Foi difícil encontrar um bom ponto para assistir ao documentário Elevado 3.5. Em meio à cerca de 1000 pessoas abrigadas dentro e para além de uma tenda, montada sobre o trecho de elevado Costa e Silva, vulgo “minhocão”, em São Paulo. Para mim, porém, um lugar bom não somente tinha que ser privilegiado na vista à tela de projeção do documentário, mas tinha que ser um bom ponto de vista da platéia e dos edifícios debruçados pelas bordas da bifurcação que forma o elevado com seu acesso à Avenida São João, pela qual “sobrevoam” os carros no elevado.
Assistir ao documentário de Maíra Bühler, João Sodré e Paulo Pastorelo, no próprio lugar onde se fez a gravação das entrevistas, não foi somente presenciar uma reverência e um retorno aos que fizeram o filme possível, mas também uma amostra do potencial constituído do elevado como marco da cultura urbana da cidade.
O documentário mostra-se fundamental não só aos arquitetos da cidade, mas a todos que se interessam por entender por quais razões São Paulo, em geral, à primeira vista sub-dimensionada e desagradável, é capaz de abrigar tanta riqueza e imagens e eventos. A leitura das trajetórias dos personagens e suas opiniões sobre a autopista elevada mostra como é possível conviver e criar até uma dependência com o elevado, que ao olhar externo e distanciado, é uma das mais atrapalhadas e controversas construções da cidade. Para fora da tenda, na platéia, a população residente da região apinhava-se pelas varandas para ver o filme. Nesse momento ficou claro que o minhocão é já um fato histórico e que existem na região edifícios simplesmente “atropelados” por sua presença, assim como edifícios que parecem ter uma relação de apego e dependência, tais quais alguns dos moradores facilmente identificáveis dentro da platéia, expectadores orgulhosos. Percebe-se que a intimidade com o elevado é compartilhada pelos outros moradores da região.
Não é novidade, entretanto, que o elevado seja palco de agremiações e de grandes eventos da cidade. Já virou espaço para bloco de rua no carnaval paulistano, e é praia de asfalto todo domingo, tal qual o dia da projeção. E isso, talvez, tenha facilitado ao seu público cativo ter acesso à estréia. No balcão em frente à tenda, um grupo comia pipoca e tomava cerveja, debruçados na varanda. Acima, a moça via o filme sozinha, com a luz desligada. Do interior de um quarto com luz verde escapa a fumaça de tragadas de cigarro, do outro lado da tenda. Percebe-se ao fundo as vozes dos locais, falando com orgulho do momento em que aparecem no telão.
Tanto a projeção quanto o elevado oferecem o desafio de se adaptar ideia de que ele está aí - ao invés de ignorá-lo como um “erro” ainda presente do urbanismo recente -, e que é possível criar vínculos com o lugar. Dias antes da estréia, a FAU-USP sediava ciclo de palestras e debates em torno da existência do elevado. Ele claramente incomoda a maioria da crítica arquitetônica da cidade. Nas faculdades de arquitetura, somos ensinados que o minhocão é sinônimo de descaso com o patrimônio. Aprendemos a evitar pensar em reproduzir essa arquitetura. Sua demolição porém, é tão polêmica quanto sua existência. Não acredito que seja difícil desmontar o elevado, tanto tecnicamente quanto simbolicamente, principalmente para uma cidade que tem um apego muito pequenoao ao seu conjunto construído. Mas acreditar que a avenida São João e a praça Marechal Deodoro teriam retornadas suas qualidades como avenidas generosas e bucólicas de uma era pré-metropolitana é uma aposta por demais inocente. O elevado é uma das mais simbólicas amostras de uma fase de crescimento e transformação da cidade que passou por cima, simbolicamente e literalmente, da São Paulo da era do bonde e da visita de Lévi-Strauss e Le Corbusier. É hoje, um elemento importante para entender a cultura urbana da cidade, muito mais importante que a estátua do bandeirante Borba Gato, ou da Escultura de Victor Brecheret, em frente ao parque do Ibirapuera – ambos colocados em grandes eixos de automóveis da cidade. O elevado é exemplo de uma nova escala de interferência de paisagem, um elemento que não quer se disfarçar nem passar desapercebido. É um exemplo do poder de transformação que a cidade tem, e algo que desperta interesse. E para alguns, como se vê curiosamente na região, algo que lhes faria falta.
Percebe-se que a imagem do cartaz de divulgação, uma foto em preto-e-branco de Nelson Kon, vista aérea da região do elevado, é uma imagem complementar ao filme. Mostra o centro como um conjunto construído e o elevado como um gesto, desenhando por entre os edifícios. A imagem mostra o elevado, em contraposição à aproximação proposta no filme, como um objeto, uma peça estética a ser discutida. Mas isso não se reproduz no filme. Não são entrevistados críticos de arquitetura ou urbanismo, teóricos em geral. A escala é outra, as falas são das pessoas que representam seu impacto nas pessoas, com as quais o elevado está, sem dúvida, muito próximo. A intimidade clara é retratada, por final, nos desenhos de Juliana Braga, uma sucessão de cortes em perspectiva do elevado e arredores, sugerindo duas evoluções contidas no filme, a do próprio percurso, e da progressão de alturas dos atores. Essa imagem, essa localização precisa dos entrevistados expõe com mais precisão como se relacionaram os depoimentos, e mostra a intenção narrativa dos autores.