A constatação de uma relativa ausência de análises estruturais em projetos da Arquitetura Moderna Brasileira é motivação para essa discussão, corroborada por Fernando Serapião ao narrar a trajetória de Roberto Zuccolo:
"Engenheiro de estruturas, professor de todos os arquitetos modernos saídos do Mackenzie e alinhados com a Escola Paulista, entre eles Paulo Mendes da Rocha. [...] Nas monografias e trabalhos acadêmicos de arquitetura, por exemplo, é difícil encontrar o nome dos calculistas, mesmo nos projetos em que a estrutura é o ponto de partida" (1).
A “estrutura como ponto de partida” mobilizou a caracterização do conceito forma-estrutura e a possibilidade de sua implementação se configurar como matriz de expressão tectônica de alguns edifícios. Estratégia que procura estabelecer vínculos transdisciplinares entre a Arquitetura e a Engenharia Estrutural.
O artigo está organizado em duas partes, sendo a primeira dedicada à caracterização do conceito forma-estrutura, partindo da diferenciação entre estrutura espacial arquitetônica e estrutura portante. A segunda consiste na análise do projeto e construção da Faculdade Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, a partir da conceituação desenvolvida na primeira parte.
Para tanto, foram definidas categorias de análise que relacionam Arquitetura e Engenharia Estrutural. Foram consideradas as categorias determinadas por H. Seymour Howard Jr. no trabalho Structure: An Architect’s Approach (2). Porém, estas mostraram-se insuficientes para uma análise transdisciplinar. Assim, para definir parâmetros consistentes que operassem de forma integrada à classificação de Howard, caracterizou-se outro conjunto de categorias que agregam aspectos empíricos e reflexivos: experiência profissional e no campo do ensino e pesquisa.
Segundo Kenneth Frampton, “o potencial tectônico completo de qualquer edificação se origina de sua capacidade de articular ambos os aspectos, poético e cognitivo, de sua substância” (3). Entende-se aqui essa articulação como a mediação entre Arquitetura e Engenharia Estrutural evidenciada pelo conceito de forma-estrutura que, implementado como princípio projetual, pode se configurar como matriz de expressão tectônica de certos edifícios, dentre os quais, o da FAU USP.
Forma-estrutura: conceituação
Forma-estrutura é um conceito, um dispositivo do pensamento que, de acordo com Carlos Brandão, pode ser considerado fruto de reflexões alimentadas por certa práxis; portanto, “não é uma invenção ex-nihilo, mas uma compreensão daquilo que efetivamente vivemos” (4). É neste espaço que se encontra a caracterização de forma-estrutura aqui trazida à discussão.
Ao analisar a obra de Affonso Eduardo Reidy, João Masao Kamita menciona “uma transição do livre exercício da sintaxe corbusiana para procedimentos de fusão e condensação expressiva entre forma e estrutura” (5).
Em comentário sobre o simbolismo pictórico de Gauguin, em contraposição à pintura “puramente visual” de Monet e Pissarro, Giulio Carlo Argan argumenta que, na obra de Gauguin:
"A forma é sempre uma representação, porquanto livre e interpretativa, do mundo exterior; [...] o que emerge é sempre um princípio estrutural, um principium individuationis, [...]. A forma nasce sempre de um processo de análise (6).
O conceito forma-estrutura procura caracterizar a fusão e condensação expressiva entre a forma e a estrutura, originada por um processo de análise que considera a criação do espaço arquitetônico inerente às condições estruturantes de sua materialização. O conceito tem, portanto, como principium individuationis a associação de forma e estrutura em uma única essência.
Será matriz de expressão tectônica quando a comunicação do processo construtivo se der pela percepção da “realização de um conceito intangível, no caso a estrutura, materializado pela construção, que ganha expressão visual através da tectônica”, caracterizando-se assim como uma manifestação particular de empatia no campo da Arquitetura, de acordo com Heinrich Wölfflin em Prolegomena zu einer Psychologie der Architektur (1886), como aponta Eduard Sekler (7).
Kenneth Frampton afirma que a propriedade expressiva da tectônica ativa a noção etimológica de techne, associando à mesma palavra a existência simultânea de arte e ofício. Tal associação indica o que está latente no trabalho levando o significado de techne a evidenciar uma condição ontológica de uma “coisa através da revelação de seu valor epistêmico” (8). Portanto, na expressão tectônica é intrínseco ao objeto construído um saber-fazer. Aqui, um saber-fazer que considera a geração da forma a partir da estrutura portante.
Ada Huxtable (9) e Guilherme Wisnik (10) corroboram o conceito quando, respectivamente, analisam projetos de Pier Luigi Nervi e João Batista Vilanova Artigas, nos quais apontam uma identidade fundamental entre a estrutura espacial e a estrutura portante. Essa associação implica a distinção entre uma e outra para que se compreenda como, em certas circunstâncias, podem adquirir identidade, como uma qualidade do que é idêntico, com paridade absoluta.
O termo espaço, configurando uma estrutura espacial, é recente na história da construção e adquiriu uma valorização que Adrian Forty atribui às proposições protomodernas elaboradas por Gottfried Semper, que considerava a delimitação espacial como propriedade fundamental da arquitetura. Semper influenciou arquitetos como Adolf Loos, H.P.Berlage e Peter Behrens que se manifestaram sobre o conceito em termos de "espaço habitável”, a “forma do espaço” e a “natureza do espaço”, incorporando o termo ao discurso arquitetônico no desenvolvimento do modernismo (11).
Desde a construção do abrigo mais primitivo a delimitação do espaço pela construção se deu por práticas construtivas empíricas. No entanto, com a Revolução Industrial surgiram novos paradigmas que alteraram essa condição e é apenas a partir daí que se pode abordar o significado de estrutura portante e independente, até então desconhecido no contexto da construção. Um primeiro conceito teórico sobre as estruturas se formou com Jean Rodolphe Perronet que, em 1770, associou a constituição dos esqueletos de animais ao sistema portante das edificações, permitindo o entendimento deste sistema como algo dissociado do todo edificado, assim como os esqueletos dos animais do restante de sua constituição (12). Em 1826, Claude Louis Marie Henri Navier elaborou uma teoria específica para as estruturas, analisadas a partir daí como um sistema (13), possibilitando a solução de problemas a priori, contrariando as práticas empíricas vigentes. Assim, a criação de um sistema estrutural abstrato, configurado em um modelo de análise, transformou-se em uma operação formal, possibilitando a materialização da estrutura portante na obra.
A associação da estrutura espacial à estrutura portante, como princípio projetual, manifestará a potência da estrutura na geração de espaços, cuja construção poderá se expressar tectonicamente.
Forma-estrutura: categorias de análise
Para explicitar o conceito forma-estrutura como matriz de expressão tectônica foram consideradas, inicialmente, as categorias de análise formuladas por H. Seymour Howard (14), sendo as estruturas:
- Mínimas: alto grau de eficiência mecânica com utilização mínima de material;
- Adequadas: atendimento a requisitos arquitetônicos específicos, podendo renunciar à máxima eficiência estrutural;
- Formais ou esculturais: elementos exagerados ou cujas formas refletem um uso não eficiente do material, apenas pela causa do impacto emocional;
- Pretensiosas: projetadas apenas pela novidade em si, por afirmação de atenção à forma.
- Porém, para o aprofundamento da análise, foi necessária a caracterização de outro conjunto de categorias articulando Arquitetura e Engenharia Estrutural:
- Imposição da forma: fator definidor da solução estrutural;
- Legibilidade estrutural: sistema portante como presença espacial, perceptível empiricamente por meio de experiência empática;
- Materialidade estrutural: produto do processo construtivo e instrumento de comunicação de uma ideia.
Na análise da FAU USP é relevante considerar: onde os limites de imposição da forma se colocaram e em que medida essa imposição interagiu com a Engenharia Estrutural; com que clareza a legibilidade estrutural se manifesta e seu reflexo na expressão tectônica; como o processo construtivo se mostra na materialidade estrutural e o que essa condição pode comunicar.
Forma-estrutura: FAU USP
Projeto: 1960-1962 / 1965-1966
Construção: 1966-1969
Projeto de Arquitetura: Arquitetos João Batista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi
Projeto Estrutural: Escritório Técnico Figueiredo Ferraz – Engenheiro José de Almeida Castanho
Para Felipe Contier, o projeto da FAU USP foi uma missão, “uma arquitetura para representar a própria arquitetura no conjunto da universidade” (15). Templo é a palavra definidora daquela espacialidade, onde um peristilo encimado por um entablamento informa ao sujeito que este se encontra diante de algo imponente e francamente penetrável. Ali o corpo social é prioridade, a compreensão do todo espacial é imediata e, naquele espaço, o discurso de Artigas se impõe. Para Forty o edifício exibe contrastes entre peso e leveza, e também entre a tecnologia e o arcaico:
"Artigas e seu engenheiro enfrentaram um grande problema para criar o efeito de tanto sendo sustentado por tão pouco. O que eu acho notável neste edifício é o contraste entre, por um lado, a extrema elegância e sofisticação da engenharia estrutural, e por outro a rudeza de sua execução" (16).
Externamente vê-se uma caixa maciça que, internamente, revela-se um invólucro esbelto onde se inserem “edifícios dentro do edifício” (17). Os pilares externos extrapolam sua função portante e se mostram como esculturas prismáticas. No interior o movimento é contínuo, conduzido por rampas que sobem aos níveis superiores. A caixa é encimada por uma cobertura em grelha plana cujos vazios são cobertos por placas translúcidas proporcionando iluminação zenital.
Imposição da forma
Ao descrever o projeto Artigas se refere a um ponto que interessa a essa análise: “A sensação de generosidade espacial que sua estrutura permite aumenta o grau de convivência, de encontros, de comunicação” (18). Estratégia projetual que denota intenção de associar as estruturas portante e espacial.
Os primeiros esboços do projeto mostram uma caixa de concreto suspensa sobre rampas de circulação, apoiada em pilares distribuídos em uma planta quadrada. Já no início a monumentalidade era determinante e vinculada ao que Sophia Telles descreve como uma “filiação aos projetos corbusianos quanto à ortogonalidade e ao uso de empenas estruturais que são típicas da referência mediterrânea de Le Corbusier, dentro da tradição mais ampla do projeto quanto à verdade dos materiais e às estruturas aparentes” (19).
Artigas, em seguida, considera manter os pilares nas extremidades da caixa, inclinar os pilares e as bordas do edifício ou recuar os pilares para o centro, deixando as extremidades em balanço. Todas decisões de caráter espacial vinculado ao caráter estrutural.
Por fim, evolui para uma planta retangular e chega ao que se transformaria no projeto final. Observa-se em planta baixa o posicionamento lateral das rampas, o pátio central, a ocupação periférica e certa modulação de pilares. A perspectiva mostra as relações de proporção garantidoras da monumentalidade e a distribuição dos pilares da fachada, mantendo os quatro cantos do entablamento em balanço.
Durante todo o processo o conceito da forma-estrutura está presente: a forma surge vinculada à estrutura portante. A expressão tectônica que resulta dessas decisões se dá por meio da experiência em um espaço onde a relação entre arte e técnica provoca a “sensibilidade governada pela razão”, que Telles explicita como “operação moderna”, na qual a “forma, enquanto percepção imediatamente sensível, será ao mesmo tempo a razão em ato” (20).
Estabelecendo uma modulação de 11m x 11m em uma grelha de eixos perpendiculares entre si (21), Artigas condiciona o projeto a uma solução estrutural específica enfatizando a racionalidade, com reflexos na distribuição do programa em espaços singularizados pela configuração de planos verticais descontínuos de fachadas internas, pela execução de balanços e recuos, gerando ambientes organizados de maneira flexível, em meio à presença da estrutura portante. Em entrevista realizada em 1978, Artigas descreve como se deu a depuração da forma:
"Tinha de ser um prédio sem a menor concessão a nenhum barroquismo, que tivesse insinuações de uma extrema finura, para dizer que partia de um bloco inerme. O resto, de uma tremenda simplicidade, compreensível para qualquer um. Que não tivesse nenhuma loquacidade, nenhuma veemência no discurso, nenhuma concessão barroca, nada. [...] Não chega a ser nada. [...] Não tem porta de entrada"(22).
O “nada” resultou em um projeto estrutural complexo gerado pela imposição da forma, com problemas como: o estabelecimento da modulação de 11m vinculada a uma espessura máxima de 80cm para as lajes, cuja solução foi o emprego de lajes nervuradas com caixão perdido; a duplicação do módulo central mantendo-se a espessura de 80cm para as lajes, decisão que obrigou o emprego do concreto protendido; e as seções variáveis dos pilares dos pórticos em “complexificação quase barroca” (23), enfatizando as condições de equilíbrio da edificação pela materialização da separação entre os pilares e sua base tronco-piramidal, desvinculando a superestrutura da infraestrutura que emergia do solo, como se vê nos desenhos de fachada.
O discurso de livrar o projeto da FAU USP de todo “barroquismo”, dotando-o de “tremenda simplicidade”, no entanto, é bastante contraditório visto que esta foi conquistada pela complexidade técnica das soluções estruturais, sem falar no custo financeiro a elas inerente, sobre os quais o então diretor da FAU USP, Pedro do Amaral Cruz disse:
"O esquisito projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo conduziu a uma estrutura de concreto totalmente afastada dos cânones usuais, com um volume tremendo de concreto protendido, tendo como consequências: um preço exagerado para a estrutura, e um prazo dilatadíssimo para sua construção" (24).
O projeto foi qualificado por Castanho, engenheiro estrutural responsável, como um trabalho de “relojoaria” (25), tal o grau de minúcia exigido no seu cálculo e detalhamento.
A imposição da forma nas seções dos pilares é problemática, pois o pilar deixa de ser definido pela carga que suportará. Nota-se, em uma estimativa geral de cargas, que os pilares dos pórticos são os menos carregados e os pilares internos os mais carregados, e que as seções transversais dos pilares internos são menores do que as dos pilares dos pórticos, havendo ali uma desproporcionalidade que contraria princípios de dimensionamento da Engenharia Estrutural.
Segundo Howard essa seria uma estrutura adequada, aquela possível em atendimento a requisitos arquitetônicos específicos, que é o caso dos pilares internos e das lajes nervuradas com 80cm de altura, padronizadas independentemente do carregamento ou vãos a serem vencidos.
Quanto aos pilares externos, além da relação de seu desenho com as cargas ser relativizada, o formato precisou ser alterado com relação à proposição inicial.
Segundo Castanho não foi possível executar essas articulações e precisou-se manter a monoliticidade ao longo de todo o comprimento, marcando-se a junta apenas superficialmente em um baixo relevo de 3cm (26). Esse detalhe específico, que caracterizaria a “materialização de um conceito estrutural através da construção” (27), precisou se revelar apenas figurativamente.
Apesar de Wisnik argumentar que existe em Artigas uma severa moral construtiva que procura explicitar a “mecânica da construção, legível nas cargas e empuxos que determinam o desenho dos pilares” (28), aqui isso não foi possível, predominando o que Howard classifica como uma estrutura formal ou escultural, ou seja, aquela em que os elementos são exagerados ou cujas formas refletem um uso não eficiente do material, apenas pela causa do impacto emocional. Esse aspecto do projeto da FAU USP é uma evidência de que “o arquiteto é o mestre inquestionável da expressão tectônica” (29).
O pórtico possui expressão tectônica inegável, que Sekler identifica nos templos gregos do Paestum e do Parthenon como “o gesto nobre que torna visível um jogo de forças, de suporte de cargas em colunas e entablamentos, suscitando nossa própria participação empática na experiência” (30). É ali que o impacto emocional a que Howard se refere pode ser entendido como uma experiência empática observada por Forty quando menciona o “tanto sendo sustentado por tão pouco” (31).
A expressão tectônica desses pórticos também revela um valor epistêmico inerente (33) e coerente com o discurso de Artigas, que atribui à “exuberância formal” e à “audácia técnica” de sua arquitetura a capacidade de superar uma “realidade social caracterizada pelo atraso de sua infraestrutura” (33). Ainda segundo Artigas: “O edifício criado pelo homem, assim como tudo que é criado por ele, prevalece no conjunto do ambiente com a linguagem do autor, mas como a expressão de todo o conhecimento artístico da época em que foi feito” (34).
A imposição da forma no projeto da FAU USP é, portanto, um aspecto evidente que demandou da Engenharia Estrutural soluções inovadoras. Todavia, imposição que pode ser considerada a origem de um edifício no qual se materializa a associação entre arte, técnica e ofício; condição ontológica que se manifesta na expressão tectônica proveniente da matriz forma-estrutura.
Legibilidade Estrutural
A legibilidade estrutural em certos projetos de Artigas é questão intrínseca, pois, conforme Wisnik, ele fez da forma construída a expressão do seu comportamento estrutural, evidenciando “os esforços tectônicos da construção e seus vínculos dinâmicos” (36). Legibilidade, porém, que pode ser mais ou menos evidente. Neste sentido, interessa trazer certos aspectos do desenvolvimento do projeto vinculados à sua legibilidade estrutural.
Nas plantas baixas do estudo preliminar é possível observar cinco pilares na fachada longitudinal e três na fachada transversal, em modulação de 11m, duplicada nas fachadas.
Há uma indeterminação hierárquica de apoios nos vão das extremidades das fachadas. Seriam dois balanços independentes? As vigas transversais se apoiariam nas vigas longitudinais, ou vice-versa? Como se daria o caminho das cargas?
A evolução do projeto mostra que foram ampliados os espaços de circulação contínua retirando-se todos os pilares do eixo longitudinal central. Os pilares remanescentes das fachadas transversais seriam agora apenas dois, deslocados em meio módulo em direção àquele eixo.
Modificaram-se assim as configurações estruturais, pois duplicaram-se os vãos transversais centrais da estrutura, agora com 22m. A retirada dos pilares centrais criou para as vigas transversais da fachada três vãos, firmando a condição de balanços para as extremidades das vigas longitudinais, que passaram a dar apoio para as transversais, resolvendo a indeterminação do caminho de cargas.
Para solucionar estruturalmente os vãos de 11m e 22m foram executadas lajes nervuradas. Fixou-se, porém, o valor de 80 cm para altura das nervuras, a despeito do vão a ser vencido, obrigando a introdução da técnica do concreto protendido na construção, além de um espaçamento diferenciado de nervuras para solucionar as diferentes solicitações estruturais. Essa configuração foi disfarçada escondendo-se as nervuras com uma laje de fundo, dando a impressão visual de uma placa maciça, como se pode observar no desenho de corte transversal, que dá a dimensão da legibilidade do edifício como um todo, ratificando a condição de identidade fundamental entre estrutura espacial e estrutura portante.
Aqui é possível observar o paradoxo da adoção do sistema de lajes com caixão perdido no que tange ao “compromisso moral entre forma estética e verdade construtiva” (36).
A legibilidade estrutural no edifício da FAU USP se dá em três momentos. O primeiro com o sujeito no exterior do edifício, onde é nítida a presença de quatro pórticos paralelos dois a dois e perpendiculares entre si, informando visualmente o caminho das cargas.
Em um segundo momento, ao se entrar no edifício, observa-se as lajes dos pavimentos que se apoiam em pilares espaçados regularmente e, em uma extremidade, lajes inclinadas formando rampas de ligação entre os edifícios. A hierarquia clássica do caminho de cargas, ou seja, lajes que se apoiam em pilares que conduzem as cargas para as fundações é claramente compreendido, e aqui se constata a “forma visível e tangível que resulta do processo da construção” (37).
O terceiro se dá ao se olhar a cobertura a partir do pavimento térreo. Uma placa vazada composta de domos translúcidos se agiganta sobre os pavimentos e não fica claro o sistema estrutural que a constitui. A estrutura é completamente invertida e a verdade do processo construtivo vira um enigma. Criou-se um sistema composto de quatro vigas longitudinais medindo 1,90m de altura, que dão apoio a dezenove vigas transversais formando uma grelha. Apoiando-se nessa grelha há uma laje de 8cm de espessura, seccionada por elementos de concreto de seção transversal em “V” gerando domos vazados medindo 2,75m x 2,75m. O sistema estrutural da cobertura só pode ser visto por cima, ficando oculto aos olhos do sujeito que se encontra tanto no interior quanto no exterior do edifício.
No edifício da FAU USP o que se observa são soluções estruturais determinadas pela imposição da forma e que de certa maneira disfarçam a legibilidade e a verdade do processo construtivo, como no caso das nervuras embutidas nos caixões perdidos, e o baixo relevo dos pilares da fachada. O caso da cobertura é ainda mais emblemático, uma vez que sua estrutura é deliberadamente escondida. Por sua vez, talvez essa fosse a única maneira de fazer o que os alunos e professores consideram as janelas para o céu da FAU USP.
Materialidade estrutural
É relativamente raro, segundo Forty, encontrar um edifício que, como a FAU USP, seja simultaneamente primitivo e sofisticado. Primitivo pela materialidade rústica dos pórticos e tecnologicamente sofisticado pelo refinamento da Engenharia Estrutural que possibilitou sua realização (38). Neste sentido, na palavra de Artigas: “o concreto utilizado não é só uma solução mais econômica, como corresponde à necessidade de se encontrar meios de expressão artística, lançando mão da estrutura do edifício, sua parte mais digna” (39). Estava implícito que não seriam apenas os fatores técnicos e econômicos os vetores a direcionar o projeto. Decisão projetual que ampliou a expressão tectônica do edifício para além da leitura do caminho de forças, caracterizando, portanto, verdadeira experiência empática.
A estrutura no interior do edifício foi executada com um concreto bastante liso, cujas fôrmas foram preparadas com chapas de compensado e marcação sutil, resultando em um acabamento polido que remete a ambientes industriais enfatizado pela tinta epóxi brilhante do piso do Salão Caramelo.
Já o acabamento rústico da fachada, executado com justaposição de fôrmas de tábuas de pinho, foi obtido por posicionamentos diferentes: horizontal e vertical (40). Essa especificação deixa clara a intenção de enfatizar certa expressão tectônica, uma vez que o posicionamento das tábuas seria indiferente para o funcionamento estrutural.
A escolha dessa materialidade mostra qualidade arcaica (41) que enfatiza um trabalho manual, contrastando com o acabamento industrial do interior. Essa intencionalidade é identificada por Forty em seu comentário sobre o contraste entre a rudeza do material e o refinamento da Engenharia Estrutural.
Segundo Wisnik, poderia também servir para evitar uma “reificação do edifício como uma imagem desprovida de história e trabalho humano” (42), enquanto que, para Contier, seria uma “atitude contra o fetiche formal e a adesão estética imediata” (43). Para Forty, endossando intenções de Artigas, a arquitetura praticada em São Paulo naquela ocasião “desenvolveu meios de utilizar o concreto que escapariam do julgamento e dos valores estabelecidos por países do primeiro mundo, tornando-se imune à autoridade estrangeira sobre o assunto”, e o prédio da FAU USP demonstraria “o desenvolvimento desse discurso alternativo” (44).
Quaisquer que sejam as interpretações, é importante notar que a materialidade estrutural, áspera, lisa, irregular ou precisa, independe de sua capacidade resistente. A intencionalidade perceptível nas diferentes materialidades empregadas demonstra o controle do arquiteto sobre a expressão tectônica a partir da implementação do conceito forma-estrutura que gerou o projeto.
Considerações finais
Artigas exerceu com maestria o domínio da expressão tectônica no edifício da FAU USP, mesmo que para isso precisasse relevar certas contradições com relação ao seu discurso, principalmente no que diz respeito a algumas verdades construtivas.
A realização do projeto foi permeada pela ideologia do desenvolvimentismo no Brasil, que apesar de não ter se concretizado plenamente, cristalizou-se ali como testemunha de uma intenção, na qual os preceitos do “ideal modernista de se realizar uma arquitetura socialmente transformadora” (45) estão conjugados a um arrojo técnico e construtivo incomuns para a época, que se fez possível pela associação da Arquitetura com a Engenharia Estrutural, consubstanciada no princípio projetual da forma-estrutura. A expressão tectônica proveniente dessa associação manifesta uma condição ontológica e, por isso, epistêmica, mostrando-se como um retrato da época, que, no entanto, é sempre atualizado pelo valor de permanência agregado a esse edifício, fazendo dele um instigante objeto de pesquisa.
O edifício materializa, sobretudo, o discurso de Artigas, que acreditava na “vida própria” de sua obra como possibilidade permanente de, por meio dela, manter sempre aberta uma superfície de plena discussão ao afirmar: “e esse projeto, quando se cristaliza no edifício, fala para os séculos, ele não pode jamais parar de falar. Separa-se como um livro de seu autor, vira-se de costas para o próprio autor, passa a ter vida própria” (46).
notas
1
SERAPIÃO, Fernando. Uma história para ser contada: A saga de Roberto Rossi Zuccolo, professor de todos os arquitetos modernos saídos do Mackenzie e alinhados com a Escola Paulista. Projeto Design, n. 73, São Paulo, abr. 2009 <https://www.arcoweb.com.br/projetodesign>.
2
HOWARD, H. Seymour. Structure: An Architect´s Approach. New York, Mc Graw-Hill Book Company, 1966.
3
FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Chicago, John Cava, 1995, p. 26.
4
BRANDÃO, Carlos. Linguagem e Arquitetura: O problema do conceito. Revista Interpretar, n. 1, Belo Horizonte, nov. 2000, p. 1 <https://s3.amazonaws.com/academia.edu.documents>.
5
KAMITA, João Masao. Affonso Eduardo Reidy e o Brutalismo Paulista. In ZEIN, Ruth Verde (Org.). Caleidoscópio Concreto: Fragmentos de Arquitetura Moderna em São Paulo. São Paulo, Romano Guerra, 2017, p. 126.
6
ARGAN, Giulio Carlo. A arte moderna na Europa: de Hogarth a Picasso. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 426-437.
7
SEKLER, Eduard. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, George (Org.). Structure in Art and in Science. New York, George Braziller, 1965, p. 91-92.
8
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., p.23.
9
HUXTABLE, Ada. Pier Luigi Nervi. New York, George Braziller, 1960.
10
WISNIK, Guilherme. Artigas e a dialética dos esforços. Novos Estudos, n. 102, São Paulo, jul. 2015.
11
FORTY, Adrian. Words and Buildings. New York, Thames & Hudson, 2012, p. 256-257.
12
FORTY, Adrian. Op. cit., p. 279.
13
KURRER, Karl. The History of the Theory of Sructures: From Arch Analysis to Computational Mechanics. Berlin, Ernst & Sohn, 2008, p. 250.
14
HOWARD, H. Seymour. Structure: An Architect´s Approach. New York, Mc Graw-Hill Book Company, 1966, p. 8-17.
15
CONTIER, Felipe. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária: projeto e construção da escola de Vilanova Artigas. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2015, p. 256.
16
FORTY, Adrian. Concrete and Culture: A Material History. London, Reaktion Books, 2013, p. 126.
17
BAROSSI, Antônio (Org.). O edifício da FAU-USP de Vilanova Artigas. São Paulo, Editora da Cidade, 2016, p. 31.
18
FERRAZ, Marcelo (Org.). Vilanova Artigas. São Paulo, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi / Fundação Vilanova Artigas, 1997, p. 101.
19
TELLES, Sophia. Oscar Niemeyer, Técnica e Forma. In GUERRA, Abílio (Org.). Textos fundamentais sobre história da arquitetura moderna brasileira – parte1. São Paulo, Romano Guerra, 2010, p. 259.
20
TELLES, Sophia. A Arquitetura Modernista. Um espaço sem lugar. In GUERRA, A. (Org.). Op. cit., p. 23-34.
21
CONTIER, Felipe. O edifício da FAU-USP e os materiais do brutalismo. In Anais do X Seminário Docomomo Brasil. São Paulo, FAU USP, 2013 <http://www.producao.usp.br/handle/BPDI/43424>.
22
MARKUN, Paulo; ROIZENBLIT, Sergio. Arquiteturas: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FAU/USP, 2014 <https://www.youtube.com/watch?v=WRCzeyrqp-M.>.
23
WISNIK, Guilherme. Op. cit, p. 165.
24
CRUZ, Pedro do Amaral. Carta ao reitor, de 30 de agosto de 1965. Processo USP 65.1.3988.51.8, p. 6-8. In CONTIER, Felipe. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária: projeto e construção da escola de Vilanova Artigas (op. cit.), p. 287.
25
CONTIER, Felipe. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária: projeto e construção da escola de Vilanova Artigas (op. cit.), p. 279.
26
CONTIER, Felipe. O edifício da FAU-USP e os materiais do brutalismo. In Anais do X Seminário Docomomo Brasil (op. cit.), p. 6. <http://www.producao.usp.br/handle/BPDI/43424>.
27
SEKLER, Eduard. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, George (Org.). Op. cit., p. 89.
28
WISNIK, Guilherme. Modernidade Congênita. In ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian (Orgs.). Arquitetura Moderna Brasileira. London, Phaidon, 2004, p. 48.
29
SEKLER, Eduard. Op. cit, p. 94.
30
Idem, ibidem, p. 93.
31
FORTY, Adrian. Op. cit., p. 126.
32
FRAMPTON, Kenneth. Op. cit., p. 23.
33
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Caminhos da Arquitetura. São Paulo, Lech, 1981, p. 18.
34
ARTIGAS, 1984. In THOMAZ, Dalva. Vilanova Artigas. AU – Arquitetura Urbanismo, n. 17, São Paulo, out./nov. 1993, p. 78.
35
WISNIK, Guilherme. Modernidade Congênita. In ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian (Orgs.). Arquitetura Moderna Brasileira (op. cit.), p. 48.
36
KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas. São Paulo, Cosac Naify, 2000, p. 13.
37
SEKLER, Eduard. Structure, Construction, Tectonics. In KEPES, George (Org.). Op. cit., p. 93.
38
FORTY, Adrian. Op. cit., p. 127.
39
ARTIGAS, 1961. In FERRAZ, Marcelo (Org.). Op. cit., p. 101.
40
CONTIER, Felipe. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária: projeto e construção da escola de Vilanova Artigas (op. cit.), p. 303.
41
Como na casa Baeta (1956), alusão à concepção estrutural da “casinha de minha infância”, feita de tábuas.
42
WISNIK, Guilherme. Artigas e a dialética dos esforços. Op. cit., p. 154.
43
CONTIER, Felipe. O edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Cidade Universitária: projeto e construção da escola de Vilanova Artigas (op. cit.), p. 328.
44
FORTY, Adrian. Op. cit., p. 126.
45
ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian. Introdução. In ANDREOLI, Elisabetta; FORTY, Adrian (Orgs.).Op. cit., p. 17.
46
ARTIGAS, 1984. In THOMAZ, Dalva. Op. cit., p. 78.
sobre os autores
Monica Aguiar é engenheira civil (UFF, 1981) com especialização em Tecnologias no Ensino Superior (CCEAD/PUC-Rio, 2014), e mestrado em Arquitetura (PPGArq/PUC-Rio, 2017). Professora de estruturas no curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio desde 2012, e sócia do escritório Justino Vieira Monica Aguiar Projetos Estruturais desde 1983.
Marcos Favero é arquiteto e urbanista (FAU/UFRJ, 1987) com mestrado e doutorado em Arquitetura pela mesma instituição (Proarq/FAU/UFRJ, 2000 e 2009). Professor da PUC-Rio, atuando no PPGArq desde 2013, e no Curso de Arquitetura e Urbanismo desde 2002. Autor de Linhas Expandidas. Urbanismos de Fronteira: Brasil, Argentina e Uruguai (Ed. PUC-Rio, 2016).