Na atualidade, o descontentamento com a realidade se expressa, por vezes, forçosamente, na construção de idealidades sugestivas e sedutoras. A realidade, vista como imprópria, torna-se pressuposto para outras suposições de paisagens e lugares eficazes em suas novas semânticas, uma outra realidade, portátil, localizada, concentrada, na maioria das vezes pronta para uso, idealizada em seu novo ser onto-teleológico. A história e destino de duas linhas elevadas infraestruturais nos permite pensar sobre esse movimento do retorno transmutado daquilo que parece não ter mais lugar na própria história ou na realidade.
High Line em Nova York e elevado João Goulart, em São Paulo são duas linhas elevadas infraestruturais (ferroviária e rodoviária, respectivamente) que rasgaram parte do tecido das cidades. Com características físicas distintas, nasceram a partir de uma visão funcionalista de cidade, conectar áreas distantes e garantir melhor fluxo, de mercadorias e pessoas.
A história do High Line está diretamente relacionada ao Chelsea Piers, principal ponto de atracamento dos navios no fim do século 19 e início do século 20.
Além disso, a introdução da Hudson River Railroad motivou a transformação das ruas ao longo do rio, sendo ocupada de galpões, mercados e casas de abate. Isso fez com que tráfego de automóveis, trens, pessoas e charretes (meios de transporte predominantes no fim do século 19) aumentassem consideravelmente.
Frente a este cenário, foi implementado o West Side Improvement Project, projeto de reabilitação da área que contava com a construção do West Side Elevated Freight Railroad, ou New York City Railroad Viaduct, via elevada criada para aliviar o trauma e caos dos modais no nível da rua. A elevação à 9 metros de aproximadamente 21 quilômetros de linha férrea resultaria na eliminação de 105 cruzamentos no nível da rua e adicionaria 32 acres ao Riverside Park.
O High Line, com 2,4km (compreende apenas uma seção do West Side Elevated Railroad) foi então projetado em 1929 pela New York Central Railroad e o mega-empreendedor Robert Moses. O viaduto foi desenhado para passar não sobre as avenidas, mas atravessando os quarteirões. Esta decisão foi tomada para diminuir o impacto negativo normalmente relacionado com a existência de viadutos nos condados industriais próximos (por exemplo, Bronx, Brooklin). Uma das principais diretrizes da linha férrea era a sua conexão direta com as fábricas e armazéns, permitindo que os trens passassem pelo interior dos edifícios e que as empresas pudessem realizar o descarregamento direto da linha férrea para seus armazéns.
Foi então inaugurada em 1934 a linha férrea que conectava a West 34th Street ao Saint John´s Park Terminal. Porém, devido a diminuição do uso do trem decorrente da Depressão, 50% das atividades ferroviárias são canceladas. Décadas de abandono se passaram até surgirem movimentos da comunidade para transformação daquela infraestrutura elevada em um parque linear urbano. Associados ao concurso para sua reestruturação, projetos de arquitetos estrelados oriundos de inúmeros concursos arquitetônicos de temáticas diversas promoveram a transformação dos arredores.
Já o elevado João Goulart (conhecido por Minhocão) “é a maior obra em concreto armado de toda a América Latina, é uma via elevada que parte da praça Roosevelt, pela rua Amaral Gurgel, pela avenida São João, e chega até o largo Padre Péricles na avenida Francisco Matarazzo [...], esta obra com quase 3,5 km de extensão em via elevada, toda em concreto protendido, pré-moldado, com o custo de 37 milhões de cruzeiros novos aproximadamente, inaugura uma nova solução de sistema viário para a Cidade de São Paulo que já tem sido aplicada em outras capitais do mundo, ou seja, o trafego rápido em vias elevadas, sem nenhum cruzamento” (1).
Uma via expressa elevada, sem paradas, com aproximadamente 3,5 km, garante a ligação Leste-Oeste da cidade de São Paulo, atravessando a região central. Construída a partir de um gesto autocrático e com ênfase no planejamento rodoviarista, o elevado João Goulart (antigo elevado Costa e Silva, ex-presidente da época da ditadura militar), impôs-se na paisagem do centro como uma imensa sombra do poder autoritário, uma autêntica imago. Desde então, tem deixado profundas sequelas na vida urbana, essencialmente negativas até os anos 1980, quando começou a ser gradativamente fechado, por decreto (Lei do silêncio), para os automóveis a partir de um certo horário noturno e, posteriormente, aberto à população; no início, aos domingos e, na última década, no período noturno nos dias úteis, e aos fins de semana mais recentemente.
A intenção tem sido claramente de transformá-lo em um lugar para o lazer da população, mas seu futuro permanece incerto, dividido entre sua demolição ou completa transformação em um parque linear, como o High Line (que, por sua vez, já havia se inspirado no Viaduc des Arts em Paris). Essa perspectiva tem gerado um ainda tímido interesse do mercado imobiliário, mas nada comparável ao seu congênere nova-iorquino.
Sobre retornos e outrem espectral
Infraestruturas viárias obsoletas têm se tornado um tema urbano premente há algumas décadas. Suas permanências na paisagem urbana têm se tornado, ao mesmo tempo, persistência e reviravolta de alguns rastros suportados e deflagrados por elas. Há uma possibilidade simultânea de experiências e interpretações do espaço urbano a partir e em torno desses rastros infraestruturais. Foram escolhidos dois rastros infraestruturais como leitmotiv dessa discussão: elevado João Goulart em São Paulo e High Line, em Nova York.
Essa pulsão de arquivo, de arquivar o que não mais ainda está lá, apesar e por conta do arquivo, é justamente a pulsão irresistível de interpretar os rastros, interpretar o fantasmagórico para lhe dar sentido. Seguindo Jacques Derrida, seria uma vontade, portanto de futuro, d’avenir, e não de passado, pois sempre desejamos construir (construe, do latim, significa interpretar, enxergar de uma maneira peculiar, não usual), dar um sentido, um significado.
“O arquivo, como já disse em algum lugar, não é uma questão de passado, é uma questão de porvir. O arquivo não é um traço/rastro do passado, mas rastro de porvir” (2).
Qual a dimensão espectral dessas infraestruturas urbanas que retornam como um movimento catastrófico de si mesmas? O que retorna junto ao não retornarem como o mesmo? Para além e aquém do suporte, que rastros espectrais podem ser esses emulados pelo retorno/desarquivamento dessas infraestruturas?
O restante de algo é tudo aquilo que permanece apesar da impermanência. O restante daquilo que era é a possibilidade do ser outro daquilo que restou como, supostamente, algo aquém do que era, pois deixou de ser algo pleno, de ser em sua plenitude, para se tornar apenas um resíduo, um resto insuficiente.
“Mas a restância, esse restante, esse resto, é justamente o rastro do outro, já é um outro apesar de ser considerado apenas um resto, resíduo daquilo que foi. Neologismo criado por Jacques Derrida, a restância é o espectro daquilo que já aparece como um outro apesar de ser visto como resto do que foi. A restância de algo, do objeto, não seria, portanto, a diferença que falta para voltar a ser o que era, mas um rastro do outro, algo que foi, ao mesmo tempo, desapropriado de suas características originais e fundamentais e tornado uma presença espectral de si mesmo para já ser um outro em devir. Falamos, portanto, de presenças passadas e futuras” (3).
Assim, não estaríamos mais falando sobre as insuficiências e faltas para que algo volte a ser o que era, mas a restância de algo como sua própria destinação errante, como uma condição espectral de sua própria identidade, concomitante à abertura a um outro. A expropriação dos supostos fundamentos da coisa abre a coisa ao seu próprio devir outro. Reapropriações críticas a partir da aceitação da alteridade da coisa, fruto de sua insuficiência como ser pleno, abririam a possibilidade de remarcações labirínticas em torno do ser outro dessa coisa.
Há significativas diferenças entre o elevado e o High Line porque o primeiro não re-fundou um lugar, ao contrario da linha elevada nova-iorquina que foi convertida plenamente em linha parqueada de mobilidade. O Minhocão pode ser qualquer coisa justamente por ainda não ser ou não mais ser algo plenamente; livra-se de ser algo, para sempre tornar-se outra coisa que nunca se realiza como outro de forma plena, permanente, total. É sempre devir.
O virtual e as existências mínimas
Emprestando do filósofo francês David Lapoujade o título de seu livro As existências mínimas, citamos uma passagem em que fala do virtual e sobre aquilo que ainda não foi instaurado plenamente:
“Um exemplo que ilustra particularmente a natureza dos virtuais está em Henry James, quando ele descreve seu método de composição romanesca. Durante um jantar, às vezes ele ouve uma pequena história sugestiva, ‘uma partícula flutuando no transcorrer da conversa’ na qual entrevê a possibilidade de um novo ‘tema’ de narração. ‘Nosso tema está na semente mais simples, o átomo de verdade, de beleza, de realidade, quase invisível ao olhar comum’.
Assim, quando ele ouve falar de um caso entre mãe e filho que brigam pela mobília de uma casa antiga, sente ter a trama de uma nova narrativa (será a novela Os espólios de Poynton). ‘Foram só dez palavras e, no entanto, reconheci nelas, como uma espécie de clarão, todas as possibilidades do pequeno drama do meu ‘Espólios’, que ganhava vida aqui e ali […]”(4). É uma bela descrição da manifestação do virtual: a aparição de um leque de novas possibilidades, ditadas por alguns fragmentos apenas esboçados” (5).
Essa parece ser uma diferença importante entre o elevado João Goulart e o High Line. O primeiro apenas sugere maneira de existência – potencias de existir – da coisa parque, cujo fundamento carrega a autoridade e legitimidade necessárias para sugerir modos de existência, revela e modera (de modus) formas de existir. O parque ainda virtual do elevado João Goulart, quase inexistente em sua existência, é um plano de consistência capaz de abrigar planos de existência multimodais, sem indução ou direcionamento. No outro extremo, o High Line é um plano de organização, cuja formatação e definição realizadas como presença plena e perfeição própria, organiza modos de existência em função do seu próprio grau de definição. A deficiência de definição do elevado possibilita que ele retorne sempre em circunstâncias mais imprevisíveis e estranhas ao seu eidos, o que não ocorre com o High Line, com seus predicados mais sólidos, tornando-se mais previsível e estável.
Considerando-se as ressignificações pelas quais passaram essas infraestruturas, podemos perceber claramente diferenças entre elas quanto ao grau de determinação de seus novos significados, de destruição ou superação de seu significado e finalidade (dimensão onto-teleológica) originais ou de mediação para a construção de sociabilidades intermediárias, intermitentes ou permanentes.
Podemos dividi-las então em estruturas baseadas em uma estética da anáfora (conceito utilizado por Lapoujade), ou em uma estética da instauração. Uma estética da anáfora seria uma estética baseada na construção de um suporte visando apenas um processo de intensificação de existências latentes tornando-as realidades, mas sem qualquer pretensão quanto a estabilidade e modo de acontecer dessas existências. Uma estética da instauração, por outro lado, conforme Lapoujade (6), seria a aposta em uma arquitetura onde as existências ganham em “formalidade” e solidez, onde existe pretensão de se fixar e estabilizar as existências através de uma narrativa montada com materiais/dispositivos viabilizadores dessa nova realidade prevista, pré-vista. Entre as infraestruturas, percebemos como uma foi fixada mais como coisa que carrega novas estéticas urbanas como fundamento de novas sociabilidades – High Line – do que a outra – elevado João Goulart.
Mas há diferenças entre o fundamento e a instauração de algo. O fundamento impõe uma forma pré-existente e a instauração é algo que instaura um principio, mas que só se realiza e se sustenta por gestos que a confirmem; entretanto, podemos perceber matizes entre esses agrupamentos feitos acima. O elevado João Goulart instaura-se como outra realidade em relação a si mesmo apenas quando as existências que o habitam tornam-no mais reais como parque; o parque permanece como um esboço ou promessa de outra coisa, de ser outra coisa apenas quando fenômenos são provocados pelos modos múltiplos, precários, frágeis, imprevisíveis, estranhos de existências que o tomam e o efetivam como outra realidade.
Do outro lado, o High Line é realidade efetivada como outra coisa, outra realidade ôntica, independente dos fenômenos suportados por eles. Diversamente, sugere, direciona e induz modos de existência e ocupação ao invés de se tornarem algo a partir deles.
Acompanhando o pensamento de Lapoujade (7), a força ontológica de uma existência precária, fugidia, como sombras que aparecem e desaparecem em instantes, por mais frágeis que sejam, tem a potencia de perturbar a ordem do real justamente por provocar incidentalmente outras realidades quando acontecem (fenômenos).
No Minhocão, pessoas se apropriam dele (novamente, apropriação como apropriar a, tornar apropriado para, e não apropriar-se como tomar posse ou próprio) para que, assim, seja apropriado como parque, para que se efetive como um suporte parqueado; High Line é uma coisa cujas propriedades já estão lá antes de qualquer movimento de apropriação.
O silencio onto-teleológico
Diz Derrida em sua obra Parages:
“O presente também é desarticulado do próximo, mas o modo de disjunção desvia-se da oposição simples, bem como da hierarquia, o valor de valor se encontra assim distante: os dois ‘apenas’ – ‘apenas presente’, ‘apenas próximos’ – fazem oscilar o demais e o não o suficiente sem prometer nenhuma parada. […] O disjunto do próximo e do presente produz, gera e detecta ao mesmo tempo uma fissura sem limites: no conhecimento ou no discurso filosófico. Mas uma fenda que ainda se mantém unida, próxima e presente entre si, os dois que ela separa. Que separa sem se separar, mantém sem manter junto. A sintaxe de todo modo bastante singular do ‘sem’ na escrita de sua história, aquela que, com a do ‘pas’ (não e passo além ao mesmo tempo), nos manterá, doravante, sob o poder fascinante de sua atratividade” (8).
Se aqui, Derrida faz uma interminável digressão conceitual em torno das ambivalências do termo pas em francês, evocando a obra de Maurice Blanchot para tanto, nos apropriamos de sua reflexão para pensar o pas e o sans a partir e com Derrida.
Sem suas predestinações originais – infraestruturas de mobilidade – as duas infraestruturas tornaram-se outra coisa no momento em deixaram ou deixam de ser, no caso do elevado João Goulart, aquilo que carregavam como dom ou como sentido primordial e essência, como ente essencial.
Ao tornarem-se outra coisa por deixarem de ser algo, houve a necessidade de se interromper esse silêncio ôntico, produzido pelo “não mais já um outro”, para a efetiva construção de um novo ente. Interessantes disjunções entre o que restava do antigo ente e seu devir foram produzidas por ações projetuais variáveis em suas intensidades de definição do novo ente urbano que surgia ou surge (Minhocão) rotineiramente.
Entretanto, o silêncio parece ter sido rompido por veemente ação de regeneração ôntica – sobretudo no caso do High Line – que acabou ecoando como o seu contrário. Exemplificando, o High Line torna-se uma linha verde infraestrutural com um design eficiente o suficiente (reificação e fetichizacão da ex-ruína) para tornar-se vetor de uma concretização da lógica de Manhattan em um território onde essa lógica não havia ainda se realizado. Mega-torres, vistosas e suntuosas, como exercício estético-formal de algumas grifes arquitetônicas povoam suas bordas, rompendo o seu silencio. O High Line torna-se o corredor central de algumas “vedetes” arquitetônicas e da arquitetura que o definem. O corredor torna-se a passarela por onde passam transeuntes anônimos muitas vezes atônitos com as “vedetes” que os circundam e disputam os olhares.
A ausência e perda do sentido fundamental e fundacional, e sua efetivação como uma linha infraestrutural verdejada, conduz essa infraestrutura para um além da ausência que se torna uma presença edificadora e reprodutora de uma lógica urbana da qual parecia distanciar-se. O High Line passa a ser uma linha de conexão direta com o resto da ilha, de junção e completude, e não mais disjuntiva.
Muito distinto, mas igualmente precários em suas evidentes diferenças, os baixos do elevado João Goulart também se tornam qualquer lugar por não se tornarem um lugar ontologicamente preciso e definido. A presença dessas duas infraestruturas urbanas em seus respectivos contextos, não garantem a proximidade ôntica do que deveriam ou poderiam ser, a não ser de um modo precário, residual, frágil, incerto. Baixos e tabuleiro do Minhocão dilaceram-se em suas frágeis e quase silenciosas existências onto-teleológicas, mas, talvez, por isso, tornam-se suportes geradores de improvisadas e aderentes micro-urbanidades, como uma ciclovia sombreada ou um local de grafitagem.
A presença urbana do High Line em suas prerrogativas onto-teleológicas o torna próximo de uma lógica urbana que acaba por ultrapassá-lo em relação ao silêncio imagético que poderia ser, ou seja, apenas uma estrutura ligada à flânerie urbana, à contemplação desinteressada ou produção espontânea e autêntica. Ao contrário, em diferentes graus, torna-se também lugar do consumo – de imagens mercadorias – e de ações disciplinadas, previsíveis, controladas e orientadas por um design de designações de usos que induzem ações, ocupações. A vida urbana e subjetividades ali parecem sempre indexadas a um index onto-teleológico, lugares desenhados para determinados fins, um encadeamento de sub-espaços prontos para serem ocupados, on demand.
O High Line funciona como um vetor de novas subjetivações sutilmente programadas. Nele, novas fontes de urbanidades e micro-sociabilidades são instituídas, mas chances de ocupações suplementares, criativas, inventivas, imprevistas diminuem na medida em que o movimento de diferimento e diferenciações em relação ao espaço e usos designados são desestimulados pela clareza e induções de uso provocados pelo excessivo desenho dos espaços propostos.
Sobra pouco espaço para que a lógica onto-teleológica, de significação e finalidade dos espaços, seja rasurada e deslocada por movimentos de diferenciações incontroláveis em relação ao sugerido. Já bastante semeados pelo desenho, as dissonantes, contingenciais, incongruentes significações disseminativas encontradas no elevado João Goulart, multiplicadas pela ausência de desenhos designativos, aqui são enfraquecidas por ações de semeadura dos espaços que sempre retornam ou permanecem vinculadas à fonte de disseminação, ou seja, à designação onto-teleológico proposta.
Encetamentos (enxerto)
O encetamento (Entame, em francês) é o enxerto de algo em alguma estrutura aparentemente coesa, uniforme, tornando-a uma estrutura em mosaico, onde o fundamento e a essência se perdem, abrindo a estrutura a outros começos sem uma origem simples ou identificável como primordial. Na literatura, corresponderia a um mosaico de citações, como diz Evando Nascimento em seu livro Derrida e a Literatura.
Entendido pelo próprio Derrida como um procedimento da Desconstrução, é algo que se ergue segundo linhas de forças e de ruptura localizáveis por desconstruir. “Entame são também as primícias ocorrendo num lugar não fixo de uma origem múltipla, multifacetada. Correspondendo-se com entaille, os dois termos indicam o golpe e a incisão num corpo textual inaugurando um novo texto, germinal” (9).
Inauguradas como estruturas de mobilidade urbana para transportes rodoviário (elevado) e ferroviário (High Line), as duas infraestruturas são reinauguradas como novos textos urbanos opostos ou em conflito – no caso do elevado João Goulart – com suas origens.
No caso do High Line, inaugura-se uma outra lógica com um grau de coesão capaz de gerar um outro fundamento infraestrutural. Passa a ser infraestrutura naturalizada como outra linha infraestrutural de mobilidade, muda-se apenas seu dom, sua destinação. O elevado João Goulart, em oposição, torna-se uma infraestrutura em mosaico ao não completar-se como um outro, é desconstruído em seu fundamento original mas não se realiza completamente como outro lugar. Permanece um lugar incerto entre o que pode ser e o que continua sendo.
O entalhe que é feito em sua estrutura o afeta em seu fundamento, mas não o reformata. Sucessivos golpes legislativos (leis e decretos municipais que vão alterando sua destinação, sem nunca efetivá-la) o transformam sem uma intervenção física. Sua origem unidimensional dá lugar a uma situação urbana multifacetada por não se realizar completamente como um novo fundamento. Ao deixar de ser plenamente algo, torna-se outro sem abandonar completamente seu fundamento original.
Pelo encetamento, dito acima, enxerto e entalhe, adição e subtração do ente, o que podemos ver são duas entidades infraestruturais entalhadas e enxertadas através de encetamentos que alteram seus sentidos e significados, por vezes definindo e antecipando, prematuramente, os devires e porvires desses entes, ora simplesmente livrando-os de suas amarras onto-teleológicas, abrindo-os para uma errância quase incontrolável, como é o caso elevado João Goulart.
Deslocalizações e disseminações
Para falar dás disseminações de um texto a partir de encetamentos pontuais, Derrida cria o conceito “Dissemence”. Dissemence é um termo composto das palavras Semence e Dissémination. Em Glas, Derrida diz que a semeadura, ou o ato de semear torna-se mais importante que a fecundação ou o fecundar.
Na ação de semear, as sementes lançadas podem ter seus destinos desviados, deslocados por agentes externos, podem fecundar em locais absolutamente imprevistos. O ato de semear é um devir, portanto, para Derrida. Ao contrário, o sêmen, a inseminação do sêmen no ato da fecundação tem seu endereço traçado de antemão, mesmo que não atingido. Já considerando-se o sucesso ou fracasso da inseminação, o grau de imprevisibilidade é nulo. Considerando-se a destinação do ato, a ação de semear é mais incerta e imprevisível que a fecundação.
Novamente, considerando-se as duas infraestruturas analisadas, a abertura e/ou fechamento de suas destinações variaram conforme a ação baseada na promoção de fecundações ou re-semeaduras dessas infraestruturas semeadas espontaneamente pelo tempo histórico.
Pelo discutido, o High Line foi inseminado por um projeto que deixou pouco espaço para florescimentos imprevistos. Foi fecundado por um desenho que já traçava sua destinação com grau de certeza e fixação dos pressupostos, onde pouco ou quase nada floresce além do que foi fecundado.
O design adotado foi um veículo de fecundação e esterilização ao mesmo tempo. Deslocamentos estético-funcionais, em relação ao que eram, foram promovidos, mas um deslocamento que os locou novamente em uma outra destinação. Deslocar foi um ato contaminado por um desejo de criar e pré-fixar essas infraestruturas em outros lugares urbanos. Passaram a ser lugares para algumas atividades, limitadas por um desenho que os prefigurou, formatou e os enquadrou, apesar da intenção de transformá-los em locais de deambulações e perambulações.
Em oposição, o elevado João Goulart foi semeado por ações legislativas e arquitetônicas (ações efêmeras) que, ao mesmo tempo em que o inseriram em um processo de devir urbano, permanece com um grau de indefinição o suficiente para que não fosse formatado, prefigurado por desenhos e/ou ações elaboradas a ponto de localizá-lo como outra coisa.
O termo Dislocation, em francês, significa tanto disponibilização, disposição, como provisão, apesar de sua proximidade com a ideia de deslocamento; em inglês, adquiri sentido de luxação. Na Dislocation há sempre lugares incompletos, provisórios (precários, talvez), pois guardam rastros da posição anterior e posterior, sendo mais espaços em trânsito que lugares estabelecidos, espaço entre lugares que não se estabilizaram como um lugar reconhecível, espaços sem aura (entendendo-se aura como o exercício distanciado do ótico), onde a comunicação entre usuário e suporte, entre expectador e obra, implica uma confusa tactilidade, de uma proximidade que possibilita a experiência da invenção e não apenas do usufruto.
O elevado João Goulart foi deslocalizado de seus pressupostos, porém, mais a partir de um movimento de luxação – sem a necessária implicação com o ajuste e a provisão como outra situação ou lugar – do que de deslocamento. O termo deslocamento sugere o movimento e estabilização em outra situação ou localidade, disponibilização poderia ser interpretada como um lugar não resolvido, apenas disponível, sem indução de uso, instável.
Inscrições urbanas desligitimadas em seus pressupostos, desamparadas por perderem suas significações onto-teleológicas, as duas infraestruturas diferem entre si como potências disseminantes ao receberem novas inscrições. Inscrevendo-se como suportes urbanos transfigurados, ao deixarem de ser ou tornarem-se menos do que eram, tornam-se topos e fonte de suposições e de outros pressupostos, alguns indicados, alguns revelados, outros intencionalmente obscuros, como já discutido sobre o High Line.
Sentidos e significados luxados, e não, simplesmente, deslocados ou reposicionados, permaneceriam em uma posição entre onde estavam e para onde foram ou são lançados, precariamente posicionados em suas imposições urbanas.
Lugares (in)suficientes
Desde Aristóteles, o lugar está ligado a uma situação precisa, de reconhecimento de algo, implica, portanto, precisão. Um topos, locus, situs, é um lugar reconhecível, definido, habitável, um espaço orientado e um espaço de orientações que nos permitem nos orientarmos e nos localizarmos por estarem carregados de referências e orientações. Papel da arquitetura, criar e agenciar lugares no mundo.
Seria possível pensarmos em lugares insuficientes, como quase lugares, que se tornariam lugares apenas quando habilitados por um desejo de morada que supera a inaptidão ou o dom daquele espaço para a morada?
Como toda grande infraestrutura de mobilidade de massa, rodo e/ou ferroviarista, sabemos como o elevado João Goulart, historicamente, criou na cidade um território antitético à morada, à permanência, seja sob e sobre ele ou mesmo em suas bordas. Foi inserido na cidade como uma aberrante estrutura de concreto, impositora de uma conhecida lógica rodoviarista ao mesmo tempo que arruinava o espaço que passaria a habitar tornando-o inabitável, em um sentido aristotélico.
Porém, diferente do High Line, que deixou de ser o que era ao permanecer desativado e abandonado por um período, um processo de lobotomia urbana foi fazendo com que o elevado João Goulart fosse, gradualmente, se distanciando de sua própria memória, lançando-se em um processo de devir insuficiente quanto aos seus pressupostos. Ao invés de se tornar efetivamente outro algo, durante décadas, passou a deixar de ser cada vez mais, jamais deixando de conservar, ao mesmo tempo, rastros do que foi ou continuou sendo. Processos incompletos, o Minhocão torna-se uma estrutura insuficiente em sua dimensão onto-teleológica, nem um, nem outro, nem arterial viária, nem parque urbano, não se efetivando como um ou outro.
O High Line, ao ser redesenhado para ser parque linear, torna-se lugar suficiente para essa nova existência, suficiente a ponto de induzir modos de ocupação, modos de ação e apropriação, enfim, ao induzir modos de existência. Passa a ser estrutura representativa de uma nova lógica ostentadora de suas próprias virtudes – outros modos de existência – e limites – limitações desses mesmos modos de existência. O elevado João Goulart ostenta seus próprios limites ao falhar em seus devires como lugar urbano orientado, designado, mas, que, talvez, por isso, carrega a virtude de ser espaço de quase nada, acontecimentos dispersivos, imprevistos, aparentemente desajustados.
As insuficiências do elevado como lugar aurático, superior, iluminado, elevado é justamente a possibilidade desse quase lugar dar sempre lugar a lugares, a outros lugares. Lugares que se formam a partir da ação tátil desejante dos corpos que o habitam e habilitam com inscrições imprevistas, apenas um território de recepção daquilo que não foi convidado por um desenho e designação prévios.
Ao não consolidar-se como um lugar, naturalizado em seu (novo) ser, o elevado João Goulart é um arquivo que resta de um ente que está sempre se reapresentando como outro lugar. Dando lugar às imprevistas inscrições que o constituem como outro lugar, sempre em processo, é um retorno espectral de si mesmo, dia após dia, um retorno insuficiente como ente que não se consolida ou cristaliza em seu (outro) ser, seja ele anterior ou posterior;
Ao contrário do High Line, o elevado João Goulart é um ente em permanente atualização, um fantasma diário (ente insuficiente) de sua própria ignomínia e infâmia urbanas que, como vemos, pelos traços póstumo e testamental que ainda carrega, transforma-se em fonte paradoxal de virtude.
Inconclusão
Infraestruturas parqueadas como o High Line parecem ser um exemplo de planejamento ou de desenho urbano mais sutil, sensível às temporalidades do território com a revalorização da memória, do estímulo às ocupações procedentes de uma tentativa de recuperação da boa escala politica do convívio, da emulação de prosaicas e cotidianas rotinas potencializadas por ações e desenhos direcionados mais ao estímulo de ritmos locais de existências, que a produção da mais valia urbana através do espetáculo da imagem global.
Entretanto, um olhar mais acurado nos permite questionar essa apreensão mais imediata. O que poderia parecer construção de um outro lugar urbano, de um contra-lugar – lugares contrários a esses platôs urbanos globalizados e midiáticos – revela-se como uma outra estratégica estética de se viabilizar a lógica da qual parece se afastar ou contestar.
O High-Line acaba por reproduzir, em uma chave ambiental, histórica, apesar do desenho em prol da experiência social coletiva local (e não promocional, imagética global), a mesma lógica da Times Square. Se esta tornou-se, ao longo da história, o lugar símbolo da recuperação de Nova York depois da quebra da bolsa em 1929, o High Line é o território que recoloca Manhattan nos holofotes do porvir urbano do século 21. O ponto nodal referencial – Times Square – dá lugar à linha delineadora (standard) – High Line – de nova tendência estética nos processos de estetização de territórios urbanos, matriz de hiper-localizações a posteriori. O High Line torna-se a apoteose de uma estética urbana que nasce do silêncio formal do suporte infraestrutural.
Percebe-se o risco desse hipertiroidismo da lógica de um planejamento de preservação, recuperação e transfiguração de pré-existências de mobilidade transformar-se em espetáculo estético. O singelo pressuposto da retomada da cidade pelo caminhante torna-se locus da renovação da voracidade imobiliária amparada pela arquitetura de grife.
O High Line nasce, à época, a partir de um slogan sugerido pelos vencedores do concurso, o escritório Diller &Scofidio + Renfro, ”Keep it”. Como resposta à pergunta “What will grow here?”, como estratégia publicitária, vendiam a ideia de se conservar o máximo possível a ambiência urbana da área. Interessante notar que, antes mesmo das obras de reativação do fóssil metálico – presença espectral de uma modernidade esgotada em seu sucesso – seu entorno já alterava-se em um ritmo vertiginoso, resposta a, talvez, uma outra modernidade, transfigurada em seus pressupostos, mas continuidade da mesma modernidade identificada por Walter Benjamim na Paris do século 19 – a Paris executada por Haussmann, a Paris dos boulevares e da flânerie – uma modernidade guiada pela inesgotável mercantilização do espaço urbano.
Mega-edifícios, solilóquios urbanos, fragmentos de um mostruário da expertise e habilidade formais, tomavam o lugar de um estoque construído, mas inapropriado para uma nova modernização de Manhattan. Como concessão histórica, preservou-se a estrutura da antiga linha elevada, preservaram-se trechos da vegetação existente fetichizada em sua própria naturalidade.
Por um lado, é possível perceber que a relativa neutralização onto-teleológica de um lugar urbano – suporte de devires – como o elevado João Goulart, torna-se a chance da construção de um outro lugar – um contra-lugar, nesse caso – a partir do incontrolável e imprevisível surgimento de ocupações e eventos imateriais que o povoam. Por outro lado, a redefinição onto-teleológica de suportes infraestruturais semelhantes podem prestar-se como fonte de fabricação de eventos publicitários, materiais e imateriais, que alimentarão a expansão de um novo estilo de lugar urbano; na lógica contemporânea de lugares, hiper-lugares.
Sob a égide da cidade para as pessoas, do direito à cidade como retomada e retorno ao e do espaço público, da flânerie como deambulações e perambulações urbanas, efetiva-se a cidade do negócio, do glamour e espetáculo arquitetônicos, a cidade do selfie, do auto-retrato, do ego-retrato.
Muitos aguardam a efetivação do parque Minhocão, mas estejamos atentos ao valor de um lugar que guarda segredos suficientes para ser revelado como exercício do imprevisível, por mais que queiramos entender aquele lugar como um fenômeno unidimensional, já condenado pelo que ele é, desconsiderando-se seus múltiplos devires.
notas 1
MALUF, Paulo. 1969 – Paulo Maluf anuncia construção do Minhocão. YouTube, 5 out. 2009 <https://www.youtube.com/watch?v=j44cTNnDHps>.
2
Do original “L’ archive, comme j’ai dis quelque part, c’est n’est pas une question de passé, c’est une question d’avenir. L’archive ne trait pas du passé, elle trait d’avenir”. DERRIDA, Jacques. Trace et archive, image et art. Bry-sur-Marne, INA Éditions, 2014, p. 62. Tradução do autor.
3
“’La restance’ sera alors précisément ce qui permet de considerer tout message comme immédiatement divisé, en ce qu’il ne s’appartient pas à soi, appartient déjà, structurellement, à un autre contexte dans lequel il va être cité. La ‘restance’ est donc le nom d’une ‘identité clivée’, ou différentielle, ou essentiellement reproductible, et n’est donc pas la même chose q’une permanence à soi, inaltérable, dans l’identité qui distingue une chose de toute autre”. RAMOND, Charles. Le vocabulaire de Jacques Derrida. Paris, Editions Ellipses, 2015. p. 64. Tradução do autor.
4
JAMES, Henry. La création littéraire. Paris, Denoël/Gonthier, 1980, p. 136-137.
5
LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo, N-1 Edições, 2017, p. 37.
6
Idem, ibidem, p. 81.
7
Idem, ibidem, p. 71.
8
“Le présent y est aussi disjoint du proche, mais le mode de disjonction s’écarte de la simple opposition, aussi bien que de lahiérarchie, la valeur de valeur s’en trouvant aussi éloignée: les deux ‘seulement’ – ‘seulement présent’, ‘seulement proche’ – font osciller le trop et le pas assez sans promettre aucun arrêt. […] Le disjoint du proche et du présent produit, engendre et décèle à la fois une fissure sans limits: dans le savoir ou dans le discours philosophique. Mais une fissure que tient encore ensemple, proches et présents l’un à l’autre, les deux qu’elle sépare. Qu’elle sépare sans séparer, maintient sans maintenir ensemple. La syntaxe tout à fait singulière du sans dans l’écriture de son récit, voilá ce qui, avec celle du pas, nous tiendra désormais sous la puissance fascinante de son attrait”. DERRIDA, Jacques. Parages. Paris, Éditions Galilée, 2003, p. 32. Tradução do autor.
9
NASCIMENTO, Evando. Derrida e a Literatura. São Paulo, É Realizações, 2015, p. 98.
sobre o autor Igor Guatelli é arquiteto e urbanista (FAU USP), doutor (FFLCH USP), pós-doutor e pesquisador associado do laboratório Gerphau – Ensa Paris La Villette e Université Paris 8. Atualmente é professor, pesquisador e coordenador do grupo de pesquisa Cidade e Arquitetura e Filosofia (FAU Mackenzie) e autor do livro Arquitetura dos entre-lugares: sobre a importância do trabalho conceitual.