O Brasil do início dos anos 1970 vivia o ápice do chamado milagre econômico, quando cresceu a 10,4% ao ano (1). A política de importação do petróleo e o incentivo fiscal para a entrada de indústrias automobilísticas estavam na pauta econômica dos militares (2).O otimismo com o período desenvolvimentista do país e até mesmo com a seleção brasileira de futebol tricampeã no México, em uma televisão a cores pela primeira vez, escamoteavam a violência do governo militar nos chamados anos de chumbo desde a implementação do Ato Institucional número 5 — AI-5 em 1968 (3).
Sob o ponto de vista urbano, foi na década de 1970 que a maioria da população brasileira passou a viver nas cidades, exigindo ações rápidas para a demanda habitacional, de emprego e de serviços básicos. Ademais, o incentivo governamental para ocupação noroeste do Brasil, como uma estratégia de defesa do território nacional, promoveu a linha reta — abstrata — para a criação da rodovia Transamazônica, bem como a criação de novas cidades ao longo dela (4). Sob o ponto de vista arquitetônico, nota-se como os edifícios governamentais operavam na mesma lógica simbólica de crescimento econômico e monumentalidade governamental, conforme aspiravam os militares (5).
Mesmo em um momento de repressão, alguns dos intelectuais no Brasil usaram de suas posições de destaque no contexto cultural para propor políticas e projetos que valorizassem o patrimônio do país. Veja-se o caso de Roberto Burle Marx, que foi membro do Conselho Federal de Cultura criado pelos militares entre 1967-1974. Seus depoimentos revelaram como o principal arquiteto paisagista brasileiro usou de sua posição para defender a paisagem cultural, negociando ações com os militares contra o desmatamento e a favor da criação de parques, por exemplo (6).
Em 1971 o arquiteto Jaime Lerner havia sido nomeado pelos militares para ser prefeito de Curitiba. Sua posição como presidente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba — Ippuc facilitou a sua indicação (7). Uma de suas primeiras ações foi a recuperação do plano urbano em desenvolvimento desde 1965, proposto por Jorge Wilheim e equipe com os arquitetos locais, a fim de implementá-lo (8). Abrão Assad, arquiteto que já havia colaborado com Lerner em outros projetos nacionais e internacionais (9), foi contratado para desenvolver dois projetos no início do mandato do novo prefeito: o projeto de revitalização do antigo paiol de pólvoras do século 19, para transformá-lo em um teatro; e de pedestrianização da rua XV de Novembro.
Estes dois projetos não correspondiam às aspirações de imagens modernas e grandes do governo militar. Na realidade, as ideias do início da década de 1970 de revitalização de edifícios históricos que pudessem vigorar a identidade da cidade, e de fortalecimento das áreas centrais a partir do uso das pessoas, em oposição ao uso do carro, já eram amplamente discutidos no contexto global (10). Contudo, no início desta década estas ideias tiveram pouca imersão na cultura arquitetônica e urbanística brasileira, e só passaram a ser valorizadas a partir da década de 1980 (11).
A fim de explorar as ideias que estes dois projetos representaram no começo da década de 1970, este trabalho contextualiza, através da revisão de literatura e dos desenhos originais, as condições que fomentaram as duas propostas. Este texto argumenta que estas soluções, as quais estavam na contramão das aspirações de Brasil grande e moderno dos anos de 1970, podem ser consideradas alternativas válidas ainda hoje para os desafios da arquitetura e do urbanismo no século 21.
A primeira condição: o plano urbano de Curitiba (1965-1975)
O momento pós inauguração de Brasília (1960) foi marcado pela euforia nacional com a ideia de planejamento urbano (12), impulsionando a criação de uma série de planos diretores (13). Naturalmente, em 1964 o prefeito de Curitiba Ivo Arzua (1963-1966) solicitou um novo plano para a cidade que pudesse revisar as soluções do plano elaborado pelo urbanista francês Alfred Agache, em 1943 (14).
O novo plano foi elaborado por Jorge Wilheim a partir de 1965, com o apoio de uma equipe local de profissionais, o Grupo de Curitiba (15). Entre eles estavam Jaime Lerner, Carlos Ceneviva, Luiz Forte Netto, Lubomir Ficinski Dunin, José Maria Gandolfi, Domingos Bongestabs, Rafael Dely, Leo Grossman, Cyro Côrreia Lyra, Alfred Willer, e Miguel Juliano e Silva. Logo, foi criado o Ippuc, seguindo a mesma formação deste grupo, para auxiliar na implementação do plano — o qual passou por revisões até ser sancionado em 1966, ficando conhecido como Plano Wilheim-Ippuc.
Além da criação do Ippuc, o novo plano parecia seguir parte das heranças do desenho de Brasília, dada a cultura arquitetônica e urbanística em circulação global no início da década de 1960: a criação de eixos lineares de crescimento urbano, ao invés do plano concêntrico. Pois, assim como Brasília, o projeto para a baía de Tóquio, apresentado por Kenzo Tange em 1960, também parecia questionar o modelo concêntrico de crescimento urbano (16). De qualquer sorte, se as estratégias de planificação, de criação de mapas e diagnósticos técnicos, eram estratégias hegemônicas para o planejamento urbano no Brasil — uma vez que caracterizaram a maioria dos planos diretores nas décadas de 1960 e 1970 (17) — o caso de Curitiba ganhava novos contornos conceituais.
Jaime Lerner dirigiu o IPPUC entre 1968 e 1969. Este foi um fator significativo para a sua nomeação como prefeito da cidade em 1971 (18). Sem antes ter sido político, no seu primeiro mandato (1971-1974) Lerner implementou o Plano Wilheim-Ippuc seguindo as seguintes premissas: a mudança do sentido radial de expansão para uma configuração linear a partir dos eixos estruturais; a integração de tais eixos com sistema de transporte e o uso do solo; a hierarquização do sistema viário, conforme propôs o sistema trinário de Rafael Dely que estabelecia faixas exclusivas para o transporte coletivo, vias rápidas e vias de tráfego lento; e o descongestionamento da área central, a partir dos eixos estruturais que tangenciam o centro (19).
Em seu discurso de posse como prefeito, Lerner chamou atenção para a implementação de projetos que fomentassem a recreação na cidade, como a revitalização de praças, parques e edifícios históricos. Ao mesmo tempo, ele enfatizou a criação de novas estratégias para facilitar a circulação em Curitiba, com a criação dos tais eixos de circulação para o transporte público e de pedestres (20). Na verdade, a ênfase em temas como lazer urbano e a circulação que considera a infraestrutura urbana existente eram pautas já de uma revisão crítica ao urbanismo modernista e funcionalista — conforme aquela formulada pelos arquitetos do Team 10 no final da década de 1950 e início da década de 1960 (21).
Como se sabe, Lerner esteve em Paris em 1962, onde trabalhou no escritório de Candilis, Josic & Woods (22), se ocupando de dois projetos especificamente: para o bairro em Toulouse, na França; e para Forty Lamy na República do Chade (23). Ambos revelam as estratégias de acomodação do projeto urbano a partir do sistema complexo com stem ou tronco, como um eixo estruturador de circulação, e clusters com as unidades habitacionais, praças, e edifícios comerciais e de serviços (24). Estas estratégias eram respostas para uma dúvida que atravessava a maneira de projetar dos arquitetos do Team 10: como intervir na cidade existente e ao mesmo tempo manter e/ou fortalecer a suas características territoriais e culturais.
Parte das ideias de revisão e crítica ao pensamento arquitetônico e urbanístico modernista e funcionalista, que se fortalecia na Europa no começo da década de 1960, também circulou em Curitiba (25). Por um lado, Wilheim e os arquitetos locais recuperaram a estratégia de eixos lineares para ordenar o crescimento da cidade, como uma espinha dorsal. Por outro, estes eixos carregavam consigo a premissa de respeitar a infraestrutura urbana existente, sem grandes demolições ou criação de viadutos, e ainda buscar fortalecer as áreas centrais tradicionais e históricas.
Fazia parte da estratégia de atuação no Ippuc a parceria com arquitetos da cidade como no caso de Lubomir Ficinski, Manoel Coelho e Abrão Assad (26). Lerner e Assad já haviam trabalhado juntos em concursos de projetos, em meados da década de 1960, como no caso da competição internacional para o Euro Kursaal de 1965-1972 (27). Por meio deste concurso, Assad teve a oportunidade de visitar San Sebastián, na Espanha, em 1965, conhecer o tecido urbano de uma cidade europeia e a identidade atribuída a ela a partir de seus edifícios Art Déco. No começo da década seguinte, um dos primeiros projetos requisitados por Jaime Lerner foi a recuperação e revitalização do Paiol, um antigo depósito de pólvora desativado, que passaria a ser um teatro. Em pouco tempo, eles trabalharam juntos novamente no projeto de pedestrianização de uma rua no centro histórico de Curitiba.
Com isso, pode-se dizer que a mensagem que estava sendo passada no começo da década de 1970 era a preferência dos arquitetos e urbanistas atuantes na capital paranaense por reciclar e agir estrategicamente no tecido urbano existente, ao invés de demolir e criar grandes viadutos que priorizasse os veículos (28) — todas estas propostas apoiadas nas ideias do novo plano urbano da cidade que passava a ser implementado.
Dois projetos exemplares do começo da década de 1970
Teatro Paiol (1971)
A revitalização do antigo paiol foi uma das primeiras ações desenvolvidas por Lerner e equipe na implementação do novo plano urbano no seu primeiro mandato. Localizada em uma pequena praça de geometria triangular no bairro do Prado Velho, antiga região industrial de Curitiba, a edificação original de 1874 havia sido construída pelo exército brasileiro para abrigar um paiol de pólvoras e munições.
No início dos anos 1970, Abrão Assad teve a oportunidade de transformar o espaço em teatro. A ideia de reverter o uso do paiol de pólvoras parecia responder à intenção de Lerner em promover a recreação através de atividades culturais na cidade. Para Assad, o próprio formato circular da edificação original era propício para seu novo uso:
“Estamos diante de tarefa sui generis, transformar um paiol de munição em centro de cultura e teatro. Arquitetonicamente é possível com pouco sacrifício, porque esse paiol é uma graciosa edificação circular cuja vocação sempre foi ser teatro. Se ela foi outrora temida, agora será estimada, se era fechada e proibida, agora será aberta e convidativa. Queremos que aqui seja o local de encontro” (29).
O edifício é organizado por dois anéis concêntricos de alvenarias, seccionadas por oito paredes radiais que compartimentam os espaços, deixando o centro livre. O espaço entre as duas cascas de alvenaria, antes livres, foi ocupado por circulações leves em mezanino e soltas das paredes.
O pavimento de acesso se organiza com um hall, recepção e espaço de exposições, com dois núcleos de sanitários e o acesso ao palco. Neste pavimento, ainda é possível encontrar um espaço destinado à Fundação Cultural de Curitiba, um bar, a escola de teatro e fantoches, biblioteca e sala da direção. Conectado através de cinco escadas helicoidais, o pavimento de mezanino recebe as áreas técnicas que dizem respeito ao funcionamento do teatro, sala de projetor, camarins e salas de ensaio, extensões do bar e a escola de teatro e fantoche, acessadas independentemente.
Sobre a sua participação no Ippuc e a concepção do teatro Paiol, Abrão explica que:
“A dinâmica era a seguinte. Eu era contratado pelo Ippuc para desenvolver esses projetos. Trabalhávamos todos no meu escritório e depois partíamos para as apresentações no Ippuc. Tinha sempre que ser tudo muito rápido. Além da história conhecida da rua das Flores, que foi executada em um fim de semana, também me recordo do projeto para o Paiol. No Paiol não deu tempo de ficar estudando várias ideias. A solução foi muito prática: precisávamos acertar o posicionamento do palco. Isso iria subsidiar todo o projeto. A primeira ideia foi colocá-lo descentralizado. E isso ficou bom e seguimos adiante. Depois de um tempo, com o projeto pronto, fiquei pensando nas outras soluções, e cheguei à conclusão de que a primeira ideia foi a melhor” (30).
O palco de formato circular, com diâmetro de 5m livres, é envolto pela plateia, podendo receber até 268 espectadores. Esta arquibancada é estruturada em elementos metálicos modulares que conformam pequenas treliças espaciais, semelhantes aos utilizados no mobiliário público da cidade (coberturas dos abrigos de transporte público, bancas de jornal etc.), recebendo piso em madeira, assentos individuais. Para a cobertura, foi recuperado o telhamento original, revelando a solução adotada, assim como para a fachada externa, em que se deixou aparente as marcas do tempo.
De maneira geral, o projeto para o Teatro Paiol revela uma intenção de ocupação e uso livre no espaço, ou seja, que poderia abrigar diversas tipologias de espetáculos, como musicais, peças de teatro, anfiteatro para projeções e palestras. Para a sua inauguração em 1972, foi realizada uma série de eventos marcantes, como a apresentação de Vinicius de Moraes, Marília Medalha, Toquinho e Trio Mocotó. Nesta apresentação, Vinicius homenageou o espaço com a canção Paiol de pólvora.
Atualmente, o espaço é sede da Fundação Cultural de Curitiba e recebe eventos culturais com menor intensidade. Foram realizadas algumas intervenções pontuais para atender aos usos impostos para a edificação, sendo trocadas as poltronas originais em plástico, por assentos de madeira, todas as esquadrias, desde a porta de acesso foram trocadas as peças de vidro transparente, para vidro com película escura. No fim do ano de 2022, foi realizada uma grande obra de intervenção pela FCC, onde principalmente a fachada externa e a cobertura original foram descaracterizadas.
Rua XV de Novembro (1972)
Na década de 1970, já estava pronto o traçado do centro cívico curitibano, proposto no plano Agache de 1943. Os palácios modernistas na década de 1950 que ocupavam a área também já estavam em uso. Contudo, dentro da visão de planejamento urbano de Jaime Lerner e Ippuc, uma das estratégias era fortalecer o centro urbano tradicional e a sua imagem como a verdadeira sala de visitas da cidade (31). Com isso, o valor identitário da rua XV de Novembro, popularmente conhecida como rua das Flores, passou a ser revisado.
Em todo o processo de modernização da cidade de Curitiba, a rua XV foi uma das principais vias de comércio e circulação do centro tradicional, tido como o coração da cidade. A rua acompanhou, por exemplo, episódios como a passagem dos paralelepípedos e o uso dos bondes, para a circulação dos automóveis em ruas asfaltadas na década de 1930. Seu posicionamento estratégico no tecido urbano fez dela um dos principais pontos para os comerciantes, e, consequentemente, de alto congestionamento em meados da década de 1960.
O projeto de revitalização da rua XV buscou atender aos princípios urbanísticos de Lerner: fomentar a recreação e circulação na cidade. Inesperadamente, no caso dessa rua, não se tratava mais da circulação de veículos. A intenção de Lerner e do grupo em torno do Ippuc era bastante radical para a época: transformar a rua XV de Novembro em um calçadão para pedestres, o primeiro do país.
Consciente da relutância dos comerciantes com a transformação da rua (32), no fim de tarde de uma sexta-feira de maio de 1972, as máquinas e operários desasfaltaram o trecho entre as ruas Barão do Rio Branco e Monsenhor Celso, além da praça Generoso Marques. A rua passava a ser preenchida com os petit pavês decorados com os símbolos paranistas em rosácea, ilustrada com os frutos da araucária, uma árvore referência da paisagem local curitibana — desenhadas por Abrão Assad (33). Na realidade, o desenho da rua XV foi sendo adaptado e expandido ao longo daquele ano, como uma espinha dorsal que se infiltrou no interstício do tecido urbano.
O escritório de Assad ficou responsável pelo detalhamento do projeto. Tratava-se do desenho dos mobiliários urbanos; dos novos postes de iluminação; dos totens de informações, que deveriam informar dados sobre as atividades culturais da cidade; dos quiosques em estrutura metálica e cobertura em acrílico roxo; e das floreiras.
A fim de atrair a população, especialmente os comerciantes, foi publicado no jornal local a caracterização da rua.
“Alegre, colorida, tranquila. É a nova rua XV que está nascendo. Com suas flores, suas árvores, com suas mesas na calçada, sua iluminação diferente. E ainda torres de informações, onde você pode escolher o filme, o teatro, a conferência a que você quer assistir. Uma rua XV bem mais humana. Sem congestionamento, ruído de automóveis, poluição. Você estaciona o seu carro no Proarq. E fica pertinho do lugar ideal para um bom papo, para se informar, para fazer compras, tomar um lanche, descontar um cheque. É o ponto de encontro da cidade. E o centro comercial mais agradável e completo de Curitiba, em plena selva urbana. Afinal nenhum outro oferece tanto: bancos, restaurantes, lanchonetes, livrarias, joalherias, as mais variadas lojas a seu dispor. Vamos amigo, a rua XV agora é toda sua. Tome conta dela” (34).
Se o objetivo de Lerner, dos arquitetos do Ippuc e de Assad era melhorar a circulação nesta porção da cidade, privilegiando os pedestres, fomentando o comércio e os serviços, e favorecendo a vitalidade urbana no centro, o projeto da rua XV acabou indo além. As estratégias de planejamento urbano, pautadas nos novos desenhos para o centro tradicional, indiretamente, proporcionaram um renovado ponto de encontro para a população curitibana, como a Ágora na cidade grega. Veja-se a porção do calçadão conhecida como Boca Maldita, que tem sido palco de uma série de manifestações artísticas, mas que em 1984 recebeu manifestações pró-democracia no Brasil (35).
A rua XV já passou por três revitalizações depois da implementação do projeto de Assad: em 1983, 1993 e a última em 2000. Nota-se que as maiores mudanças aconteceram na alteração das peças de equipamentos e mobiliário público. Os antigos postes de iluminação com globo envidraçado, por exemplo, foram substituídos por postes com estética historicista por todo o seu percurso. O trecho que recebeu as maiores descaracterizações está localizado entre as alamedas Doutor Muricy e Marechal Floriano, onde além do desenho das floreiras originais para um traçado historicista e jardim afrancesado, houve a retirada dos equipamentos compostos pelos módulos metálicos e cúpulas originais, como o totem de informações, os quiosques e o maior equipamento que abrigava originalmente o centro de informações turísticas da cidade.
Por fim, a inserção destas pequenas construções havia sido proporcionalmente disposta no projeto original, visando conformar ocupações e gerar áreas de vazios, intercalados com os módulos de floreiras. Dessa maneira, o projeto de Assad previa que ao longo do tempo fosse possível intervir e inserir mais módulos, seguindo o mesmo desenho urbano tanto de implantação quanto de tectônica. No encontro da rua XV de Novembro com a praça General Osório foi inserida uma unidade que já atendeu a polícia militar e a guarda municipal, a qual foi implantada desconsiderando os conceitos originais do projeto de modularidade e ortogonalidade. Embora a estrutura desta nova edificação conte com o esqueleto estrutural concebido por Abrão Assad, sua programação visual e sistema de vedação destoa da paisagem concebida inicialmente, e consequentemente, destoa também dos equipamentos desenvolvidos pelo arquiteto Manoel Coelho posteriormente.
A segunda condição: o desenho urbano como ferramenta de projeto
No começo da década de 1970, menos apoiados em dados técnicos e planos urbanos com diagramas abstratos, Lerner e os arquitetos ligados ao Ippuc estavam atuando de maneira pragmática com relação ao planejamento urbano. Na verdade, eles estavam mais interessados em desenhar a cidade a partir de projetos em menores escalas (36), conectados, como se viu no caso do Paiol e rua XV.
Já se sabe que os arquitetos do Ippuc atuavam a partir de um método que envolvia a observação do cotidiano e a experiência dos usuários (37). No caso do Teatro Paiol, nota-se a uma ação bastante objetiva: restaurar os pontos mais deteriorados do projeto e posicionar o palco da maneira mais adequada para receber uma maior quantidade de público. Estas duas estratégias associadas ainda estariam em correspondência com uma intenção maior de manter as características materiais do antigo edifício. No caso da rua XV, é possível perceber uma prática experimental, que se inicia com uma ação de fechamento da rua, e que somente depois foi sendo melhor desenhada a partir dos detalhamentos urbanos elaborados pelo escritório de Assad.
Por não ter algo marcante na sua paisagem natural e construída, algumas das ideias projetuais mais ousadas foram levadas a cabo para dar maior caráter à Curitiba, como capital do Estado. Contudo, em pleno regime militar, a estratégia utilizada por estes arquitetos não correspondia com as ações megalomaníacas dos governantes. É de se considerar que a década de 1970 foi marcada por uma intenção de valorizar as ações cotidianas e revisar o uso dos recursos humanos e naturais — um pensamento tributário da cultura hippie do final da década de 1960 (38).
Sob o ponto de vista do processo de projeto, o que se viu foi uma sequência de textos que estavam em defesa de uma prática projetual mais pragmática, apoiada mais em observações do que em dados científicos e diagramas matemáticos. Este foi o caso de Horst Rittel e Melvin Webber (1973) que apontaram como o método de projeto científico se mostrava inadequado para lidar com os wicked problems que o projetista encontrava na prática, como aqueles problemas sociais e políticos que atravessavam o processo de projeto. Este pensamento mais comprometido com a realidade subsidiaram as ideias sobre o design thinking, que valorizava a prática, a ação de projeto, a atuação no mundo real, uma vez que os problemas não se apresentam ao projetista como dados matemáticos, quantitativos, mas que devem ser construídos a partir das situações incertas, culturais e simbólicas (39).
No Brasil dos anos 1980, o pragmatismo e contextualismo estavam sendo valorizados nos seminários de desenho urbano (40). Mas é possível dizer que as ideias de planejamento urbano em Curitiba, desde 1970, despontavam como pioneiras. As ações de projeto nos anos seguintes confirmam o sucesso destas estratégias: a recuperação de praças do centro tradicional; o projeto para a estação tubo como paradas de ônibus adaptáveis ao nível do ônibus e do pedestre; a estufa do Jardim Botânico pré-fabricada em estrutura tubular de ferro; a rua 24 horas que recuperou a tipologia de galerias urbanas comerciais pela sua forte característica de ativação do centro durante o período noturno; ou então a reabilitação de outros edifícios ecléticos do século 19, como a antiga sede da prefeitura; e a reabilitação de pedreiras desativadas, como foi o caso do terreno de projeto para a Universidade Livre do Meio Ambiente de Domingos Bongestabs.
Estas estratégias podem ser interpretadas como alternativas ao planejamento urbano hegemônico (tecnicista) dos militares. Elas se distanciaram da ideia de obras infra-estruturais isoladas; ou de projetos que apagavam a história e a cultura local através do traço abstrato. Com um certo pensamento de vanguarda, Jaime Lerner costumava dizer que “o carro é o cigarro do século 21”. Nos anos 1970, sua parceria com Assad anunciou no Brasil a diminuição do uso do carro e a reciclagem de edifícios históricos, a fim de fortalecer a identidade da cidade. Estas iniciativas, que se viram nascer em Curitiba desde os projetos do Paiol e rua XV, podem ainda hoje ser consideradas válidas para os desafios da arquitetura e do urbanismo no século 21 (41).
Conclusão
Ao recuperar os projetos para o Teatro Paiol e da rua XV de Novembro, propostos por Abrão Assad em Curitiba no começo da gestão de Jaime Lerner e contemporâneo as ações desenvolvimentistas do regime militar brasileiro, este texto revela uma postura de coexistência e contradição dos militares com relação à atuação dos arquitetos curitibanos. Nota-se uma coexistência, pois, por um lado, em um regime governamental não democrático é dispensável o processo participativo na gestão da cidade. Por outro, Lerner e os arquitetos ligados ao Ippuc estavam usando desses artifícios para promover mudanças rápidas, práticas, simples e eficientes para Curitiba.
A contradição fica a cargo das características destes projetos, uma vez que eles não correspondiam ao ideário desenvolvimentista dos militares ao promoverem a diminuição do uso do carro e o reuso de estruturas abandonadas, ao invés de suas demolições. Consequentemente, eles também acabaram por oferecer espaços na cidade para promoção de atividades culturais e manifestações contra o próprio regime militar. Com isso, pode-se dizer que as ações de projeto em Curitiba, fortemente vinculadas com as estratégias de desenho urbano, pareciam não ameaçar os militares. Como resultado, estes arquitetos ofereceram uma alternativa ao pensamento tecnicista do governo militar sobre planejamento regional e urbano nas cidades brasileiras.
Dessa maneira, estes dois projetos de Abrão Assad do começo da década de 1970, os quais encontram-se ameaçados pelas práticas de revitalização que ocorrem na cidade, merecem ser revisitados por exemplificar um pensamento projetual que considerou mais as experiências práticas no desenvolvimento de projeto e por promoverem a caminhabilidade e a reabilitação de edifícios históricos — pautas contemporâneas aos desafios da arquitetura e do urbanismo no século 21.
notas
1
SIMON, Roberto. O Brasil contra a democracia: a ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América do Sul. São Paulo, Companhia das Letras, 2021.
2
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 2015.
3
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada: as ilusões armadas. Rio de Janeiro, Intrínseca, 2014.
4
REGO, Renato Leão. Arquitetura e urbanismo na Transamazônica: entre o real, o imaginário e o utópico. Nova Revista Amazônica, v. 8, 2020, p. 45-60.
5
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo, Edusp, 1998; SPADONI, Francisco. A transição do moderno: arquitetura brasileira nos anos de 1970. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2004; BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo, Perspectiva, 2015; COTRIM, Marcio. Vilanova Artigas: casas paulistas. São Paulo, Romano Guerra, 2017.
6
NORDENSON, Catherine Seavitt. Depositions. Roberto Burle Marx and Public Landscapes under Dictatorship. Austin, University of Texas Press, 2018.
7
DUDEQUE, Irã Taborda. Nenhum dia sem uma linha: uma história do urbanismo em Curitiba. São Paulo, Studio Nobel, 2010.
8
VIANNA, Fabiano Borba. O plano de Curitiba 1965-1975: desdobramento de outro moderno brasileiro. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2017.
9
SILVA, Pedro Sunye Barbosa. Jaime Lerner arquiteto: 1962-1971. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2018; SANQUETTA, Felipe Taroh Inoue. Arquitetura moderna em madeira: a casa do arquiteto e escultor Abrão Assad. PosFAUUSP, v. 28, n. 53, 2021; JANUÁRIO, Isabella Caroline, REGO, Renato Leão; GNOATO, Salvador; BREDA, Vinicius Zanuzo. Os projetos paranaenses para o Euro Kursaal e a internacionalização da arquitetura brasileira na década de 1970. arq.Urb, n. 34, 2022, p. 33-44.
10
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011; LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2011; ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. Lisboa, Edições 70, 2016.
11
SEGAWA, Hugo. O lugar do pós-modernismo entre duas modernidades no Brasil. Anais do 6º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2021.
12
BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós Brasília: rumos da arquitetura brasileira, discurso, prática e pensamento. São Paulo, Perspectiva, 2007.
13
VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil. In DEAK, Csaba; SCHIFFER, Suelli Ramos (org.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo, Edusp, 1999, p. 170-243; BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p.108.
14
GNOATO, Salvador. Curitiba, cidade do amanhã: quarenta depois. Algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-Ippuc. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 072.01, Vitruvius, 2006 <https://tinyurl.com/y7e76dn3>; DUDEQUE, Irã Taborda. Op. cit.
15
POUGY, Geraldo. Urbanismo essencial. Curitiba, Insight, 2021.
16
Un piano per Toquio. Casabella Continuità, n. 258, dez. 1961, p. 3-20; BANHAM, Reyner. Megaestruturas: futuro urbano del pasado reciente. Barcelona, Gustavo Gili, 1978.
17
VILLAÇA, Flávio. Op. cit.
18
DUDEQUE, Irã Taborda. Op. cit.
19
Idem, ibidem; VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.
20
ASSAD. Abrão Anis. Entrevista. Espaço Urbano: Revista do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba, n. 14, dez. 2021, p. 14-25 <https://tinyurl.com/bdf7va4d>.
21
AVERMAETE, Tom. Another Modern: The post-war architecture and urbanism of Candilis-Josic-Woods. Rotterdam, NAi Publishers, 2005.
22
Idem, ibidem, p. 406; DUDEQUE, Irã Taborda. Op. cit.; VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.; SILVA, Pedro Sunye Barbosa. Op. cit.; REGO, Renato Leão; JANUÁRIO, Isabella Caroline; AVANCI, Renan Augusto. Lerner, Friedman e Candilis-Josic-Woods: transatlantic ideas and design affinities. Cadernos Proarq, n. 35, dez. 2020, p. 28-45 <https://tinyurl.com/2sbvzswm>.
23
BERRIEL, Andrea; SUZUKI, Juliana Harumi. Memória do Arquiteto: pioneiros da arquitetura e do urbanismo no Paraná. Curitiba, IAB PR/Editora UFPR, 2012, p. 110.
24
VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.
25
DUDEQUE, Irã Taborda. Op. cit.; VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.
26
OIKAWA, Marcelo Eiji. Os alquimistas de Curitiba. Curitiba, 2022, p. 36.
27
JANUÁRIO, Isabella Caroline, REGO, Renato Leão; GNOATO, Salvador; BREDA, Vinicius Zanuzo. Op. cit.
28
OIKAWA, Marcelo Eiji. Op. cit.
29
ASSAD, Abrão Anis. Depoimento aos autores, 2021.
30
Idem, ibidem.
31
VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.
32
DUDEQUE, Irã Taborda. Op. cit.; POUGY, Geraldo. Op. cit.
33
REGO, Renato Leão; JANUÁRIO, Isabella Caroline. A expressividade do ornamento em quatro projetos exemplares. In REGO, Renato Leão; JANUÁRIO, Isabella Caroline (org.). Arquitetura paranaense na segunda metade do século 20. Londrina, Kahn, 2022, p. 209 <https://tinyurl.com/ejm2jm7x>.
34
POUGY, Geraldo. Op. cit., p. 66.
35
OLINDA, Caroline. Curitiba foi pioneira na campanha. Gazeta do Povo, 24 jan. 2009 <https://tinyurl.com/46sjswn4>.
36
VIANNA, Fabiano Borba. Op. cit.
37
POUGY, Geraldo. Op. cit.; OIKAWA, Marcelo Eiji. Op. cit.
38
SCHUMACHER, Ernst Friedrich. Lo Pequeño es Hermoso. Por una sociedad y una técnica a la medida del hombre. Madrid, Hermann Blume, 1978.
39
SCHÖN, Donald. The reflective practitioner: how professionals think in action. Nova York, Basic Books, 1983; CROSS, Nigel. Designerly ways of knowing: design discipline versus design
40
LEME, Maria Cristina da Silva; REGO, Renato Leão; SILVA, Carolina Pescatori Cândido da.; ROLDAN, Dinalva Derenzo. Seminars on urban design and the constitution of the discipline in mid-1980s Brazil. Planning Perspectives, v. 38:1, 2023, p. 213-222.
41
ROGERS, Richard. Cities for a small planet. Londres: Faber and Faber Limited, 1997.
sobre os autores
Isabella Caroline Januário é professora no curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da UTFPR em Curitiba. Doutora e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UEM UEL.
Felipe Taroh Inoue Sanquetta é professor no curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola da Cidade em São Paulo. Doutorando e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP.