O Brazil de hoje impõe dilemas de ação e de linguagem. O presidente diz que cagou para a CPI e os comandantes militares avisam que quem continuar denunciando vai se arrepender. Ou, em termos populares, se tiver juízo deve começar a se cagar de medo.
Em circunstâncias de temperatura e pressão normais seria inaceitável utilizar essa linguagem numa coluna.
Mas está claro – ou precisa urgentemente ficar – que estamos cada vez mais longe de pressão e temperatura, sociais, culturais ou civilizatórias, normais.
E que não é uma política eficiente continuarmos nos comportando, em ações e linguagem, como se estivéssemos.
Diante das evidências borbulhantes de articulações golpistas – no plural – tão numerosas e intensas que uma coluna semanal não dá conta de recensear, a pior coisa a fazer é se refugiar no que alguém já chamou, de maneira precisa, de negacionismo de esquerda.
É uma reação psicológica ancorada no tipo de autoengano de quando éramos crianças e acreditávamos que, ao fechar os olhos, tudo que era ameaçador no mundo exterior desapareceria.
De um lado as pesquisas mostram o apoio popular de Bolsonaro derretendo semana após semana, o potencial eleitoral de Lula consolidado e ascendendo e a CPI começando a expor as entranhas do que parecia incompetência, mas era apenas a velha e boa corrupção no núcleo do Ministério da Saúde militarizado.
De outro, quando o presidente avisa, pública e solenemente, que cagou para o tema, boa parte da mídia, a classe média com restos de hábitos civilizados e as esquerdas em geral veem na manifestação do genocida simplesmente mais uma (e só aí já vai uma enorme carga de naturalização) demonstração de grosseria e despreparo.
Talvez seja mais prudente acreditar que, elegante ou não, ele disse o que pensa.
Porque sabe que a maioria da Câmara não dará bola para o relatório da CPI.
Porque Lira repetiu pela enésima vez que não abrirá processo de impeachment.
Porque os 54% de eleitores favoráveis a se livrar de Bolsonaro ainda não atemorizam os deputados que receberam 3 bilhões de reais no “orçamento paralelo” para investir nas suas bases e ninguém perguntar o que eles fizeram no verão passado.
Talvez porque a esta altura ele esteja mais preocupado com a eventual simpatia de setores militares por alguém mais limpinho, tipo Mourão, para levar adiante o serviço provocando menos reações desnecessárias.
Por isso a escandalosa nota dos comandantes militares e o destemperado repique do comandante da Aeronáutica devem ser entendidos pelo valor de face.
Os sete mil militares incrustrados no aparelho de estado podem até se livrar de Bolsonaro – se conseguirem – mas não tem a menor intenção de voltar aos quartéis.
Eles só não sabem, nem nós, se as ruas atenderão ao toque de recolher.
nota
NE – A publicação original do texto ocorreu no Facebook do autor.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.