Cidade, 2015
Naquela determinada cidade latino-americana dos milhões de problemas e milhares de seres humanos, ou vice-versa, não importando tanto a (des)ordem dos fatores, dos fatores multiplicadores da ilimitada carga de efervescência da metropolização capitalista do novo século (2). Naquela megalópole, numa conhecida e infinitamente fotografada e ilusoriamente experimentada avenida, estão se encontrando e trocando virtualidades revolucionárias, e mesmo assim completamente desnecessárias e anuladas pelos próprios participantes do encontro, um sem número de artistas e agitadores culturais de todos os cantos da cultura-mundo (3) contemporânea.
Os artistas e pensadores ali reunidos, sob a elegante sigla FILE – carinhosamente transformada em Filé com fritas pela população superficialmente encantada e hipnotizada – são o perfeito reflexo da sociedade que os circunda. São todos homens unidimensionais (4), meio sólidos (5) e meio líquidos (6); homens gasosos que se desvencilharam da enferrujada sociedade industrial e com brados e manifestações intensas se intitularam de sociedade cibernética (7), falsamente substituindo a unidimensionalidade do trabalho pela unidimensionalidade do contato virtual.
No decorrer dos dias referentes a tal encontro, graças a condições climáticas – umidade do ar extremamente sufocante, temperatura escandalosamente moderada, direção e intensidade dos ventos característicos de um marasmo extremo – únicas e improváveis de ocorrer novamente nesse século, o colossal movimento virtual de informações e trocas cibernéticas sobre aquela parte da cidade-mundo-genérica-global gerou uma nuvem tão espessa e concretamente visível que se posicionou sutilmente no céu do lugar, e dali parecia que não sairia mais. No início, todos os habitantes da cidade e os estrangeiros-genéricos participantes do encontro, se sentiram ameaçados pela grande nuvem cibernética formada. Sensação que obviamente durou apenas alguns segundos – convertidos pelos mais aficionados em Mbps; logo todos se deram conta que aquela já monstruosa nuvem intensificava a velocidade de downloads e uploads de seus gadgets. A nuvem que cobria e sombreava toda a avenida e seu bairro de belas vistas se tornara naquele momento num ícone desejado e sacralizado.
Um dos artistas ali presentes, ninguém mais lembra da cara e do nome, teve uma brilhante ideia para coroar o evento. O artista apresenta à cidade o projeto de uma cúpula (8). Uma cúpula cobriria todo o território sombreado pela nuvem, evitando assim que ela se dissipasse e, ao mesmo tempo, auxiliasse e intensificasse seu trânsito de dados, numa espécie de aquário e antena parabólica simultaneamente.
Fascinados e entregues aos encantos e vantagens apresentados, o projeto da cúpula seduziu a todos. Alguns ainda tentaram se opor critica e filosoficamente, mas a voz de gigante da massa alucinada envolveu e absorveu os discursos contrários. Todos aprovaram a proposta, pensando nos novos amigos que fariam, nas novas e atualizadas informações que receberiam, nos trajetos rodoviários infalíveis e nos compartilhamentos curtidos sobre suas vidas íntimas que conseguiriam com a intensificação da nuvem.
Como a cúpula isolaria uma parte da cidade (9), o artista – com apoio do governo – deu algumas horas para a população decidir de que lado gostaria de ficar. O esperado aconteceu; naquele curto espaço de tempo, uma migração em fila indiana se formou para ir para o lado de dentro. Adoradores de maçãs, robozinhos verdes e tantos outros super sistemas, se misturavam aos curiosos típicos daquela terra que não se contém e aglomeram-se em filas e congestões humanas, como bois em uma cerca de abate, mesmo sem saber exatamente onde aquela movimentação daria.
Precisamente às 19h00 da hora da capital, sincronizada mundialmente pelo relógio atômico, a cúpula sela e condiciona parte da população da cidade juntamente com a grande nuvem. O auto-envolvimento típico e hipnótico da utilização de todos aqueles gadgets não deixou espaço para um questionamento básico: quando a cúpula seria retirada? Quando o lado de dentro voltaria a se conectar com o lado de fora? Ninguém se preocupou com isso, naquele instante o êxtase atingido com a taxa de downloads foi tamanho que nada mais passou pela cabeça de qualquer habitante da cúpula. Muito menos na cabeça dos que ficaram de fora. A proliferação instantânea de fotos, hashtags e tweets publicados pelos “internos” criou uma inveja tão intensa nos “externos” que tal questão, histórica e aparentemente relevante, foi deixada de lado completamente. Externamente decidiu-se que ninguém falaria ou comentaria sobre a cúpula. Ela simplesmente ficaria lá, com uma presença monstruosamente ausente, que logo se tornou virtual no cotidiano dos habitantes do restante da cidade-mundo.
50 anos depois
Como tudo dentro dessa sociedade do hiper-espetáculo (10), a cúpula um dia acabou “reaparecendo”, virou retrô, vintage.
Dois cientistas sociais e dois cineastas socialistas, todos sem muito trabalho nas universidades que lecionavam, ao ler um antigo e extinto instrumento de comunicação, se depararam com aquele assunto que ninguém tocaria: a cúpula intensificadora da nuvem cibernética. No mesmo instante pensaram: “ali encontraremos algo para investigar!”
Prontamente acionaram seus contatos institucionais e governamentais para retirarem a esquecida cúpula daquela região da cidade. Estavam extremamente entusiasmados com o que poderiam encontrar lá embaixo. Estudar aquela sociedade esquecida, entender seus hábitos, descobrir como tinham lidado com a clausura física e a liberdade ampliada virtual, certamente renderia a eles alguns livros best-sellers e outros tantos documentários NatGeo.
As autoridades, imbuídas de um masoquismo histórico e social, atenderam o pedido dos universitários. A cúpula foi retirada durante um imenso evento internacional, com bilhões de telespectadores (ou internetspectadores) acompanhando com igual entusiasmo. Os 4 cavaleiros eram os primeiros da fila, com seus cadernos etnográficos e suas filmadoras. Não faziam ideia do que encontrariam do lado de lá...
3 semanas depois...
As notícias do que os 4 encontraram lá dentro, na cidade chamada Blurred City, foi instantaneamente publicada na internet e compartilhada nas redes sociais como um tsunami. O mundo inteiro migrou em direção a Blurred City para conhecer e, por que não, adquirir todo aquele universo criado. A euforia foi tamanha que, em três semanas, todos os habitantes do planeta tinham em mãos aquilo que os 4 “descobriram” naquela cidade esquecida.
3 meses depois...
notas
NA – Referência direta e escandalosa ao Conto da Piscina de Rem Koolhaas, escrita em 1977 e publicado no livro Delirius New York em 1978. KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante. São Paulo, Cosac Naify, 2008, p. 343-348.
1
Incorporação do debate apresentado por Rem Koolhaas nos textos Generic City e Junkspace, de 1994 e 2001, respectivamente. KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade. Barcelona, Gustavo Gili, 2010.
2
LIPOVESKI, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
3
MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
4
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
5
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.
6
LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo, Editora 34, 2010.
7
Referência ao projeto do arquiteto norte-americado Richard Buckminster Fuller para a ilha de Manhattan em 1960.
8
Referência ao projeto de 1972 de Rem Koolhaas para a tese de conclusão da Architectural Association, com colaboração de Madelon Vreisendorp, Elia Zenghelis, e Zoe Zenghelis, intitulada Exodus, or the voluntary prisoners of architecture, publicada posteriormente na revista italiana Casabella.
9
Apropriação do debate panfletário de Guy Debord e da Internacional Situacionista. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
sobre o autor
Ricardo Luis Silva, professor do Centro Universitário Senac SP, é arquiteto formado pela Universidade Federal de Santa Catariana, mestre e doutorando em arquitetura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.