No dia 16 de fevereiro de 2015, uma segunda de Carnaval, eu estava na Avenida 23 de Maio fotografando a obra pública da Tomie Ohtake defronte ao Centro Cultural São Paulo quando tocou meu celular. Só atendi pois na tela apareceu o nome: “Carlos Lemos”. Do outro lado, um interlocutor nervoso. Naquele mesmo dia seu artigo sobre os “Arcos do Jânio” havia sido adulterado pela Folha de S.Paulo. O editor responsável estranhou o adjetivo “pinturesco” e corrigiu para “pitoresco”. E o termo escapou do corpo do texto e pulou para o título, que ficou “Manifestações pitorescas delirantes”. No mesmo dia o portal Vitruvius publicou na revista Minha Cidade o artigo na íntegra, com o título correto, como queria meu aflito amigo do outro lado do telefone.
Esta anedota verdadeira me permite explicar o que significa Carlos Lemos para o portal Vitruvius. De sua autoria, publicamos um artigo na revista Arquiteturismo, outro na revista Drops. Nas revistas Minha Cidade, Resenhas Online e Arquitextos, temos quatro artigos em cada uma delas. Em Arquitextos, nossa revista científica monitorada pelo sistema Qualis da Capes, temos um sistema de avaliação cega por pares. Para cada novo assistente que chega, explicamos como funciona o sistema e sempre alertamos: “a avaliação vale para todo mundo, mas por favor, se chegar um texto do Carlos Lemos publique sem pensar”. O motivo óbvio deste privilégio é o mérito. Pergunto: para qual desafortunado pesquisador mandaríamos um texto de Carlos Lemos para ser avaliado?!
Intelectual de múltiplos interesses e competências, Lemos nunca usou o texto como um diletante. Sua aproximação é sempre apaixonada e fundamentalmente interessada. O texto é um meio para o diálogo, para o debate, eventualmente para a polêmica, sempre para o aprimoramento da crítica e da própria prática da arquitetura. Trata-se de estabelecer juízos de valor para se atuar com o necessário juízo prático no patrimônio, na cidade, no fazer arquitetônico em geral.
Carlos Lemos fez a felicidade de muitos editores. Quando Caio Graco, da editora Brasiliense, concebeu a “Coleção Primeiros Passos”, convocou o que havia de melhor. Para explicar O que é ideologia, chamou Marilena Chauí. Explicar “Revolução” ficou para Florestan Fernandes. “Arte”, com Jorge Coli. “Cultura popular”, com Antonio Augusto Arantes. Para explicar “Dialética” e “Filosofia”, Caio Graco chamou, respectivamente, dois intelectuais da pesada: Leandro Konder e Caio Prado Jr., seu pai. Para falar sobre O que é arquitetura e sobre O que é patrimônio histórico, todos nós sabemos quem foi o escolhido: Carlos Lemos! (1)
Alguns de seus livros são verdadeiros clássicos. O Dicionário da arquitetura brasileira, escrito com Eduardo Corona e publicado originalmente em fascículos na revista Acrópole ainda nos anos 1950, virou livro em 1972 e é até hoje uma das obras de referência mais consultadas em qualquer biblioteca de escola de arquitetura (2). Com o mesmo Corona e Alberto Xavier, é responsável por um livro mitológico, esgotado e a espera de reedição: Arquitetura moderna paulistana, edição de 1983 sob a responsabilidade do meu amigo Mario Sergio Pini (3).
Jacó Ginzburg, da Editora Perspectiva, ganhou de presente Cozinhas, Etc, que publicou em 1976 na igualmente clássica Série Debates (4). Em 1985, a editora da Nobel, Carla Milano, teve a felicidade de publicar Alvenaria burguesa (5). Para Plinio Martins Filho, eterno editor da Edusp, Lemos enviou Casa Paulista: história das moradias anteriores ao ecletismo, publicado em 1999 (6). Com interpretação que considera técnicas construtivas, tradições cultas e vernaculares, tipologias e modos de vida, os três livros mencionados formam com A Republica ensina a morar (melhor), publicado pela Hucitec em 1999, bibliografia obrigatória para qualquer estudioso sério da arquitetura brasileira anterior ao moderno (7). Eu e a Silvana Romano não tivemos ainda o privilégio de abrigar um livro dele em nossa pequena casa editorial, mas já conseguimos um pequeno ensaio na forma de apresentação do livro Taipa, canela-preta e concreto. Estudo sobre o restauro de casas bandeirista, de Lia Mayumi, publicado pela Romano Guerra Editora em 2008 (8).
Plínio é um editor feliz. Coube a ele também a publicação da maravilhosa e precoce autobiografia, publicada em 2005 pela Edusp, Viagem pela carne. Edição maravilhosa, com vermelho encarnado nas guardas, o livro traz as memórias de Carlos Lemos – na verdade, não só suas próprias lembranças, pois a narrativa se inicia com a história de seus ancestrais... Lembro aqui apenas uma das muitíssimas passagens deliciosas narradas pelo autor, ocorrida na sua passagem pela graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie. Segundo ele próprio, foi um episódio dramático, que marcou sua vida: um professor enfurecido se recusou aos brados a receber um trabalho de sua autoria. Segue sua descrição do desfecho do episódio:
“Conservei-me absolutamente calmo e por instantes permaneci estático observando o homem roxo de ódio gritando à minha frente [...]. Desde aquele dia, percebi que tinha sangue de barata. Realmente, não consigo perder a calma em qualquer situação; o máximo que posso sentir em situações como aquela do tempo de estudante é um formigamento na língua – vejam só em que lugar registro emoções fortes ou decisivas” (9).
Não concordo em absoluto com o “sangue de barata”. Tudo menos isso! Calmo e gentil, Carlos Alberto Cerqueira Lemos sempre foi enérgico, firme em suas posições. Polemista nato, nunca fugiu de uma refrega. Nunca se acomoda, sempre há algo a fazer. Em 2012, apenas três anos atrás, Lemos me ligou propondo a republicação de um texto que havia passado um pouco desapercebido nos Anais de um congresso. Acabei publicando e as dezenas de comentários elogiosos recebidos atestam a excelente recepção que mereceu dos leitores. O título do artigo é uma boa deixa para terminar esta pequena homenagem: “Uma nova proposta de abordagem da história da arquitetura brasileira” (10).
notas
NA – este texto foi lido na noite de homenagem a Carlos A. C. Lemos por ocasião dos seus 90 anos, ocorrida no Museu da Casa Brasileira, São Paulo, no dia 2 de junho de 2015, em parceria com Clara Correia d’Alambert, esposa do intelectual.
1
LEMOS, Carlos A. C. O que é arquitetura. Primeiros Passos, volume 16. São Paulo, Brasiliense, 1980; LEMOS, Carlos A. C. O que é patrimônio histórico. Primeiros Passos, volume 51. São Paulo, Brasiliense, 1981.
2
LEMOS, Carlos A. C; CORONA, Eduardo. Dicionário da arquitetura brasileira. São. Paulo, Edart, 1972
3
XAVIER, Alberto; LEMOS, Carlos A. C; CORONA, Eduardo. Arquitetura Moderna Paulistana. São Paulo, Pini, 1983.
4
LEMOS, Carlos A. C. Cozinhas, etc. São Paulo, Perspectiva, 1976.
5
LEMOS, Carlos A. C. Alvenaria burguesa. São Paulo, Nobel, 1985.
6
LEMOS, Carlos A. C. Casa paulista. História das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo, Edusp, 1999.
7
LEMOS, Carlos A. C. A república ensina a morar (melhor). São Paulo, Hucitec, 1999.
8
MAYUMI, Lia. Taipa, canela-preta e concreto. Estudo sobre o restauro de casas bandeirista. Coleção Olhar Arquitetônico, volume 3. São Paulo, Romano Guerra, 2008.
9
LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Viagem pela carne. São Paulo, Edusp, 2005.
10
Este e outros textos publicados no portal Vitruvius e referidos neste artigo são os seguintes:
LEMOS, Carlos A. C. A importância de preservar a memória da metrópole de Anchieta. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 152.00, Vitruvius, jan. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.152/4633>.
LEMOS, Carlos A. C. Uma nova proposta de abordagem da história da arquitetura brasileira. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 141.00, Vitruvius, fev. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.141/4214>.
LEMOS, Carlos A. C. Originalidade, autenticidade, identidade, valor documental. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 082.01, Vitruvius, mar. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.082/260>.
LEMOS, Carlos A. C. O modernismo arquitetônico em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 06, n. 065.01, Vitruvius, out. 2005 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/06.065/413>.
LEMOS, Carlos A. C. Patrimônio e turismo. Arquiteturismo, São Paulo, ano 02, n. 018.03, Vitruvius, ago. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/02.018/1448>.
LEMOS, Carlos A. C. Lá longe, no Ibirapuera. Drops, São Paulo, ano 14, n. 072.03, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.072/4866>.
LEMOS, Carlos A. C. Os arcos do Jânio. Minha Cidade, São Paulo, ano 15, n. 175.08, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/15.175/5440>.
LEMOS, Carlos A. C. Monumentos em perigo. Sobre o restauro e preservação dos Edifícios Esther, IAB-SP e Copan. Minha Cidade, São Paulo, ano 11, n. 121.03, Vitruvius, ago. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/11.121/3528>.
LEMOS, Carlos A. C. Que o “Minhocão” não faça falta. Minha Cidade, São Paulo, ano 10, n. 120.05, Vitruvius, jul. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/10.120/3507>.
LEMOS, Carlos A. C. A reforma do Museu do Ipiranga. Prevendo incêndios. Minha Cidade, São Paulo, ano 09, n. 101.02, Vitruvius, dez. 2008 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/09.101/1867>.
LEMOS, Carlos A. C. Modernidades regionais. Entre as obras e a questão historiográfica. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 141.03, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.141/4882>.
LEMOS, Carlos A. C. Seis percursos entre o Rio de Janeiro e as Minas Gerais.Resenhas Online, São Paulo, ano 09, n. 105.01, Vitruvius, jan. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.105/3740>.
LEMOS, Carlos A. C. A invenção da casa bandeirista. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 088.03, Vitruvius, abr. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.088/3042>.
LEMOS, Carlos A. C. Histórias da arquitetura. Resenhas Online, São Paulo, ano 01, n. 001.17, Vitruvius, jan. 2002 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/01.001/3262>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.