"Bruxelles ma belle
Je te rejoins bientôt
Aussitôt que Paris me trahit"
Bruxelles (canção), Dirk Anergarn.
"C’est un peuple [o Belga] ...siffleur et qui rit sans motif, aux éclats. Signe de crétinisme."
Charles Baudelaire, La Belgique déshabillée, 1864.
No dia 14 de maio de 2013 o jornalista francês Jean Quatremere publicou no hebdomadário Libération uma matéria intitulada Bruxelles pas belle, na qual apontava todas as mazelas de uma cidade que concentra no seu território não poucos atrativos: é a capital, como sabemos, da Bélgica, é a sede do governo regional flamengo, e é, igualmente, sede da União Europeia e da OTAN. Nada mal para uma cidade bem menos conhecida que Paris, Berlin, Londres e Roma – e talvez seja justamente a sua aparente insignificância a chave do seu sucesso. Porém, o jornalista em questão não é um “parisiense arrogante” bem pouco preocupado com os brios dos vizinhos (ou se o é, está, como veremos, um pouco deslocado geograficamente), mas o correspondente em Bruxelas (onde reside há mais de dez anos) do aludido jornal; além disto, Quatremere tem um blog, Les coulisses de Bruxelles, com o qual mantém o seu público informado do cotidiano da União Europeia, tendo sido eleito uma das dez personalidades mais influentes na blogosfera de língua francesa da Bélgica. Ou seja, não se trata de nenhum desconhecido para os belgas, mas de um jornalista cuja reputação foi construída, em parte, na sede da União Europeia. Na sua matéria, Quatremere foi implacável e não deixou pedra sobre pedra, como podemos ler aqui. Florilégio:
“Para as fortunas francesas que desejam fugir do imposto hexagonal, Bruxelas tem dois atrativos: o seu clima fiscal e a proximidade (uma hora e vinte minutos de TGV). Esta proximidade é uma necessidade se se quer preservar o seu moral alto, pois o dinheiro não é tudo. O choque ao se chegar ao destino apresenta o risco de deixar mais de um boquiaberto de tão feia e suja que é a capital belga, excetuando-se alguns quarteirões quase milagrosamente preservados. Se os exilados fiscais têm o que eles merecem, deve-se lamentar a sorte daqueles que vivem na cidade, pois se trata da sede de instituições europeias.” (1)
Ora, essa matéria teve o mérito de deixar mais de um bruxellois de souche (bruxelense da gema) boquiaberto, tal a ferocidade do ataque e a ausência de papas na língua do jornalista francês. Pela matéria, sabemos que a capital belga é feia, suja, e, além disso, pobre: “E acontece também que Bruxelas é uma cidade pobre. O desemprego ultrapassa os 20% devido a uma população de imigrantes que não fala flamengo, ao passo que o bilinguismo [Francês e Neerlandês] é exigido para se encontrar um emprego”. Ou seja, a um desastre estético e sanitário vem se juntar um problema social: os milhares de magrebinos (na sua maioria jovens) que estão condenados a um desemprego crônico devido, principalmente, a deficiências no sistema educacional do país (ou da Comunauté Française rebatizada Fédération Wallonie Bruxelles, órgão responsável pela educação dos belgas francófonos). E não termina aqui, Quatremere se compraz em enumerar as mazelas de Bruxelas: “A única cidade com a qual se pode comparar é Atenas: o mesmo caos urbanístico, as mesmas cicatrizes deixadas por uma especulação imobiliária delirante, as mesmas calçadas estragadas, a mesma sujeira [outra vez...], a mesma loucura automobilística etc.” E completa, com requintes de crueldade: “A gente se pergunta como Dick Annegarn, neerlandês educado na capital belga, pôde cantar no meio dos anos 70 Bruxelles ma belle.” E ainda: “Bruxelas é uma das cidades mais perigosas da Europa para os pedestres e os ciclistas.” Ora, em se tratando da “capital simbólica” da Europa, este é um dado – ou uma acusação – no mínimo embaraçoso.
Mas, antes de Quatremere um francês ainda mais célebre destilou todo o seu rancor e fel contra a capital dos belgas, Charles Baudelaire, que a tratou no panfleto Pauvre Belgique! de “Uma capital para rir” (o jornalista do Libération, por sua vez, contentou-se em dizer que “Bruxelas é uma ilusão”). Mas ao menos o panfleto do autor de Les fleurs du mal – “florilégio” no qual, adiantemos, não havia nenhuma flor dedicada a Bruxelas – foi publicado postumamente, o que não ocorreu com o texto de Quatremere, que, para não deixar dúvidas em relação à sinceridade dos seus sentimentos, replicou-o no seu blog. As reações, como se poderia imaginar, não tardaram e fizeram legião. O hebdomadário bruxelense Le soir (2) saiu em defesa da “sua” cidade, publicando uma matéria, em uma celeridade insuspeita em um belga, apenas um dia depois, com o título Le vrai et le faux de “Bruxelles pas belle”. Neste texto, o jornalista Louis Colart nega algumas acusações, matiza outras, faz algumas inevitáveis comparações com Paris, para, finalmente, admitir “uma taxa de desemprego importante”. Já o hebdomadário La libre Belgique (3), igualmente bruxelense, procurou mostrar-se um pouquinho mais conciliador, ao publicar uma matéria assinada por Mathieu Colleyn e intitulada Bruxelles pas belle “libé” [Libération] partiel. Na matéria o jornalista belga afirmou que o texto do seu colega francês deu “urticária” em inúmeros bruxelenses para, finalmente, conceder: “Mas o pior desse olhar francês, é que ele vê claro.” Mas, a seguir passa a enumerar os atrativos e as belezas da capital belga, para, logo após, lançar uma provocação: “Tudo isto – e tantas outras coisas – não aparece no retrato redutor do jornalista expatriado. Talvez os aspectos mais atraentes de Bruxelas valerão brevemente um outro ‘grande ângulo’ [rubrica na qual a matéria de Quatremere foi publicada].” Mas as piores reações, como seria de se esperar, partiram da classe política dessa cidade, como explicou o próprio jornalista francês no seu blog:
“Ao invés de responder ao conteúdo, muitos edis preferiram o insulto puro e simples, e até a ameaça mal disfarçada (como testemunha a minha TL no Twiter). Assim, Rudi Vervoot, o novo ministro presidente da região [a Bélgica é dividida em três regiões administrativas, e uma delas é a RBC, Région de Bruxelles Capitale], comparou tranquilamente a página dupla de Libération a um panfleto do Vlaams Block dos anos 80 (um partido fascista flamengo). Ou ainda o senador socialista Ahmed Laaouej, que denunciou a minha “propaganda anti-Bruxelas” e colocou em causa o meu profissionalismo. Ou ainda a ministra da cultura, do audiovisual, da saúde e da igualdade de chances da “Fedération Wallonie-Bruxelles”, Fadia Lanaan, que me aconselhou, no Twiter, de “ver em outros lugares se a grama não era mais verde”. E, longe de procurar acalmar a situação, ela a complicou um pouco mais, hoje, na RTL-TVI [canal da Bélgica francófona], ao explicar que se eu não amava Bruxelas nada me retinha aqui (exceto as instituições europeias, um público cativo de 250.000 pessoas em um 1,2 milhões de habitantes [a população de Bruxelas], mas passemos).” (4)
O infortúnio do jornalista francês lança luz sobre uma questão interessante: quando, exatamente, nos apropriamos de uma cidade na qual habitamos, mas na qual não nascemos? Ou melhor, quando temos o direito de trocar o epíteto de expatriado pelo título de cidadão? Vimos que no caso de Quatremere nem os seus dez anos de convivência cotidiana nem o seu público de 250.000 leitores (ao contrário do que ele pensa, nem todos são de Bruxelas, mas passemos) colocou-o a salvo de ter que ouvir um “ame-o ou o deixe” em uma versão remasterizada belga, vindo de uma política com um dos portfólios ministeriais mais ecléticos do Ocidente. É claro que nesse caso específico ainda havia um componente xenófobo, uma vez que Quatremere é estrangeiro, e pior, francês, e ainda por cima, parisiense... E tudo isto talvez seja explicado pela reação “natural” da província face à capital, ou como escreveu Baudelaire no já citado panfleto, invertendo ironicamente os valores para adequá-los ao sentimento local: “Bruxelles capital du monde. Paris province.” (5)
Face ao exposto, fica mais ou menos claro que a recepção às críticas de Quatremere foi baseada muito mais no fato de terem sido realizadas por um estrangeiro do que propriamente no seu conteúdo, o que avança muito pouco – ou nada – o debate acerca dos problemas urbanos da capital belga. E talvez a gravidade desse episódio resida no fato de que o direito à crítica – assim como o direito à cidade tout court – tenha sido compreendida como um privilégio exclusivo de alguns cidadãos a quem a polis, por nascimento, pertenceria.
notas
1
Disponível em: http://next.liberation.fr/design/2013/05/13/bruxellespas-belle_902564. Acessado em 14 de março de 2013. Tradução nossa do Francês para o Português.
2
Disponível em: http://www.lesoir.be/243162/article/actualite/regions/bruxelles/2013-05-15/vrai-et-faux-bruxelles-pas-belle. Acessado em 14 de março de 2013. Tradução nossa do Francês para o Português.
3
Disponível em: http://www.lalibre.be/actu/belgique/bruxelles-pas-belle-libe-partiale-51b8fcd8e4b0de6db9ca8de1#media_1. Acessado em 14 de março de 2013. Tradução nossa do Francês para o Português.
4
Disponível em: http://bruxelles.blogs.liberation.fr/coulisses/2013/06/apr%C3%A8s-bruxelles-pas-belle-un-charter-pour-paris-.html. Acessado em 14 de março de 2014. Tradução nossa do Francês para o Português.
5
Baudelaire, Charles. Oeuvres posthumes et correspondances inédites / Charles Baudelaire ; précédées d'une étude biographique, par Eugène Crépet. Paris: Quantin, 1987, p. 46.