições do meio, onde o branco das arquiteturas, contrastando com o acentuado cromatismo dos solos insulares, cria contrastes de grande força plástica e paisagística, expressando a riqueza cultural do ilhéu.

Lanzarote: a paisagem transformada pelo trabalho humano
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

Em Lanzarote, o processo de implementação da atividade turística, acontecido na segunda metade dos anos 1960, foi posterior àquele ocorrido nas ilhas maiores como Gran Canária e Tenerife. Neste momento a ilha se encontrava numa situação de extrema pobreza, decorrência do declínio das atividades de agricultura e da pesca, apresentando também grandes carências em termos de infraestrutura e serviços. Reconhecidos os riscos territoriais e culturais que a atividade pressupõe aos territórios em que se impõe, haja vista o processo em ocorrência nas outras ilhas, a administração e lideranças locais visualizaram no turismo uma oportunidade de elevar os padrões de vida de sua população, bem como de pôr em relevo e salvaguardar seu patrimônio ambiental e paisagístico. Neste contexto se destaca o trabalho da equipe liderada pelo artista plástico César Manrique e pelo presidente do Cabildo, José Ramírez, cuja consciência do processo e atividade proativa lançaram as bases de um processo de planejamento e qualificação territorial que teria profundo impacto nas transformações por que passaria Lanzarote nas próximas décadas.

Este trabalho teve por base uma visão integral da ilha, sua paisagem e sua identidade cultural. Levou a uma procura por alternativas qualificadas para o desenvolvimento turístico, rechaçando a concentração no turismo massivo de sol e mar, bem como a homogeneização e desqualificação da paisagem motivada pela atividade, fato recorrente em outros lugares onde seu desenvolvimento ocorreu tão somente em função das forças do mercado.

Os procedimentos daí decorrentes, que incluíram fortes investimentos em infraestrutura, levaram à consolidação de uma forte imagem para Lanzarote. As intervenções territoriais realizadas objetivaram proteger os recursos naturais e culturais da ilha e permitiram aproximar a população e visitantes de seus principais recursos paisagísticos. Distribuídas por todo o território insular, criaram uma rede de percursos que hoje permite uma visão bastante integral de sua paisagem, seu território e sua gente. A criação dos Centros de Arte, Cultura y Turismo — CACT, cuidadosamente distribuídos pelo território insular, foi parte importante dessa estratégia, criando novos percursos, pontos de visitação e locais de gestão do processo de proteção socioambiental.

Em todas estas obras a participação de César Manrique foi fundamental, levando à criação uma linguagem artística e arquitetônica extremamente peculiar, que enaltece tubos vulcânicos e paisagens privilegiadas e recupera terrenos degradados, sobrepondo uma nova narrativa por sobre o já espetacular território insular. O selo particular do artista se coloca em todas estas intervenções que incluem, também, a formulação dos princípios de planejamento que irão reger os destinos da ilha, na elaboração de medidas de salvaguarda do patrimônio natural e na elaboração de planos de ordenação de conjuntos urbanos e novas edificações. Num período caracterizado pela produção em série de espaços para o turismo, bem como de consumo indiscriminado de território, como acontecido nas demais ilhas do arquipélago, este trabalho exemplifica estratégia meio-ambiental extremamente interessante, que teve profundos impactos sobre os destinos da ilha, criando novas formas de sua população identificar-se com sua base territorial, bem como levando a um reconhecimento internacional que tem na elevação da ilha à condição de Reserva da Biosfera pela Unesco em 1993 um seus episódios mais significativos.

A consolidação de uma linguagem artística

A maturidade na expressão pictórica de Cesar Manrique. Obras expostas na Fundação César Manrique
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

"Desde siempre mi curiosidad ha sido lo que ha marcado mi trayectoria, lo que ha enriquecido mi alma, para saber y meterme en todos los resquicios de la tierra con mirada escrutadora, con mirada analítica de búsqueda total, en las infinitas formas, texturas y colores, en una constante revelación y sobre todo con una fascinación difícil de explicar al entender que en ese placer de observación había en mí una especie de integración y de comprensión absoluta. La naturaleza me daba generosamente lo que otros no veían ni entendían" (1).

César Manrique nasceu em Arrecife (Lanzarote), em 1919. Podemos observar nas reminiscências do artista, espalhadas nos diversos texto que escreveu, o quanto o convívio com a natureza e a cultura de Lanzarote vão marcar profundamente sua obra futura. Seu compromisso com a paisagem da ilha vem desde sua infância, com o desfrute de sua particular geografia e a consideração pelo considerável trabalho de seus moradores para tornar habitável o lugar.

Marcando primeiramente sua pintura, estas circunstancias vão constituir-se, também, na base fundamental da defesa do território insular, labor a que dedicou boa parte de suas energias. A força da geomorfologia insular e as dificuldades provindas do vento, da aridez e da ausência de água constituíram bases do trabalho artístico que desenvolveu, que tem também, como fonte de inspiração e motivação o engenho dos habitantes insulares no sentido de criar formas de subsistência em tão difícil ambiente.

Neste contexto, a plástica, as texturas e as cores do complexo geológico de Timanfaya, com mais de 25 vulcões, alguns em plena atividade, pode ser claramente percebido na expressão plástica madura do artista. É esta força da natureza, representada principalmente pelo fogo e pela lava, que vai sendo gradativamente incorporada em sua pintura e em suas obras de arquitetura, em especial nos Centros de Arte, Cultura e Turismo que projeta para a ilha.

Outra fonte de inspiração fundamental para o trabalho do artista encontra-se na arquitetura popular da ilha, que expressa o sucessivo processo de adaptação às dificuldades do lugar. As modestas construções espalhadas por todo o território ressaltam um conhecimento histórico acumulado e uma integração ao entorno que respondem a necessidades muito básicas a partir de poucos recursos disponíveis. Esta arquitetura foi exaustivamente estudada, tendo sido muitos os recorridos que César Manrique fez pela ilha no sentido de levantar, sentir, fotografar e desenhar exemplares deste patrimônio surgido do saber popular.

No livro Lanzarote, arquitectura inédita (2), esta arquitetura passa a ser o mote principal, numa bela homenagem aos construtores anónimos de tão expressiva manifestação cultural. A partir dos estudos realizados, que incluíram levantamentos de campo minuciosos, Cesar Manrique reconhece valores de modernidade, preconizando a possibilidade de utilização de seus princípios estruturais nas novas construções da ilha. Tal atitude permitiria manter, a partir de uma aplicação não mimética, valores arquitetônicos consolidados historicamente, evitando os efeitos desastrosos que a multiplicação de empreendimentos turísticos disseminava pelo território insular.

A nova arquitetura construída em Lanzarote, a partir dos anos 1950, com a chegada do turismo, foi duramente criticada pelo artista, que passa a defender tanto a possibilidade de aplicação de princípios arquitetônicos consolidados na arquitetura popular da ilha quanto a necessidade de integração à natureza e à paisagem como princípios fundamentais para as novas construções. A melhor maneira de verificar como estes princípios se consolidaram na construção de sua particular linguagem arquitetônica pode ser observada a partir da análise de sua vastíssima obra construída. Se destacam, neste contexto, suas moradias construídas em Tahíche e Haría e, principalmente, os Centros de Arte, Cultura e Turismo. Destacaremos, neste trabalho, estes centros como, exemplos máximos de expressão de sua linguagem artística, numa busca de desenho integral que correlaciona, arte e natureza, arquitetura, paisagem, pintura, escultura e mobiliário.

"Meditando, observando y estudiando, llegué a la conclusión de que podía enriquecer de una nueva manera la difusión del arte en un sentido más amplio y didáctico, tratando de seleccionar lugares naturales para introducir en un gran espacio la pintura, la escultura, la jardinería etc., logrando algo, en donde he comprobado el éxito educativo de los numerosos visitantes de estos lugares sugestivos, y que he llamado: simbiosis Arte-Naturaleza/Naturaleza-Arte” (3).

Arte total: a arquitetura revelando a ilha e suas paisagens 

Lanzarote: unidades de paisagem, redes de infraestrutura e distribuição dos Centros de Arte, Cultura e Turismo
Elaboração Almir Francisco Reis

Após inúmeros processos de reconhecimento, bem como delineadas as diretrizes gerais de atuação por sobre o território insular, a construção dos Centros de Arte, Cultura e Turismo fizeram parte de uma ampla estratégia de impulsionar o desenvolvimento de Lanzarote, através da criação de uma rede de pontos de interesse que permitissem o reconhecimento e a proteção de suas diversas paisagens e ecossistemas naturais. Estes centros, instalados em lugares paradigmáticos da ilha ou recuperando terrenos degradados, propiciam uma nova leitura do território, valorizando as preexistências naturais e aquelas construídas no seu devenir histórico.

"Una vez evidenciadas las grandes posibilidades paisajísticas de la isla, la segunda acción iba dirigida a realizar una serie de intervenciones en el territorio con el objetivo de estructurar, poner en valor y proteger el legado cultural y paisajístico insular, adecuando aquellos espacios naturales que por si mismos ofrecieran un atractivo singular y construyendo en aquellos otros lugares emblemáticos de la isla una serie de dispositivos que permitieran el ocio y el disfrute del visitante. La disposición de estos hitos dispersos en el territorio y diseñados como unidades de gestión paisajística dio lugar a la creación de una red insular que permite, también a día de hoy, obtener una visión integral del territorio y de sus gentes"(4).

Foram construídos cinco destes centros entre 1960 e 1974: a Cueva de los Verdes, os Jameos del Agua, a Casa-Museo Monumento al Campesino, as intervenções nas Montañas del Fuego e o Mirador do Río. Em períodos posteriores são construídos o Museu Internacional de Arte Contemporâneo e o Jardín de Cactus.

A primeira dessas intervenções acontece com La Cueva de los Verdes, tubo vulcânico que é aberto a visitação através da melhoria de acessos, sinalização e um projeto de som e iluminação para a apresentação de espetáculos musicais. Revelando o subsolo vulcânico da ilha, a obra impressiona pela delicada relação estabelecida entre a preexistência natural e os novos usos propostos, abrindo espaço para uma linguagem artística que se consolidaria nas futuras intervenções.

Cueva de los Verdes
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

É também junto a um espetacular tubo vulcânico o próximo projeto realizado: Los Jameos del Água. Aqui César Manrique consolida plenamente seu ideário estético a partir de um desenho de totalidade pleno de significados que revela e exalta a beleza própria do lugar. A terra, o fogo (expresso pela lava petrificada), a agua e o ar se unem para compor um lugar de excepcional qualidade artística, arquitetônica e paisagística, onde as preexistências naturais e os novos elementos adicionados se unem na consolidação e ressignificação do lugar.

Jameos del Água
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

O trabalho realizado nas Montañas del Fuego, no lugar que a partir de 1974 passou a constituir o Parque Nacional de Timanfaya, foi inaugurado em 1969. O parque, de origem vulcânica, conta com mais de 25 vulcões, cujas ultimas erupções aconteceram em 1824. As obras realizadas incluem um itinerário cuidadosamente planejado no sentido de revelar as principais características geomorfológicas e paisagísticas da área, bem como a construção de um edifício mirante, o restaurante El Diablo, centro de acolhida para visitantes. Edificação compostas por dois círculos entrelaçados, El Diablo aproveita a energia térmica proveniente do terreno tanto para a cozinha como para diversas experiências que colocam o visitante em contato íntimo com o caráter vulcânico do lugar. A construção apresenta formas geométricas bastante puras, com planta constituída a partir de dois círculos justapostos que, contrastando com a peculiar paisagem conformada pelas montanhas de lava do entorno, expressa espetáculo de grande valor plástico e artístico.

Timanfaya
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

Famara é o principal maciço montanhoso de Lanzarote. Situado ao norte da ilha, em território dos municípios de Teguise e Haría, é de origem vulcânico, com montes que chegam a 670 metros de altitude. Na vertente oeste forma grandes penhascos em direção ao mar, que criam vistas espetaculares. O estreito que separa Lanzarote da ilha Graciosa, cria uma das principais destas vistas propiciando, também, a observação das Salinas de El Río e do Arquipélado Chinijo. Este foi o ponto escolhido para uma das mais paradigmáticas intervenções de César Manrique: o Mirador del Río. Para tão poderosa paisagem, o artista propõe ao visitante uma imersão na natureza, criando condições de acessibilidade e condicionando o espaço natural através de técnicas bastante miméticas que dialogam com o entorno rochoso. As formas extremamente orgânicas da intervenção descortinam a esplêndida vista através de grandes aberturas, propiciando uma plena vivencia dos atributos paisagísticos locais.

Mirador del Rio
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

No centro geográfico de Lanzarote, num significativo cruzamento de caminhos que acedem a muitos pontos da ilha, destaca-se uma obra carregada de referências simbólicas: o conjunto arquitetônico da Casa Museo del Campesino. Isolada sobre o horizonte, a escultura monumental “Fecundidad”, dedicada ao trabalhador rural da ilha, preside a composição, composta por diversas construções baseadas na tradicional arquitetura local. Exposições dedicadas à cultura agrícola e tradições insulares se justapõem a equipamentos turísticos como restaurantes e lojas de artesanato.

Casa Museo del Campesino
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

O Museo Internacional de Arte Contemporáneo situado em Arrecife, capital da ilha, propicia a criação de uma potente infraestrutura cultural, através da reabilitação de um imóvel histórico, o Castillo de San José, fortificação do século 18. Além do acondicionamento da construção existente, em ruínas quando do início do processo, se constrói um restaurante em sua base, cujas formas orgânicas se mimetizam e proporcionam grandes visuais para o entorno.

El Jardín de Cactus, construído em 1990, é um dos últimos centros projetados por César Manrique. Constitui exemplo magnífico de sua proposta artística através da manutenção do vínculo, indissolúvel para o artista, entre arte, natureza, cultura e entorno local. Situado na localidade de Guatiza, município de Teguise, em uma paisagem marcada pelo cultivo da cochonilha, o conjunto se implanta por sobre um terreno degradado por operações de mineração de areia, recriando a topografia e condicionando a visitação. Nos 5.000m2do centro são plantadas mais de 1.100 espécies diversas de cactos e suculentas que, associados aos caminhos, construções, movimentações topográficas e um moinho recuperado criam rica e inusitada paisagem.

Jardín de Cactus
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

A obra construída de Cesar Manrique vai muito além da Construção dos Centros de Arte, Cultura e Turismo destacados acima, expandindo-se também para outras localidades espanholas: miradores en La Gomera, equipamentos turísticos e parque em Tenerife e Ceuta, etc. O destaque dado aos Centros de Arte, Cultura e Turismo construídos em Lanzarote deve-se tanto ao ineditismo plástico e paisagístico destes conjuntos quanto à importância de seu papel como estruturadores de um roteiro de visitação e preservação da ilha como um todo. Ou seja, exemplos de inserção em paisagens poderosas e ao mesmo tempo delicadas, são propostos também no contexto de uma estratégia global de desvelamento do território, tanto para turistas quanto para os moradores locais e, principalmente, como elementos impulsionadores de um processo de desenvolvimento turístico que se propõe diferenciado pela qualificação e consideração das condições socioculturais e paisagísticas locais.

No contexto de Lanzarote há que se destacar entre suas obras arquitetônicas, também, as moradias construídas pelo artista, em especial aquela em Tahíche, finalizada em 1968. Verdadeiro laboratório, onde o artista experimentou e sedimentou sua expressão plástica, esta construção se localiza sobre uma torrente de lava, tirando proveito de vazios e tubos vulcânicos no seu partido espacial. Os dois níveis que conformam sua estrutura espacial conjugam tanto o estabelecimento de estreitos vínculos com o lugar e sua geomorfologia quanto a reutilização crítica de elementos e formas vernáculas. Hoje a construção abriga a sede da Fundación Cesar Manrique, conjugando o papel de centro cultural extremamente dinâmico à função museológica, através da guarda do sugestivo acervo pessoal do artista.

Fundación César Manrique
Fotos Almir Francisco Reis, dez. 2013

Uma proposta territorial implicita 

"Queremos centrarnos, en cambio, en destacar el compromiso de César Manrique con el paisaje de su isla, que antepone incluso a su oficio de pintor, y mostrar cómo durante los años sesenta y setenta formula un verdadero proyecto territorial para Lanzarote, proyecto que imagina inicialmente de forma tentativa e individual, y que se va precisando, explicitando y construyendo de forma colectiva con el paso de los años. Quisiéramos, en definitiva, reivindicar la actualidad de su legado, de un magnífico ejemplo de cómo mirar hacia el futuro y aprender a respetar nuestro territorio y nuestra cultura, que es tanto, nos recuerda José Saramago, como respetarnos a nosotros mismos"(5). 

Como ressaltado, o trabalho de César Manrique, incorporando muitas dimensões artísticas e culturais e um profundo compromisso com a paisagem de sua ilha, quando visto em seu conjunto, formula, de modo implícito, um verdadeiro projeto territorial para Lanzarote. Este projeto, que se estendeu pelos anos 1960 e 1970, envolveu também uma série de outros personagens da ilha. Esta é uma dimensão fundamental da obra do artista, muito pouco explicitada, na medida em que os principais estudos existentes centram-se em sua obra plástica e arquitetônica (6).

Trabalhos mais recentes (7) destacam esta faceta da obra de César Manrique que, além de ter fornecido a Lanzarote uma alternativa qualificada de desenvolvimento socio-social apoiada no turismo como um de seus motores principais, nos aponta possibilidades que esta aposta encerra e possíveis estratégias no sentido de sua efetiva implementação.

Estes trabalhos revelam alguns pontos fundamentais que explicitam a proposição territorial implícita no trabalho do artista e seus companheiros: o levantamento das características naturais e das adaptações históricas do território feitas por seus habitantes no processo de desenvolvimento histórico; a consolidação de um diagnóstico da situação existente, bem como das possíveis alternativas de futuro; a construção de infraestruturas de suporte; a necessária articulação institucional e a construção da imagem da ilha como um destino sensível, que tem por base tanto a proteção do rico patrimônio natural e construído quanto a qualificação das condições de vida de seus habitantes.

O reconhecimento e a documentação minuciosa das características territoriais de Lanzarote foi realizado através de um trabalho levado a cabo desde a adolescência de César Manrique. A partir de 1963 este trabalho é assumido de modo mais sistemático pela administração insular que se compromete efetivamente com a ideia de levar adiante um processo de desenvolvimento baseado no potencial paisagístico e humano da ilha. Desvelar, documentar e difundir a paisagem e os modos de vida existentes foram passos fundamentais no processo de envolvimento de moradores no processo, bem como de chamar a atenção internacional para Lanzarote.

Se o conhecimento das características paisagísticas e culturais de Lanzarote revelou as incríveis potencialidades da ilha, o estado socioeconômico observado tornou evidente a necessidade de busca de alternativas. A aposta num turismo diferenciado como forma de alavancar o desenvolvimento socioeconômico foi assumida desde os primeiros momentos de trabalho. Não repetir o ocorrido nas demais ilhas do arquipélago canário – massificação, destruição de características paisagísticas, ambientais e culturais – virou palavra de ordem. Engajar moradores fazendo-os participantes ativos do processo, proteger o patrimônio natural e cultural, bem como dotar a ilha de uma infraestrutura que viabilizasse e qualificasse o ambiente de vida foram as diretrizes que orientaram as atuações que se sucederam.

Muitos foram trabalhos no sentido de garantir para a ilha uma adequada infraestrutura. Há que se destacar, primeiramente, a necessidade de garantir água, um escasso bem em Lanzarote. A adaptação do aeroporto para o recebimento de voos internacionais e a construção de uma adequada rede de vias que permitissem o necessário deslocamento pelo território insular foram passos fundamentais, construídos paulatinamente no sentido viabilizar o processo.

Em todas essas intervenções o selo particular do artista comparece, seja na escolha do traçado viário mais conveniente, no acondicionamento das redes infra estruturais às características da paisagem ou no desenho de equipamentos que, a exemplo dos Centros de Arte, Cultura e Turismo, qualificaram condições de visitação e vivência. Do mesmo modo, Manrique interviu diretamente, também, na redação de diversos documentos que levaram ao estabelecimento de medidas de proteção ambiental, delimitaram parques naturais e estabeleceram cuidadosos planos de ocupação urbano-turística.

Incansável ativista e articulador, Manrique teve participação ativa na construção de um marco operativo que permitiu a realização do projeto como um todo. Militância, articulação institucional e um grande esforço de imaginação e projeto consolidaram processos de proteção e qualificação da paisagem de Lanzarote. A afirmação da ilha como um destino sensível deve-se, em muito, a uma vida de trabalho e engajamento profissional e político. Os projetos arquitetônicos e paisagísticos elaborados, com os Centros de Arte, Cultura e Turismo em destaque, enaltecendo paisagens naturais e recuperando terrenos degradados, são parte fundamental da estratégia desenvolvida, podendo ser entendidos plenamente somente a partir do contexto propositivo que lhes deu pleno significado.

Considerações finais

O processo por que passou Lanzarote nos demonstra as possibilidades de atuação no sentido da qualificação territorial embasada na riqueza expressa por sua natureza e sua gente. Imaginação e construção coletiva perpassaram toda a experiência. O envolvimento de diferentes atores e instituições e, fundamentalmente, a perspectiva de um trabalho que incorpora a criatividade e a arte em todas as suas etapas de pensamento e implementação constituem referências obrigatórias para trabalhos de planejamento urbano e territorial.

As intervenções propostas, e paulatinamente realizadas, expressam ideário extremamente pertinente, especialmente em tempos em que as questões de sustentabilidade ambiental e social ocupam o foco das atenções. Voltadas para um espaço singular, qualificam a ilha e preparam o território para um inevitável desenvolvimento turístico, que é pensado em todas as suas dimensões e escalas.

As paisagens litorâneas têm passado, em todo o mundo, por transformações radicais a partir do desenvolvimento turístico. Destruição de ecossistemas naturais, massificação e especulação imobiliária desenfreada caracterizam uma realidade também no caso brasileiro. A busca de alternativas a esta triste realidade pressupõe o estudo de experiências paradigmáticas, e o caso de Lanzarote nos oferece um conteúdo extremamente rico de ideias testadas e efetivamente implementadas.

Este ideário expressa a necessidade da antecipação dos processos de planejamento à efetiva implementação do turismo, bem como a possibilidade de implementação de um projeto a partir de ações paulatinas, pensadas a partir de uma visão do todo. Caracteriza-se, também, com um projeto que tem por base o patrimônio natural e cultural dos lugares onde se implanta; que oferece novos possibilidades de vida, e reabilita espaços degradados e que, a partir da administração pública, incorpora grande número de atores e reverte suas ações na qualificação da vida dos moradores locais.

A criação do espaço turístico contemporâneo tem se dado, majoritariamente, a partir da criação de verdadeiros espaços de ficção, construindo simulacros que nada tem da realidade em que se implantam. A opção imaginada e construída em Lanzarote, em tempos hoje já remotos, vai na contramão dessa tendência, reconhecendo que a paisagem não constitui mero suporte, mas fundamento imprescindível de qualquer transformação que, reforçando valores identitários locais faz frente a dinâmicas homogeneizadoras globais.

notas

1
MANRIQUE, César. Lo que siento al ver donde estoy. In MANRIQUE, César. Escrito en el fuego. Edirca, Las Palmas de Gran Canaria, 1988.

2
MANRIQUE, César (org.). Lanzarote, arquitectura inédita. Lanzarote, Edição de César Manrique, 1974.

3
MANRIQUE, César. La palabra encendida. Leon, Universidad de Leon, 2005.

4
ZAMORA, Antonio; SABATE, Joaquín. Bases para el subconciente territorial: el proyecto de Lanzarote. In Revista Iberoamericana de Urbanismo n. 02. Barcelona, Universidade Politécnica da Catalunha, 2009.

5
SABATÉ, Fernando; SABATÉ, Joaquín; ZAMORA, Antonio. César Manrique. La conciencia del paisaje. In DE LA ROSA, A. Jos; e SABATÉ, Joaquin. Cesar Manrique. La Conciencia del Paisage. Las Palmas de Gran Canária, Fundación Cajacanárias, 2013.

6
Com especial destaque para:

AGUILERA, Fernando Gómez. Arte y naturaleza en la propuesta estética de César Manrique. Atlántica, Revista de Arte y Pensamiento, n. 8. Las Palmas de Gran Canaria, 1994.

BORREGO, Fernando Castro. César Manrique: el juego es el linguaje. In Atlántica, Revista de Arte y Pensamiento, n. 4. Las Palmas de Gran Canaria, 1992.

RUIZ GORDILLO, Fernando. Cesar Manrique. Madrid, Fundacion Cesar Manrique, 1998.

SANTANA, Lázaro. Manrique. Edirca, Las Palmas de Gran Canaria, 1991.

7
Entre outros:

ZAMORA, Antonio; SABATE, Joaquín. Bases para el subconciente territorial: el proyecto de Lanzarote. Revista Iberoamericana de Urbanismo, n. 2. Barcelona, Universidade Politécnica da Catalunha, 2009.

SABATÉ, Fernando; SABATÉ, Joaquín; ZAMORA, Antonio. César Manrique: la conciencia del paisaje. In DE LA ROSA, A. José; SABATÉ, Joaquin. Cesar Manrique. La Conciencia del Paisage. Las Palmas de Gran Canária, Fundación Cajacanárias, 2013.

sobre os autores

Almir Francisco Reis é doutor em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP, 2002); Pos-Doutor (ETSAB-UPC, 2013) e professor associado da Universidade Federal de Santa Catarina.

Joaquín Sabate Bel é doutor em Urbanismo (ETSAB-UPC, 1987), diretor do Departamento de Urbanismo e Ordenação Territorial da Universidade Politécnica da Catalunha (1992-99); Fundador do Laboratório Internacional de Paisagens Culturais e director da la revista ID Identidades: Territorio, Cultura, Patrimonio.

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223.00 arte e paisagem
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223

223.01 ensino

Intervenção parasita para ativação do contexto local

Uma prática pedagógica no ateliê de projeto

Hélio Hirao and Evandro Fiorin

223.02 arquitetura moderna

Dinâmica imobiliária e preservação da arquitetura moderna em Fortaleza

O passado, o presente e o futuro em questão

Ricardo Alexandre Paiva and Beatriz Helena Nogueira Diógenes

223.03 patrimônio

Incêndio e reconstrução

“Com’era, dov’era”, uma história que se repete

Juliana Prestes Ribeiro de Faria, Laura Bicalho de Melo Duarte and Juliana Beatriz Rodrigues

223.04 estrutura

Forma-estrutura

Matriz de expressão tectônica da FAU USP

Monica Aguiar and Marcos Favero

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