Uma cadeira. Uma cadeira como qualquer outra cadeira de qualquer outra instituição pública brasileira. Uma cadeira como as cadeiras das escolas públicas, como as cadeiras das cadeias públicas. Uma cadeira como as cadeiras da Colônia Juliano Moreira, cujos portões Arthur Bispo do Rosário cruzou em 25 de janeiro de 1939, para viver internado a maior parte da sua vida. Uma cadeira incorporada no universo artístico de um dos mais expressivos artistas brasileiros do século 20, na mais pungente resposta à loucura cometida pela sociedade brasileira em todos os espaços manicomiais do país.
O lema gravado na entrada da Colônia Juliano Moreira, “Praxis omina vincit” (1), nos remete ao “Arbeit macht Frei” (2) encontrado nos portões dos campos de concentração nazistas. É justamente neste cenário que Arthur Bispo do Rosário cria através de objetos, instalações, assemblages, dos bordados e da escrita a sua obra, que é, na verdade, uma obra só. Durante toda a sua vida, que também em si foi obra, este ex-marinheiro, ex-boxeador, ex-funcionário da companhia de eletricidade Light e usuário do sistema de saúde mental diagnosticado como esquizofrênico paranoide, apresenta-nos um mundo onírico extremamente organizado e hierarquizado, mostrando-nos como fazer os muros da nossa casa através de um universo interior riquíssimo.
A sua cela no Núcleo Ulisses Vianna, ao invés de um lugar de confinamento, passou a ser ateliê e espaço de investigação, onde ele defendia os seus trabalhos com obstinação, pois via como missão catalogar “todo o material existente na Terra dos Homens” para salvá-lo no dia do Juízo Final. Em um mundo ensurdecido pelo caos da normalidade e no qual as vozes são abafadas, Arthur Bispo do Rosário vê a necessidade da garganta grita(r) (3).
Durante anos, desfiou os uniformes azuis do hospício, em um ato de subversão e lucidez contra a prisão manicomial, para em seguida transformá-los, bordando, rebordando, juntando, consertando, escrevendo, ocultando e criando catálogos e cartografias que ultrapassam as fronteiras entre o real e o imaginário, o visível e o invisível, o consciente e o inconsciente.
Através de um simples fio azul, Arthur Bispo do Rosário iniciou uma obra cujo único marco temporal parece ter sido a sua visão, alguns dias antes do Natal de 1938. “Eu vim”, escreve inúmeras vezes, na sua mais importante revelação. Depois, como uma “anti-Penélope” ou “anti-Aracne”, continuou a tecer a sua obra de maneira obsessiva, constituindo um corpus pertencente ao tempo, justamente em um lugar onde o tempo existia sem passado e sem futuro. “O tempo é o espaço vazio”, disse uma vez Stella do Patrocínio, que também viveu durante anos confinada na Colônia Juliano Moreira. No entanto, é neste tempo/espaço que Arthur Bispo do Rosário deixa-nos, ao morrer em 5 de julho de 1989, uma obra que quanto mais o tempo avança, mais se mostra atemporal.
E não podemos deixar de perguntar: como foi possível a uma pessoa que passou décadas enclausurada em um sistema manicomial que via como regra a exclusão do indivíduo, ter nos legado uma obra de importância singular em âmbito mundial em pleno século 20? E mais: como encarar e explicar a obra genial de Arthur Bispo do Rosário, diante de nossa frágil capacidade para entender e respeitar a menor diferença?
As respostas a essas perguntas talvez estejam perdidas entre os extremos a que a própria racionalidade humana nos levou no século 20, num ponto entre as grandes revoluções científicas, tecnológicas e médicas e as mais assustadoras brutalidades a que fomos capazes de chegar: a sensibilidade de um olhar que, simplesmente, elevou uma cadeira a alguns centímetros do chão.
sobre o autor
Luiz Gustavo Carvalho é curador da exposição A alguns centímetros do chão, exposição individual de Arthur Bispo do Rosário em itinerância pelo Sesi do Estado de São Paulo.
notas
1
Praxis omina vincit – tradução: “O trabalho tudo vence”.
2
Arbeit macht Frei – tradução: “O trabalho liberta”.
3
Inscrição de um dos estandartes “Eu preciso destas palavras escrita”, de Arthur Bispo do Rosário.