Perdi meu pai muito cedo. Eu tinha 12 anos e, naquele momento, começava uma relação diferente, uma relação de parceria, de conversas mais maduras. No verão de 1977, Luis Fernando Corona, 52 anos, arquiteto, morreu dormindo... do coração.
Durante todos estes anos, venho garimpando lembranças. Às vezes me pego contando, fazendo listas para ver se me lembro o suficiente. Ele não deixou um diário ou algo parecido. De escrito, tenho apenas uma entrevista de escola que fiz com ele quando eu estava na 5ª série – uma entrevista sobre a escolha da profissão.
Suas respostas tornaram-se exemplares para mim. Com inflamados pontos de exclamação, ele afirmava que o trabalho era um direito do homem e não um dever. Falava de sua escolha pela arquitetura como uma escolha amorosa. Ao final, dava um conselho às crianças: "Esperem! Mais cedo ou mais tarde, explodirá o talento de cada um. Não procurem numa profissão escolhida a riqueza, o dinheiro, mas a riqueza de ter acertado a profissão!".
Seguir o caminho das artes e freqüentar o Instituto de Artes sempre me manteve próxima de meu pai. Não apenas por ter sido seu ambiente de trabalho, até ele ser cassado em 1964, mas por que em inúmeras situações, em palestras, cursos ou exposições, freqüentemente alguém vem ao meu encontro contar alguma coisa sobre ele. São as mais variadas histórias mas que sempre apresentam um ponto em comum: a menção ao professor e arquiteto competente e generoso, de conduta idealista, correto e coerente em suas idéias. Considero essa imagem o que ele me deixou de melhor.
Acredito que não foi a insuficiência cardíaca que o matou precocemente, mas a doença do coração. Todos sabemos o que significou o golpe de 64 em nosso país. Quantas pessoas desaparecidas, quanta violação de direitos, quanto exílio involuntário. Jamais deveríamos esquecer os retrocessos e prejuízos que podemos sofrer quando submetidos a regimes totalitários.
Em 1964, Luis Fernando Corona teve seu direito ao trabalho usurpado. O estrago em nossa família foi grande. A privação do direito de lecionar foi decisiva na diminuição de ânimo de meu pai. Ser professor não era uma mera forma de sustento. Ser professor do Instituto de Artes e da Faculdade de Arquitetura da UFRGS significava a continuidade de uma tradição familiar – uma relação amorosa com uma casa, o Instituto de Artes, que fora erguido com a participação de meu avô, o professor, escultor e também arquiteto Fernando Corona, o mesmo que, em 1941, juntamente com Tasso Côrrea e outros dois professores, hipotecou a própria casa para construir o prédio de sua autoria, na Rua Senhor dos Passos. Ser professor era participar do processo de constituição de um determinado campo de saber, significava ser atuante na configuração de um pólo cultural local.
Meu pai, apesar da vida breve, teve papel importante na configuração arquitetônica da cidade. Tem sido referência para pesquisadores dentro e fora do país em virtude da difusão das idéias modernistas em arquitetura. Deixou projetos marcantes como o Edifício Jaguaribe, feito em parceria com meu avô, em 1951 – projeto tipicamente modernista, que chama a atenção pelo desenho arrojado de sua fachada. Em 1964, com os arquitetos Emil Bered e Roberto Veronese realizou o projeto da sede da CRT, na esquina da Salgado Filho com Borges de Medeiros.
Hoje, o que me faz escrever esse artigo é outro projeto bastante importante para Porto Alegre. Trata-se do Palácio da Justiça, de 1952, localizado em frente à Praça da Matriz, ao lado do Theatro São Pedro. Segundo Mizoguchi e Xavier, em Arquitetura Moderna em Porto Alegre, "o Palácio da Justiça pode ser considerado como o marco arquitetônico mais significativo do início do movimento moderno no Rio Grande do Sul". Este projeto tem co-autoria do arquiteto Carlos M. Fayet.
Em maio de 2000, Carlos Fayet entrou em contato com nossa família solicitando nossa autorização para a realização de "pequenas modificações" nas instalações do Palácio. Segundo correspondência endereçada à família, o arquiteto afirma que, "sendo co-autor sobrevivente do projeto, foi contatado pelo setor técnico do Tribunal de Justiça para realizar os estudos arquitetônicos necessários". Dentre estes, "incluía-se a execução de uma escada de incêndio, hoje obrigatória pelas normas e a reciclagem de algumas áreas que foram transferidas para o novo prédio construído à Av. Borges de Medeiros". Em função disso, o arquiteto salienta que "as alterações ao projeto inicial seriam inevitáveis e que o juízo de valor sobre a adequação das modificações à idéia original só pode ser feito pelos próprios autores e, portanto, a responsabilidade por estas cabe ao co-autor remanescente". Na ocasião, concordamos, pois nada mais justo do que o co-autor ser o responsável pelas reformas necessárias e receber os honorários relativos a seu trabalho. No entanto, com o decorrer deste processo, presenciamos uma série de transformações que nos desagradaram profundamente e que em nenhum momento tinha sido tema de consulta. O documento que nos fora enviado não mencionava nem a execução da escultura a ser dependurada na fachada cega e nem o mural com "as faces do Rio Grande", divulgado em Zero Hora, no último sábado – para mim, ainda o caso mais grave!
Em primeiro lugar, como artista, reservo-me o direito de fazer um julgamento de valor não apenas estético, mas ético. Pergunto-me se foi aberto concurso público para a realização da escultura, como o fora para a construção do prédio. Neste caso, seria a atitude mais indicada, uma vez que contamos com um número significativo de escultores talentosos, artistas de renome internacional. O projeto original previa para essa fachada cega uma escultura de Fernando Corona, que na época acabou não sendo realizada. Tenho comigo o protótipo em gesso, que muito difere do que hoje foi oferecido à cidade. Tratava-se de escultura de linhas limpas, forma sintética, condizente com o projeto modernista.
Mas a realização de tal objeto não é o que mais me escandaliza. Aliás, seria uma ótima oportunidade para abrir-se um debate sobre a arte pública, seus critérios de avaliação e legitimidade e, principalmente, sobre a responsabilidade de inserir tais objetos no espaço urbano. O que para mim tornou-se mais aberrante é o fato de o arquiteto, depois de tudo que nossa família passou em decorrência da cassação, ter colocado sobre a obra de meu pai, como personalidades de destaque, as figuras dos presidentes militares Costa e Silva, Ernesto Geisel e Emílio Médici. Sendo que o disparate maior é realizar tal atrocidade sobre a fachada do que seria a Casa da Justiça.
E como se isso não bastasse, retrata meu avô e meu pai ao lado dos militares, ou seja, o arquiteto reúne a vítima das injustiças ao lado de quem as praticou. O arquiteto despreza qualquer critério qualitativo na escolha dos homenageados. Uma obra pública oferecida à cidade deveria enaltecer àqueles nomes que ajudaram positivamente a construir o país lutando por processos democráticos de organização política e social. Não é por que fazem parte da história que devam ser glorificados. Atitudes como a de Fayet nos convocam a uma profunda reflexão sobre as imbricações entre os valores éticos e estéticos de qualquer objeto que intencione ser artístico. Não é apenas em defesa da imagem de meu pai que me coloco, mas em defesa de tudo aquilo que acredito ser o papel da arte na sociedade. Um papel libertário e transformador. Trabalhar com arte exige tomada de posição, não existe meio termo.
Por ocasião do processo das reformas do Palácio, o arquiteto, em entrevista a RBS TV, quando perguntado sobre essa oportunidade, sobre estar à frente da reforma, Fayet comentou: "É a vantagem de ter sobrevivido". Realmente, pois a desvantagem de quem esta morto é a impossibilidade de manifestar-se, preservando seu nome. Um nome construído com muito trabalho, transparência e sem concessões.
Como disse o artista Waltércio Caldas, recentemente, em uma conversa pública no Instituto de Artes: "Existem aqueles que durante a vida construíram uma carreira, estes são muitos. Mas existem outros que durante a vida constroem uma obra, estes são poucos". Eu diria que os Coronas construíram uma obra, no sentido amplo que esta palavra pode ter.
notas[artigo publicado no Caderno de Cultura do jornal Zero Hora, 3 jun. 2006]
sobre o autorMarilice Corona é artista plástica, professora, doutoranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes da UFRGS.
Marilice Corona, Porto Alegre RS Brasil