A produção da cidade contemporânea se dá de forma cada vez mais voraz. A derrubada e construção de arenas esportivas no Brasil nos últimos anos é uma pequena demonstração do que acontece em diversas partes do mundo. Isso se dá, sobretudo, porque em tempos de crise, quando os problemas de sobreacumulação vêm à tona, os capitais são deslocados do circuito primário de acumulação (produção) para o circuito secundário, onde acontece a circulação de capital no ambiente construído (1).
O poder das elites dirigentes de promoverem a cidade mediante seus interesses econômicos ganha legitimidade a partir da arquitetura de grife e de grandes obras icônicas. Além dos aspectos visíveis, os aspectos imateriais são parte preponderante dessa promoção, posto que são feitos investimentos maciços em marketing urbano. É comum o uso de pessoas carismáticas na formação de grupos políticos para fomentar, no imaginário coletivo, a esperança em dias melhores.
A legitimidade pode se dar, destarte, a partir de três tipos puros de poder (dominação): poder legal, poder tradicional e poder carismático. Este último, que aqui interessa de forma especial, remete ao “direito natural” ao “poder do espírito e do discurso”. Não deriva da sua autoridade nem da violência física, mas do reconhecimento do povo. Em Weber, assim, o líder carismático só recebe o título de carismático a partir do “reconhecimento do povo”, através de um milagre, de um êxito (2).
Quando se fala do poder do líder carismático das cidades contemporâneas, o carisma é plantado na população como discurso através desse milagre chamado: marketing urbano. Não se trata do discurso demagógico do político em si, mas do discurso demagógico sobre a cidade a partir da utilização do marketing, dos slogans e das imagens criadas. O marketing urbano produz a imagem da cidade mediante a criação de atributos, da requalificação e reconversão de áreas degradadas, da construção de obras monumentais com a “arquitetura de marca”, do embelezamento das zonas turísticas, enfim, a cidade torna-se uma cidade-espetáculo, um verdadeiro milagre estético!
O poder carismático atravessa os séculos, desde os profetas, passando pelos chefes guerreiros, até chegar à figura do político carismático. Demagogo por natureza, ele é fruto da cidade-estado Ocidental. Max Weber explicou que há uma diferença entre o funcionário e o chefe. Quando um político assume a qualidade de funcionário, está a serviço do seu senhor, ou seja, os eleitores. Quando se comporta como chefe, preocupa-se apenas com sua vontade própria. Na lógica do planejamento urbano, a estratégia competitiva que aufere melhores resultados para determinada cidade (ou ao menos consegue fazê-lo transparecer), dá visibilidade e garante a legitimidade do poder de tais políticos. Assim, a retórica ganha os eleitores, embora se comportem como chefes.
O marketing urbano, portanto, serve na construção da ideologia do projeto de cidade como única saída para enfrentar a “crise” que passa a cidade. Ao invés de crise é mais propício falar de sentimento de crise. Esse termo constitui-se como um auxílio para a consolidação dos projetos urbanos. A sensação de crise deve, segundo seus defensores, ser construída para gerar uma ação conjunta entre o poder local e os poderes econômicos no intuito de viabilizar as transformações da infraestrutura urbana. Gera-se, assim, um consenso público a partir de um ator carismático. Esse personagem carismático (em geral o prefeito da cidade ou outra liderança política ou não) deve “unir a cidade” em torno de si, para que não se questione a importância dos planos no que concerne à minimização dos reais problemas enfrentados pela população. Ao contrário, pretende-se que seja dada a legitimidade necessária à implementação desses planos (3).
A construção de obras monumentais é um dos atributos mais utilizados para a fomentação da venda da cidade, sobretudo para uma demanda solvável de turistas de luxo, mas tem também o objetivo de gerar o sentimento de pertença dos habitantes, o orgulho cívico-estético. Arquitetos de marca são chamados para assinarem as obras-prima, as quais se tem espalhados pelas cidades-espetáculo.
A ideia de cidade-empresa é acompanhada ainda da cidade como pátria, haja vista que no pragmatismo empresarial não há espaço para a política. Assim, “o plano estratégico supõe, exige, depende de que a cidade esteja unificada, toda, sem brechas, em torno ao projeto” (5). Para isso, os planos consideram de suma importância as condições de percepção da crise por parte dos citadinos, isto é, a consciência ou o sentimento de crise. Esse sentimento de crise, fugaz e passageiro é, então, transformado em patriotismo de cidade, mais duradouro e útil ao sentimento de sucesso planejado.
O patriotismo cívico é útil porque envolve os citadinos de forma com que se minem as chances de crítica ao modelo adotado, dando a impressão de que tudo vai bem e que se está no caminho certo. Carlos Vainer “participou” do processo de implementação do plano do Rio de Janeiro no início da década de 1990 como “conselheiro” e afirma ironicamente que “o plano é, pois, o mero enunciado da cidade que todos nós queremos e simplesmente ainda não sabíamos” (6). Mesmo assim, a democratização é uma tecla repetidamente tocada. É preciso entender, contudo, que o discurso oficial do planejamento estratégico gera muito mais uma participação contemplativa do que ativa. Uma ilusão de participação. (SÁNCHEZ, 1999, p.127). Isto é, tudo o que o líder carismático precisa para perpetuar e legitimar o seu poder. A esperança ainda existe, porque o poder carismático se finda quando acaba o êxito do dominador, como observou Weber. Resta ao eleitor sair da ilusão e escolher entre políticos funcionários e chefes.
notas
NA - Agradeço ao prof. Dr. Márcio Moraes Valença pelas críticas e sugestões.
1
Ver HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
2
WEBER, Max. Três tipos puros de poder legítimo. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/weber_3_tipos_poder_morao.pdf. Acessado em: 24/08/2014.
3
BORJA, Jordi e CASTELLS, Manuel. As Cidades como Atores Políticos. Novos Estudos CEBRAP, n.45, São Paulo, julho de 1996.
4
VAINER, Carlos B. Os liberais também fazem planejamento urbano? Glosas ao “Planejamento Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro” In: MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos e ARANTES, Otília. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2009a.
5
VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: MARICATO, Erminia; VAINER, Carlos e ARANTES, Otília. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2009b.
6
SÁNCHEZ, Fernanda. Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n.1, 115-132, maio 1999.
sobre o autor
Eugênio Ribeiro Silva é licenciado em Geografia, mestre em Estudos Urbanos e Regionais e doutorando em Geografia pela UFRN.