O projeto realizado para a Agência da KLM, em 1959 em São Paulo, apresentou-se como um importante trabalho de Giancarlo Palanti na área da arquitetura de interiores e de organização expositiva e museográfica. A loja trazia vários elementos recorrentes de outras obras de Palanti para ambientes comerciais (nos quais o arquiteto explorava as formas de exibir os objetos a serem vendidos), mas também inovava ao colocar lado a lado, e expostos de formas diferentes, obras de arte e temas referentes à empresa e a seu objeto de venda, as passagens aéreas.
A organização expositiva, de obras de arte até produtos comerciais, era uma inquietação de Palanti desde a Itália do entre – guerras. Esta pesquisa era compartilhada com colegas como Giuseppe Pagano, Edoardo Persico, Franco Albini e o grupo BBPR que contribuíram para a construção de uma nova museografia italiana. Palanti levou esta investigação ao Brasil, país para o qual emigrou em 1946, e deu continuidade a ela através de trabalhos para várias firmas, incorporando novos temas associados às especificidades brasileiras. Neste conjunto de obras destacava-se esta agência da Empresa Aérea KLM.
Entre os as características constantes nos projetos expositivos de Palanti, especialmente aqueles feitos para as lojas da Olivetti no Brasil, a agência da KLM apresentava floreiras de plantas tropicais entre a vitrine e a calçada e móveis feitos de madeiras brasileiras, no caso o jacarandá do Mato Grosso associado à fórmica branca. Porém, ao contrário dos painéis freqüentemente soltos no espaço das lojas Olivetti projetadas pelo arquiteto, em frente aos quais as máquinas de escrever eram apresentadas como verdadeiros objetos de arte, aquele da KLM ocupava uma grande extensão de parede, criando uma cenografia e, assim como na Olivetti, uma aura em torno da venda de seus produtos.
Funcionalmente, a planta da agência era dividida em duas zonas com entradas separadas, uma com acesso pela Avenida São Luís, para venda de passagens e representação social da companhia e outra na passagem lateral do edifício, destinada aos fretes.
A primeira parte ganhou um grande dinamismo na construção espacial. Vários elementos contribuíram para tanto: a inflexão das mesas de atendimento e da escada colocada em um ponto focal, os discos de iluminação refletidos nas colunas de mármore preto, e o grande painel de Bramante Buffoni (artista gráfico italiano também imigrado para o Brasil) que ocupava toda uma parede lateral com uma ampliação fotográfica de um mapa mundial sobre um fundo de nuvens, no qual as rotas das linhas aéreas da KLM adquiriam movimento. Além disso, incorporou-se ao espaço um grande “móbile” de Alexander Calder, suspenso na parte dianteira da instalação, o qual “anima o conjunto, com suas formas em eterno movimento” (2). É preciso ressaltar que nestes anos Palanti era associado ao arquiteto Henrique Mindlin, considerado um dos introdutores de Calder no Brasil. Esta associação era constituída por dois escritórios: um no Rio de Janeiro, dirigido por Mindlin, e outro em São Paulo, dirigido por Palanti cabendo a ele as obras realizadas na cidade, como esta agência que apresenta traços típicos do arquiteto italiano.
Esta loja apresentava-se como uma mini-galeria de arte, o que a destacava dentro dos projetos do arquiteto e no quadro da produção de arquitetura de interiores no período. Na vitrine, ocupando a esquina da Avenida São Luís, foi reservado um local para exposições periódicas de arte, visíveis da rua. O dispositivo de exposição utilizado foi constituído por uma grade de ferro suspensa no teto que permitia variar a distribuição dos trabalhos expostos, com o deslocamento de montantes, painéis ou outros elementos presos a ela.
A vitrine da KLM apresentava, assim, não apenas rotas de viagens envoltas em uma atmosfera cenográfica criada pelos dispositivos de exposição, mas quadros de diversos artistas e o móbile de Calder. Em relação a outros projetos do arquiteto, a agência trazia a novidade da idéia de movimento, de transformação espacial ao longo do tempo, que aparecia na construção do espaço expositivo, evidenciada, por exemplo, no seu móbile e na mudança dos quadros expostos.
Em artigo para o jornal “O Estado de São Paulo” (3) apresentava-se a iniciativa como fruto de uma concepção de decoração móvel. Ela foi comparada ao manifesto da escola cinemática de Vasarely em que se variavam cores e formas dentro de um esquema permanente.
Segundo o artigo, os quadros deveriam ser trocados quinzenalmente, permitindo dar a um público uma noção precisa das obras de mestres brasileiros e europeus. Chamando o empreendimento de “Uma iniciativa feliz”, o artigo louvava o seu aspecto educativo e artístico e falava da carência de galerias para os artistas exporem seus trabalhos.
A primeira exposição na vitrine da KLM apresentou quatro telas do holandês Van Gogh, vinculando a escolha do artista ao país de origem da empresa aérea. A documentação do arquivo do arquiteto Giancarlo Palanti apresenta cartas de sua autoria para o presidente do MASP, Horácio Lafer, comentando uma conversação com Bardi para obtenção do empréstimo dos quadros, pensando em uma possível propaganda para o Museu (4).
Têm-se ainda referências a quadros do pintor Flávio de Carvalho (5), emprestados pelo próprio, que seriam colocados na galeria juntamente com seus dados biográficos. Há também anotações sobre reuniões com Sergio Milliet e o programa das próximas exposições que deveriam apresentar Di Cavalcanti, Brundo Giorgi, Tarsila, Portinari, Aldemir Martins, Fayga Ostrower e Arnaldo Pedroso Horta. O artigo do Estado de São Paulo, citado acima, incluiria ainda os nomes de Quirino da Silva e Volpi.
Palanti realizara para a galeria a própria apresentação do pintor Arnaldo Pedroso Horta. Ficara, portanto, a cargo do arquiteto não só o projeto da loja, mas também a proposta e o projeto museográfico de sua galeria, a escolha, a organização e a apresentação das exposições para o público. Lembramos aqui que Palanti era membro do Clube dos Artistas e Amigos das Artes de São Paulo, colecionador de obras de artes e objetos populares brasileiros, tendo grande inserção no ambiente artístico daqueles anos e participante de empreendimentos que procuravam discutir e divulgar as artes.
Este projeto foi o exemplo de uma vontade de levar a produção artística para o cotidiano, para os transeuntes já que os quadros estão localizados em uma vitrine à disposição de todos que passam sem a necessidade de comprar passagens aéreas para apreciá-los, além de garantir o status da loja e uma aura sobre o nome da empresa.
Foi uma ação cultural e um desejo de levar as artes plásticas para as ruas, fosse Van Gogh ou os artistas figurativos modernos brasileiros, visando até educar o público para um gosto moderno evidenciado pelas obras ou pela maneira de apresentá-las.
notas
1
Texto extraído da dissertação: SANCHES, Aline Coelho. “A obra e a trajetória de Giancarlo Palanti: Itália e Brasil”. Orientação de Renato Anelli. São Carlos, Pós-Graduação do Curso de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP, jun. 2004.
2
Habitat, nº 58. São Paulo, 1960, p. 23.
3
S. M. “Uma iniciativa feliz”. O Estado de São Paulo, São Paulo, 6 maio 1959.
4
Carta para Horácio Lafer, de Giancarlo Palanti, São Paulo 4 mar. 1959. Arquivo de Giancarlo Palanti na Seção de Projetos da Biblioteca da FAU-USP.
5
Os quadros expostos seriam Retrato da atriz Maria Dela Costa, Retrato do compositor Camargo Guarnieri, Mulheres de 1954 e Retrato de José Geraldo Vieira. Arquivo de Giancarlo Palanti na Seção de Projetos da Biblioteca da FAU-USP.
[publicação: julho 2006]
Aline Coelho Sanches, São Carlos SP Brasil