Nesta Copa do Mundo um fato chama a atenção: a extraordinária alegria nas ruas, independentemente do resultado dos jogos. Enquanto as partidas se realizam em espaços fechados e têm duração de 90 minutos, a confraternização nas ruas é pública e acontece durante as 24 horas do dia. Esse espírito festivo que tomou conta das cidades-sedes da Copa provocou algumas reações controversas na população. Enquanto alguns reagiram criticamente aos transtornos causados em seu dia a dia, outros se deixaram envolver pelo espírito de confraternização das ruas incorporando uma alegria que há muito não se via com tanta expressividade.
Essa dualidade de opinião nos remete a uma afirmação do saudoso escritor italiano Ítalo Calvino, em seu livro Cidades invisíveis, onde ele afirma que “o inferno dos vivos, se existe, é aquele que ajudamos a criar nos ambientes onde ocorre a vida cotidiana. Para escapar desse inferno muitas pessoas se sujeitam a conviver com ele até não mais percebê-lo, enquanto outras tentam identificar quem e o que no meio desse inferno não é inferno e, assim, podem compreender melhor os verdadeiros significados de uma cidade.”
Em cidades como o Rio de Janeiro não se pode considerar inferno tudo aquilo que nos causa estranheza e incômodo. Para evitar avaliações preconceituosas é necessário observar e refletir cautelosamente sobre o que se supõe ser ou não ser verdadeiramente um inferno na cidade. Afinal, a imagem de uma cidade não se restringe aos seus belos espaços naturais e edificados. Ela é, também, um símbolo da existência humana e como tal não pode ser apreciada apenas por sua materialidade. Ambiência urbana e urbanidade são componentes subjetivos e indissociáveis na vida de uma cidade e, portanto, precisam ser reconhecidos, compreendidos e resgatados.
Nesta Copa, o alto preço dos ingressos selecionou o público presente nos estádios e levou a população e os turistas a buscarem nas ruas o espaço ideal para as suas comemorações. Independentemente de um ou outro conflito esporádico, não se pode negar que a alegria e o espírito de confraternização prevaleceu de forma surpreendente. A concentração popular em torno dos locais destinados à realização de shows e transmissão dos jogos superou largamente as expectativas. Não há dúvida de que o acesso gratuito a esses locais contribuiu de forma significativa para o seu enorme sucesso. Há que se ressaltar o fato de que a convivência harmoniosa entre diferentes culturas tenha sido, talvez, o principal legado da Copa do Mundo para a população. Não foram poucos os gestos de cidadania observados no convívio diário entre brasileiros e estrangeiros nos espaços públicos das nossas cidades.
A exemplo do carnaval, das festas de fim de ano ou de qualquer outro evento que reúne multidões, a Copa do Mundo tem o seu tempo determinado e um modo próprio de acontecer. Se a alegria contagiante que se espalhou pelo Brasil afora fez esquecer momentaneamente as preocupações cotidianas, por outro lado ela elevou a autoestima da população. Conquistando a taça ou não, a vida continuará o seu percurso natural. Nesse sentido, terminado o período de festas, voltaremos a refletir sobre o que de fato queremos para as nossas cidades e para o nosso país. Por ora, nos resta acompanhar o desenrolar dos acontecimentos.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. A festa é na rua. O Globo, Rio de Janeiro, 05 jul. 2014.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.