O atual edifício do Cine Belas Artes – originalmente ocupado pelo Cine Trianon –, na rua da Consolação em São Paulo, teve parte importante do seu desenho definido no início dos anos 1950 pelo arquiteto italiano (e depois naturalizado brasileiro) Giancarlo Palanti. A mobilização que se instaurou nestes dias em defesa da permanência do cinema refere-se de maneira especial à preservação da atividade que o edifício comporta, mas talvez caiba escrever, do pouco que se sabe, algumas notas sobre a sua arquitetura, mesmo que a título de esclarecimento a respeito da história de um edifício da cidade.
Quando realizou o que chama em um de seus currículos de “radical reforma dos projetos” (1) para o então Cine Trianon e os edifícios Chipre e Gibraltar (todos com a data de 1952 neste documento) Palanti trabalhava como diretor da Seção de Projetos da Construtora Alfredo Mathias (2).
Giancarlo Palanti nasceu em Milão em 1906 e em 1929 conseguiu o título de arquiteto pelo Politecnico da mesma cidade. Seu papel no desenvolvimento da arquitetura racionalista milanesa do entre-guerras e brasileira após a Segunda Guerra foi de certa maneira relevante, mas pouco valorizado pela historiografia. De alguns anos para cá esta situação começou a se reverter, graças ao interesse que sua figura tem despertado, gerando estudos em universidades brasileiras e italianas.
Palanti emigrou ao Brasil em 1946. Pesaram, para tanto, a procura de novas oportunidades e a presença no Brasil da família de sua então noiva, que lhe oferecera as primeiras ocasiões de trabalho.
Quando chegou ao país, na sua condição de arquiteto estrangeiro, não podia legalmente assinar seus próprios projetos. Restavam-lhe assim as seguintes alternativas: passar por um longo e complicado processo de revalidação do diploma, pagar um profissional brasileiro para assinar seus projetos, obter trabalho em uma grande firma construtora e, enfim, naturalizar-se (também através de um processo burocrático não simples), o que permitiria então ao arquiteto de assinar as suas próprias obras (3). Depois de passar pelas duas primeiras alternativas, em 1951 Palanti começou a trabalhar junto à Construtora Alfredo Mathias como diretor da Seção de Projetos. A naturalização ocorreu em maio de 1953, e no ano seguinte desligou-se da construtora e passou a organizar novas associações profissionais que culminariam na sociedade com o arquiteto Henrique Mindlin. Assim, é provável que mesmo contando com o desenho de Giancarlo Palanti, o edifício do Cine Belas Artes tenha a assinatura de outro profissional em documentos oficiais. Quando da publicação do cinema na revista Acrópole em 1956, por exemplo, foi creditado a Construtora Alfredo Mathias S. A. como a autora do projeto e da construção (4) e Giulio Rosso como o autor da decoração.
Cabe lembrar que Alfredo Mathias era coetâneo de Palanti. Nascido em São Paulo e filho de pais sírios imigrados, formou-se engenheiro-arquiteto e civil pela Escola Politécnica da USP (5) no mesmo ano em que Palanti. De acordo com a historiadora da arquitetura Sylvia Ficher, a Construtora Alfredo Mathias se constituiu em princípios da década de 1950, isto é, quando se iniciou a colaboração entre os dois arquitetos.
Contemporaneamente ao desenho do Cine Trianon, Palanti realizou para a mesma construtora outra reforma de projeto, aquela para o edifício Conde de Prates no Vale do Anhangabaú, situado em uma das pontas do Viaduto do Chá, na passagem entre o centro velho e o centro novo. A reforma do projeto do edifício, operada por Palanti, constituiu-se na alteração do desenho de suas fachadas e da sua materialidade e contribuiu – bem ou mal – a construir a paisagem de São Paulo.
Poucos desenhos da época do projeto do Cine Trianon e dos edifícios Chipre e Gibraltar restaram entre os arquivos que pertenceram a Giancarlo Palanti. Parte deles está depositada na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e ali se pode encontrar um croqui de estudo para a fachada do cinema e dos edifícios, revelando como são pensados em conjunto.
No desenho feito pelo arquiteto existia uma estratégia compositiva que ligava a altura do início do plano de lâminas de concreto que cobre parte da fachada do cinema ao início do corpo em balanço do edifício de apartamentos (o edifício é composto de forma tripartida). A linha de sombra formada por estes elementos – plano em relevo e volume em balanço –, somada aos materiais empregados, ressaltava um embasamento na altura do pedestre, tentando construir um elemento de continuidade. Uma parte destas lâminas de concreto foi retirada nas várias reformas, alterando esta relação.
O letreiro vertical no qual se lia “Cine Trianon” (que curiosamente aparece como “Cine Metro” no croqui) dividia este plano de “brises” em um quadrado à direita, remetendo o todo às proporções do retângulo áureo (6).
A marquise, característica de vários projetos do arquiteto, era para ele um elemento importante de mediação entre o acesso do edifício e a calçada. Nas feições atuais do edifício desapareceram os caixilhos iniciais, as colunas e parede de mármore que se antepunham a estes.
Sabe-se que o interior do edifício foi bastante alterado com as consecutivas reformas e a divisão da grande sala em outras menores (7).
Por diversas conjunturas os edifícios Chipre e Gibraltar correspondem um pouco melhor ao seu traço original, destacando-se a engenhosa solução da grelha que enquadra a fachada e que nas quinas faz um jogo curioso de cheios e vazios, procedimento de certas arquiteturas italianas do entre-guerras e do imediato pós-guerra. É interessante o confronto que se instaura entre o Chipre e Chibraltar e o edifício Anchieta do outro lado da Consolação, projeto do escritório MMM Roberto de 1941. Por alguma razão o conjunto tem proporções e elementos semelhantes. Juntos os edifícios enquadram de forma interessante aquele ponto-chave da rua, visto de maneira especial desde o entroncamento das avenidas Dr. Arnaldo e Rebouças, deixando transparecer duas culturas arquitetônicas e sua relação com a cidade.
Os projetos de Giancarlo Palanti para a Construtora Alfredo Mathias, dentre os quais o edifício do Cine Belas Artes, desenharam imagens características de São Paulo em pontos importantes da cidade, apesar de todas as alterações que sofreram ao longo da sua existência. Todavia as imagens de São Paulo não estão apenas nas suas formas, mas também no conteúdo e na vida que se liga a um lugar. A história do Cine Belas Artes parece ter emprestado àquele posto algo que está além da arquitetura e que a essa se misturou contribuindo a construir, em conjunto, um pedaço da história da cidade.
notas
1
Trata-se de um currículo elaborado em 1942 e complementado a mão em 1959. Em um outro currículo datado de 1963 o arquiteto não fala mais de “reforma dos projetos” mas assume a total autoria do desenho dos edifícios. A respeito destes currículos, ver SANCHES, Aline Coelho. A obra e a trajetória de Giancarlo Palanti: Itália e Brasil. Dissertação de mestrado. São Carlos, PPGAU EESC USP, 2004.
2
Textos que mencionam a autoria de Giancarlo Palanti para a “reforma do projeto” do edifício do Cine Belas Artes em 1952: ROCHA, Angela Maria. Uma produção do espaço em São Paulo: Giancarlo Palanti. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1991; e SANCHES, Aline Coelho. A obra e a trajetória de Giancarlo Palanti: Itália e Brasil. (op. cit.). Livros que mencionam a autoria de Giancarlo Palanti para projeto (sem citar o termo “reforma do projeto”): DEBENEDETTI, Emma; SALMONI, Anita. Architettura italiana a San Paolo. São Paolo, Instituto Cultural Italo-Brasileiro, 1953 (na tradução para o português DEBENEDETTI, Emma; SALMONI, Anita. Arquitetura italiana em São Paulo. Tradução de Paulo Bruna e Silvia Mazza. São Paulo, Perspectiva, 2007, 1981) e FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005.
3
A respeito das alternativas de trabalho dadas no Brasil aos arquitetos estrangeiros ver: FALBEL, Anat. Lucjan Korngold: a trajetória de um arquiteto imigrante. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2003.
4
Cine Trianon. Acrópole, n. 215, set. 1956, p. 448-449. Agradecemos Eliana de Azevedo Marques, bibliotecária da FAU USP, e Abílio Guerra, editor do portal Vitruvius, pelo auxílio na pesquisa junto à revista Acrópole.
5
FICHER, Sylvia. Os arquitetos da Poli: ensino e profissão em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2005.
6
Este era um sistema de proporções que interessava ao arquiteto naquele momento e aparecia nos desenhos de outros projetos.
7
Além do prédio para o então Cine Trianon, outro cinema foi desenhado por Palanti e Mathias um ano antes, em 1951, e parece ser o primeiro projeto realizado em colaboração, talvez ainda fora da Construtora. Trata-se do Cine Jussara, na rua Dom José de Barros no centro da cidade, para o qual Palanti desenhou também todo o mobiliário. O projeto do Cine Jussara contou ainda com painéis pintados pelo artista gráfico e designer italiano Roberto Sambonet, que naqueles anos vivia no Brasil. A organização dos acessos na planta do Cine Trianon publicada na Acrópole de 1956 reproduz, de certa maneira, a organização prevista por Palanti e Mathias para o cinema Jussara em 1951 publicado na revista Habitat como: Um cinema em São Paulo. Habitat, São Paulo, n. 6, 1952, p. 64-65. Vale dizer que ainda na Itália Palanti se familiarizara com os desafios de um projeto para uma sala de cinema, realizando em Milão a reforma do Cine Cielo em 1941.
sobre a autora
Aline Coelho Sanches é arquiteta e urbanista (EESC USP); mestre em arquitetura e urbanismo com uma dissertação sobre a obra do arquiteto Giancarlo Palanti (PPGAU EESC USP) e doutoranda em Composição Arquitetônica (Politécnico de Milão).