Brasília é uma cidade linear e dicotômica. Constituída por dois eixos, o rodoviário-residencial e o monumental, ela se estrutura através da nítida separação entre duas escalas, isto é, duas distintas dimensões da vida urbana: a vida cotidiana e a expressão simbólica do poder. Antes uma cruz de fundação do que a imagem de um avião – quem usou a metáfora do avião foi Mário Pedrosa, e não Lucio Costa –, os dois eixos cruzados surgiram para delimitar as duas escalas da cidade: a urbs e a civitas, uma intimista, outra monumental.
Pai tanto da arquitetura moderna brasileira quanto do nosso conceito de patrimônio histórico, Lucio Costa procurou resgatar, na superquadra, a vida pacata das cidades coloniais, que tanto apreciava. Emolduradas por espessas cintas arborizadas, as superquadras deviam se configurar, segundo sua concepção, como “claustros urbanos”, isto é, unidades de vizinhança voltadas para dentro, e invisíveis aos olhos dos passantes motorizados, que atravessariam o eixão emparedados por uma cortina verde, e veriam surgir a “cidade” apenas no eixo monumental, com o amplo horizonte e os edifícios simbólicos projetados por Oscar Niemeyer.
O que ficou claro como problema, desde logo, é a ausência de uma escala intermediária: o lugar do comércio, da agitação da vida na rua, do encontro e do conflito. Tudo, enfim, que deu munição ao falso mito de que Brasília não tem esquinas. Essa escala intermediária, no entanto, estava prevista no plano de Costa. Chamada de “gregária”, ela devia existir como um anel em torno da plataforma rodoviária – o encontro entre os eixos –, e assumiria uma forma vernacular, com alusões à rua do Ouvidor e às vielas venezianas, formada por galerias cobertas e pátios internos. Ocorre que, como sabemos, isso não saiu do papel. Tanto por razões de praticidade, quanto porque era o elemento menos desenvolvido do plano de Costa. Dicotômico em essência, o seu desenho não chegou a incorporar convincentemente a escala intermediária, que tanta falta ainda faz a Brasília.
Mas esse não foi um atributo – ou um problema – específico do seu projeto. Como toda a revisão crítica já mostrou, o propósito explícito de “matar a rua tradicional” estava na base da cartilha urbana modernista (consensual entre todos os planos apresentados ao concurso de Brasília), que figurou a cidade como um parque de lazer pontuado por edifícios, para dentro dos quais se deslocaria toda a sociabilidade urbana, dando origem assim, ainda que de forma bastarda, à tipologia do shopping-center. Apesar de sua abstração maquinista, o urbanismo moderno reagia à confusão fervilhante da metrópole industrial, sendo atraído pelo bucolismo do modelo das cidades-jardim, que a partir dos anos 1950 começava a suburbanizar as grandes cidades, de braços dados com a proliferação do automóvel individual.
Contudo, chegada aos seus 50 anos de idade, Brasília sobrevive à intensa polêmica entre modernos e pós-modernos, da qual foi vítima por tanto tempo. Na prova dos nove de sua experiência concreta, a avaliação da cidade parece também curiosamente dicotômica: ela é, em geral, amada por seus moradores, e detestada pelos visitantes e residentes temporários. O que nos leva à seguinte constatação: enquanto, por um lado, as famílias estabelecidas na capital desfrutam de uma qualidade de vida sem par no Brasil, uma vez que as superquadras são reservatórios idílicos de uma ética coletivista que foi desaparecendo cada vez mais, com a escalada da violência e do privativismo, por outro lado, visitantes ou moradores ocasionais são, via de regra, assaltados pelos efeitos da agorafobia (o distúrbio nervoso diante dos amplos espaços abertos), e tomados por uma irremediável melancolia com a vida bucólica das superquadras. Sem automóvel e isolado no setor hoteleiro, ou, ao contrário, refém de um carro alugado que o conduz a infinitas autopistas e cul-de-sacs, o forasteiro se sente desamparado, como em um tedioso far-west sem bang bang.
No fundo, o ideal de Lucio Costa era o de uma classe-média generalizada, esclarecida e despojada, mas cujos traços de urbanidade conservassem as marcas de uma vida provinciana. E nisso ele foi, certamente, bem sucedido. Arrefecidas as grandes batalhas ideológicas em torno de Brasília, vemos hoje uma cidade que funciona quase que rigorosamente como foi projetada: o eixo monumental existe de fato enquanto imagem do poder, apenas para ser filmado e fotografado, e o eixo rodoviário-residencial é o paraíso da família pacata, da classe-média e do funcionalismo público. A diferença é que a massa de trabalhadores atraídos para esse Eldorado nunca se tornou classe-média, e ao inchar as cidades-satélites fez da grande Brasília um dos lugares de maior desigualdade social no mundo, como mostra o recente relatório da ONU. Quer dizer que a dicotomia original se espraiou para a relação entre o plano piloto e seu entorno. E assim, de forma paradoxal, aquilo que nasceu como o oposto do Brasil acabou explicitando a sua realidade profunda. Curiosamente, hoje Brasília é a mais brasileira das cidades.
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Artigo publicado originalmente com o título “A mais brasileira” no jornal Folha de S. Paulo, caderno especial Brasília, 50 (comemorativo dos 50 anos de Brasília), 21 abr 2010, p. 9.
sobre o autor
Guilherme Wisnik é arquiteto e ensaísta. Publicou os livros Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado Crítico (Publifolha, 2009). Foi colunista do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo entre 2006 e 2007.
Guilherme Wisnik, São Paulo SP Brasil