A compreensão do desastre natural não somente como fenômeno natural, mas também como fenômeno social foi alcançada no começo da década de 1980 – em contraposição ao até então entendimento deste como “obra de Deus” –; quando foi vinculado à pobreza e consequente ocupação de sítios menos indicados para construção. Sem dúvida, uma mudança de paradigma conceitual, quando a partir daquele momento foi considerado e denominado como desastre sócionatural.
O delicado contexto social e físico estabelecido por meio de um processo de expansão desordenada, sobretudo em países de crescimento rápido (1), gerou paulatinamente uma condição de vulnerabilidade que passou a ser considerada como fator determinante para a ocorrência e o grau do impacto de um desastre.
A relação entre o agravamento da vulnerabilidade da sociedade como um todo incluindo seus assentamentos, e o aumento dos efeitos dos desastres (2) direciona a discussão sobre a diminuição dos eventos diretamente à redução da vulnerabilidade urbana.
No sentido prático, em função do novo paradigma que definiu os desastres sócionaturais, uma importante mudança ocorreu nos anos de 1990, em relação à assistência emergencial. Compreendeu-se que esta etapa é uma transição para a reabilitação, reconstrução e a resiliência (3).
Os investimentos em assistência emergencial e efêmera realizados por certa indústria internacional (4) a partir de soluções universais (5) cedeu lugar ao desenvolvimento de um processo de reconstrução permanente muito mais complexo, à medida em que se passou a considerar o panorama em crise anterior à ruptura produzida pelo desastre (6).
A tendência a um protagonismo do permanente sobre o efêmero abriu espaço para discussões sobre a implementação das estratégias pós-desastre que, atualmente, estão intrinsecamente relacionadas ao próprio planejamento urbano. Ou seja, a partir do momento em que foi compreendida a relação entre desastre e modelos de desenvolvimento urbano, foi possível considerar que, por um lado, o pós-desastre informa o desenvolvimento das cidades; por outro, pode ser informado e reduzido pela condução da evolução urbana por parte dos planejadores, autoridades e população.
Trata-se da busca do desenvolvimento baseado em um processo de reconstrução com transformação; ou seja, trata-se de reduzir a vulnerabilidade existente e evitar a construção de novas vulnerabilidades.
Nesse sentido, concordamos com Mary Anderson e Peter Woodrow (7) quando propuseram que o desenvolvimento é a redução de vulnerabilidades (ou de risco) e a expansão das capacidades da sociedade. No entanto, o que ocorre em termos práticos, é que o “desenvolvimento” das cidades aumenta a exposição da sociedade ao risco.
A importância da compreensão de que a maneira de lidar com o desastre interfere no desenvolvimento da cidade reside na inserção de uma nova etapa no planejamento pós-desastre: a preparação para o evento.
A necessidade de revisão do modelo de desenvolvimento urbano responsável pelo fortalecimento das vulnerabilidades nas cidades de crescimento rápido, estabelecido por meio de um longo processo, adiciona grande complexidade ao decurso de redução das vulnerabilidades, permeando, por um lado, questões como a convivência com o risco, a adaptação da cidade e a mitigação das ameaças; por outro, questões relacionadas ao enfrentamento do desastre, à resiliência e à gestão do risco.
A década de 2000, nesse campo, foi definida pela busca por parte dos diversos profissionais envolvidos (arquitetos, geógrafos, advogados e planejadores tiveram grande presença) de estabelecer uma maneira de reversão desse quadro. Houve uma proliferação de manuais práticos de intervenção, no que diz respeito tanto a métodos de participação da comunidade – experienciadas no final da década anterior –; quanto a tecnologias construtivas possivelmente capazes de dar conta da reconstrução. Por sua vez, muitos estudos seguiam discutindo a relação entre pobreza e desastres (8).
No entanto, no início da década de 2010, aconteceram eventos de grande importância que tiveram consequência na reflexão sobre o tema pós-desastre. Estima-se que 304.000 pessoas morreram em função de desastres “naturais” nesse ano de 2010, e que 304 milhões foram afetadas (9). Os efeitos dos terremotos que atingiram Porto Príncipe, Haiti (2010), a costa oeste do Chile (2010), o Japão (2011); apenas para citar alguns casos, ultrapassaram os limites das classes sociais, gerando uma série de discussões sobre a complexidade e amplitude do risco.
As primeiras reflexões nesse sentido surgiram no final dos anos de 1990, em função dos deslizamentos e inundações com grande impacto social e econômico que ocorreram na Venezuela (1998), cuja origem não se localizava em um meio ambiente degradado socialmente, mas em uma área intacta de proteção ambiental. A avaliação e análise dos desastres mudaram, mais uma vez, o paradigma conceitual.
A inserção, no início da década de 2000, do campo ainda aberto relacionado às questões ambientais conduz à revisão do sentido do desastre. É possível denominá-lo desastre sóciosambiental e vinculá-lo a problemas sociais, assim como à mudança climática baseando-se na noção de vulnerabilidade. Noção esta presente no conceito de desastre sócionatural, somado à intensificação e agravamento das ameaças (ver figura ao lado, que indica seu aumento substantivo).
Em função dessa mudança de paradigma, a produção intelectual autêntica da primeira década do século 21 é marcada pela discussão em torno de dois temas: gestão de risco e resiliência.
É interessante observar o reconhecimento incontestável da ocorrência de desastres. A adaptação das cidades a desastres sócioambientais, portanto, demanda novos mecanismos frente à ameaça. A complexa estrutura das cidades, como também a sociedade em constante transformação, deixam uma sensação de impotência em relação a uma grande e necessária mudança que ambiciona minimizar as perdas e os danos.
Recentemente, o terremoto do Nepal nos mostrou que há algo que a realidade desmente.
Há muitos anos aquela área trabalha para prevenir o evento desastroso ocorrido há pouco. A Associação Nacional de Tecnologia Sísmica do Nepal (NSET) elaborou, em 1996, a primeira avaliação do risco sísmico do Vale de Katmandú. Desde então, elaboram avaliações da resposta dos edifícios em casos de terremotos fortes, revisam as estruturas e tomam medidas para analisar e intervir para reduzir a vulnerabilidade das cidades.
A partir das imagens divulgadas pela mídia, é possível interpretar certo fracasso em evitar o desastre.
Os eventos deste século sublinham a impotência das sociedades. Inevitavelmente, questona-se a eficacia desse modelo de intervenção. O que fazer?
Outro modelo de planejamento para os desastres consiste em calcular o risco que será assumido e prever as reservas necessárias para sobreviver aos impactos dos eventos, o que implicaria conviver com o ciclo de construção, destruição e recontrução, preparar o sistema de alerta e planejar como e para onde ir em casos de ameaças.
Nesse caso, os espaços livres da cidade assumem um papel importante frente às catástrofes. Praças, ruas, estacionamentos, qualquer espaço não edificado é rapidamente ocupado como espaço seguro pela população afetada. Transformam-se em segundas cidades (10) em tempos de crise. Espaços com capacidade latente de atuação e adaptação tornam-se lugares que se caracterizam como contínuos epicentros de catástrofes.
O planejamento da cidade que lida dessa maneira com a catástrofe diverge da teoria da forma urbana compacta, onde a ausência de espaços vazios é uma recomendação dominante, como consequência tanto da eficiência da infra-estrutura e da construção, como da urbanidade que esse tipo de cidade proporciona. Portanto, o “bom desenho urbano e as práticas adequadas no planejamento frente a terremotos são muitas vezes contraditórios” (11).
De uma forma ou de outra, temos como obrigação o milagre (12).
notas
1
Países de crescimento rápido são aqueles cujo regime de crescimento e modo de desenvolvimento não estiveram acompanhados por um longo período de estabilidade e crescimento econômico e social, conduzindo à um crescimento explosivo das grandes cidades e à transformação de economias rurais. Este período esteve caracterizado pela acumulação espacial de vulnerabilidades nas cidades, principalmente nas grandes áreas metropolitanas.
2
Em 1970, o número de desastres mundiais alcançava 440 casos, enquanto que no ano de 2000 ascendia a 1440 casos, incrementando-se, em paralelo, o número de vítimas e danos. HELLPAP, C.; BECK, M. El papel de la construcción apropiada en la ayuda de emergencia orientada al desarrollo. Apud FERRERO, Aurelio; GARGANTINI, Daniela. El riesgo como oportunidad. Boletín del Instituto de la Vivienda, Santiago do Chile, v. 18, n. 47, 2003, p. 76.
3
Pode-se entender a resiliência como característica de um sistema que precisa resistir a determinados impactos previsíveis. A partir da certeza da ocorrência dos desastres, está claro que as cidades devem estar capacitadas para resistir, absorver, acomodar e se recuperar dos efeitos do perigo de uma forma eficaz. Para além de ser capaz de absorver as perturbações que a atingem, uma cidade resiliente é capaz de se beneficiar dos impactos e de se transformar a partir deles. No âmbito dos desastres sócio-naturais, pode-se considerar a ocorrência do desastre e a necessária reconstrução como uma oportunidade de transformação e adaptação das cidades frente aos riscos existentes.
4
Com o fim da Segunda Guerra Mundial a indústria bélica buscou direcionar sua produção a novos mercados ou novos produtos, como foi o caso da fabricação de abrigos para emergência, das comidas enlatadas etc. A implementação dos módulos, no entanto, demonstrou não ser de fácil administração; e percebeu-se que o problema da moradia pós-desastre não era o produto ‘casa’, mas um processo complexo, muitas vezes em crise antes mesmo do desastre.
5
Refere-se aos modelos de habitação reproduzidos em série, desenvolvidos por agentes externos ao local de demanda. Dois questionamentos importantes deste sistema de provisão de residências são: o estabelecimento de um padrão de comportamento comum a todas as pessoas; e a ausência do fator cultural no que diz respeito às técnicas construtivas.
6
Os desastres produzem uma ruptura por diluir, física e socialmente, uma configuração já estabelecida da cidade e de seus habitantes. BENJAMIN, Andrew. Trauma within the walls: Notes towards a philosophy of the city. In: LAHOUD, Adrian; RICE, Charles; BURKE, Anthony (ed.). AD Architectural Design,Sussex Ocidental, n. 207, set./out. 2010, p. 24-31.
7
ANDERSON, Mary B.; WOODROW, Peter J. Rising from the ashes: development strategies in times of disaster. Boulder, Westview Press, 1989.
8
Entre os anos de 1970 e 2008, mais de 95% das mortes por desastres de origem natural ocorreram em países em vias de desenvolvimento. CARDONA, Omar Darío, 2012. Além deste, estudos que discutiam essa relação entre pobreza e desastre: LLANES BURÓN, C. Los desastres nunca serán naturales, 2003; SERRANO, Julián Salas. Vulnerabilidad, pobreza y desastres ‘socionaturales’ em Centroamérica y El Caribe. Informes de la Construcción. La Rioja, vol. 59, out./dez. 2007, p. 29-41.
9
Cf. GUHA-SAPIR, Debby; VOS, Femke; BELOW, Regina; PONSERRE, Sylvain. Annual Disaster Statistical Review 2010. The numbers and trends. Louvain-la-Neuve, 2011.
10
ALLAN, Penny; BRYANT, Martin. The critical role of open space in earthquake recovery: a case study. Wellington, 2010 NZSEE Conference, 2010. Disponível em: <www.nzsee.org.nz/db/2010/Paper34.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2013.
11
“Good urban design and best practice earthquake planning are sometimes contradictory”. Idem, ibídem, p. 2.
12
WILCHES-CHAUX, Gustavo. La gestión del riesgo: del deber de la esperanza a la obligación del milagro. In: BRIONES, Fernando (coord.). Perspectivas de investigación y acción frente al cambio climático en Latinoamérica. Merida, Universidade de Los Andes, 2012, p. 247-270.
sobre a autora
Amanda Arcuri é graduada em arquitetura e urbanismo na FAU-UFRJ em 2011, estuda o tema desastre e pós-desastre desde 2009, quando iniciou o Trabalho Final de Graduação, Sistema de intervenção pós-desastre. Deu continuidade à pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (PROURB da FAU-UFRJ), e com a dissertação Pós-desastre: da vulnerabilidade à recuperação urbana recebeu o título de mestre em 2014.