Em uma época em que as únicas cidades bem sucedidas parecem ser as cidades globais, que não param de crescer, sugando todo o investimento mundial, por que alguém se preocuparia com o urbanismo regional? Por incrível que pareça, muita gente na Europa demonstra essa preocupação; alguns chegam a afirmar que o movimento urbano contemporâneo teria duas mãos: uma em direção às cidades globais e outra em direção aos aglomerados regionais. Por esse motivo, o Centre for Urban Design, Architecture and Sustainability da Universidade de Huddersfield propôs o tema “Regional Urbanism in the Era of Globalisation” para um congresso internacional, realizado de 3 a 5 de fevereiro de 2016 (1). O encontro se propôs a discutir se os desafios econômicos, ambientais e sociais enfrentados por diversas regiões do mundo criarão oportunidades para que as cidades regionais desenvolvam novas alternativas de vida urbana, diferentes daquelas oferecidas pelas grandes metrópoles em constante expansão.
O local de realização do congresso não se deu por acaso. O Reino Unido vem se questionando sobre os efeitos da hegemonia política, econômica e cultural de Londres sobre as demais regiões do país. A pequena cidade de Huddersfiled (com 160.000 habitantes) fica exatamente no meio de um conglomerado regional que tem como principais cidades Manchester, Leeds, Liverpool e Newcastle. Essas cidades, que tiveram grande importância na revolução industrial inglesa e depois entraram em decadência, estão agora no foco da atual política inglesa de descentralização. Apesar de ter ocorrido em uma cidade pouco conhecida, o congresso reuniu participantes de diversos países e palestrantes famosos, como Saskia Sassen e Alexander Tzonis.
A palestra de abertura, intitulada “The role of small and medium size cities in the era of globalisation”, foi proferida por Carlos Garcia Vazquez, da Universidade de Sevilla. Segundo Garcia Vazquez, o mundo contemporâneo tem se caracterizado por movimentos opostos e simultâneos em direção, por um lado, à centralização da riqueza nas grandes cidades globais e, por outro, à descentralização da produção. Ele descreveu o conceito de metápolis (diferente do conceito de megalópolis), introduzido nos anos 1990 por François Arscher como um conglomerado de pequenas e médias cidades caracterizado pela descontinuidade espacial (com florestas e áreas agrícolas entre as áreas urbanas) mas com a presença de uma excelente infra-estrutura de transportes. Outra característica das metápolis seria a presença de uma nova forma de organização da produção, com micro-empresas, profissionais independentes (que são ao mesmo tempo produtores e consumidores), além da presença também de empresas globais. Esse fenômeno seria uma resposta à má qualidade de vida, poluição, desemprego e falta de segurança das grandes metrópoles (“new poverty”), o que teria ocasionado um novo movimento de migração para fora delas.
Garcia Vazquez citou como principais exemplos de metápolis a região de Randstad, que engloba Amsterdam, Rotterdam, The Hague e Utrecht, a região de Oresund, entre Malmo e Copenhagen (um caso interessante de metápolis binacional, entre a Suécia e a Dinamarca), e o vale do rio Pó, no Norte da Itália, que inclui Milão, Turim e Bolonha. O professor espanhol terminou sua palestra falando sobre a mudança no conceito de modernidade nas últimas décadas. Se nos anos 1990 a imagem de um arranha-céu em Shanghai expressava “modernidade”, hoje uma biblioteca comunitária ou uma ciclovia urbana expressam melhor o que se deseja da vida contemporânea. Ele citou o caso da região de Vitoria-Gasteiz, capital do País Basco, uma cidade de médio porte (com 250.000 habitantes) que vem recebendo, nos últimos anos, sucessivos prêmios de cidade com melhor qualidade de vida da Espanha. Segundo ele, isso resultaria de uma excelente rede de transportes conectando Victoria às demais cidade a seu redor, as quais não competem, mas colaboram entre si para oferecer a seus moradores uma variedade de eventos culturais, empregos e uma infra-estrutura planejada de maneira integrada. Em outras palavras, construir arranha-céus não faz com que uma cidade de médio porte se torne atrativa ou mais contemporânea; criar áreas agradáveis para os pedestres e uma infra-estrutura compartilhada com as cidades ao redor pode ser muito mais eficiente se o que se deseja é competir com os grandes centros urbanos.
O segundo dia do congresso teve palestras de Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, da TU Delft, e de Saskia Sassen, de Columbia University. Tzonis criticou as metrópoles e o isolamento e segregação das pessoas que nelas vivem. Ele comparou o atual sistema imobiliário ao famoso jogo de tabuleiro Monopoly, no qual investidores se tornam cada vez mais ricos ao adquirirem edifícios famosos no centro de uma grande cidade. Lefaivre complementou a fala de Tzonis apresentando alguns casos de habitação social bem sucedidos em Viena, como o Sargfabrik, do escritório BKK-3 (um projeto de requalificação de uma antiga fábrica de caixões), que estariam na contra-mão dessa fetichização do ambiente urbano e dos mega projetos de habitação social. Segundo ela, a cidade de Viena é proprietária de 220.000 unidades de habitação (o maior estoque na Europa), o que lhe permite controlar os preços dos aluguéis, fazendo com que a maioria dos vienenses não gaste mais do que 18% de sua renda em habitação.
Saskia Sassen se propôs a responder, em sua palestra, à pergunta “Who owns the city?” Ela mostrou uma lista com as cidades que lideram os rankings de investimentos imobiliários doméstico e estrangeiro. Como era de se esperar, Londres, Nova Iorque, Paris, Toquio, Los Angeles, São Francisco, Xangai, Chicago e Sydney figuram entre as primeiras, com investimentos que chegaram a 55 bilhões de dólares em 2014 (em Nova Iorque). Segundo Sassen, a densidade, tão elogiada pelos urbanistas, pode também “desurbanizar” uma cidade. Ela se referia, obviamente, aos grandes projetos de verticalização que são o objeto desses grandes investimentos e que acabam por destruir a vida nas ruas, como é o caso de Pudong, em Xangai. Afinal de contas, disse ela, uma cidade não pode ser apenas uma aglomeração de edifícios corporativos. Sassen acusou o sistema financeiro de estar colocando a classe média em risco, e perguntou “Can we move to a new organizing logic?” Segundo ela, estaríamos chegando a um ponto de saturação, com o surgimento de “empty urban land”, mas os preços estariam começando a despencar. Nesse cenário, afirmou Sassen, “Regional cities have a better chance”.
A palestra do último dia do congresso, intitulada “The Northern Powerhouse – a novel approach to regional urbanism?”, foi proferida por John Tomaney, da Bartlett – University College London. Tomaney descreveu a proposta, formulada pelo governo britânico em 2010, que prevê o fortalecimento da região Norte da Inglaterra, incluindo as cidades de Manchester, Leeds, Liverpool, Sheffield, Hull e Newcastle, lideradas pela primeira, visando contrabalançar a hegemonia de Londres e do Sudeste da Inglaterra (2). A área foi o berço da revolução industrial, com a extração de minério de ferro e carvão e criação de um parque industrial que teve grande importância até pouco depois de meados do século XX, quando a produção começou a se globalizar. A proposta envolve a melhoria dos transportes e investimentos em ciência e inovação (incluindo um centro de pesquisas sobre o grafeno), além de um processo de “devolution”, que consiste em conferir maior autonomia aos municípios, sob a liderança de Manchester. O plano teve início em 2009, com a contratação de um serviço de consultoria econômica por essa cidade (The Manchester Independent Economic Review – MIER), que tinha como objetivo servir de base para a tomada de decisões sobre os investimentos necessários na região (3). Tomaney concluiu sua fala afirmando que “infra-structure is the key”. Segundo ele, o investimento mais importante seria em transportes, com a diminuição do tempo de deslocamento entre as cidades do conglomerado.
No Brasil, o IBGE já utiliza, há anos, as categorias de capital regional e centro sub-regional para se referir às cidades de médio porte que exercem influência sobre as demais cidades a seu redor, como é o caso, por exemplo, de Campinas. Contudo, não são comuns estudos mais aprofundados sobre os conglomerados que poderiam competir com os grandes centros urbanos, e nem sobre as estratégias que permitiriam a esses conglomerados regionais manter sua coesão, oferecer qualidade de vida e desenvolver sua economia de maneira colaborativa. Nesse sentido, o congresso de Huddersfield, ainda que realizado em uma cidade muito modesta, pode nos trazer grandes idéias e perspectivas para o futuro, em um país em que cidades como São Paulo e Rio de Janeiro já começam a se tornar insuportáveis para seus habitantes.
notas
1
Regional Urbanism in the Era of Globalisation. Centre for Urban Design, Architecture and Sustainability, The University of Huddersfield <www.hud.ac.uk/schools/artdesignandarchitecture/research/conferences/regional-urbanism/>.
2
ver DEPARTMENT FOR TRANSPORT. The Northern Powerhouse: One Agenda, One Economy, One North. A report on the Northern Transport Strategy. Londres, DfT Publications, 2015 <https://www.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/427339/the-northern-powerhouse-tagged.pdf>.
3
Manchester Independent Economic Review <www.manchester-review.org.uk>.
sobre a autora
Gabriela Celani é arquiteta e professora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp.