Pode-se caracterizar como ruptura a relação das cidades com sua infraestrutura hídrica ao longo do processo de urbanização. A alta taxa de impermeabilização do solo, ao passo que afeta o ciclo da água causando irregularidade no período chuvoso, contribui para transformar fenômenos naturais em desastres. Observa-se que as cidades – leia-se: gestores do planejamento urbano – reagem, com inércia, quando as águas ressurgem. No período de chuvas mais concentradas, os meios de comunicação transmitem, de forma exaustiva, os recorrentes desastres e as cidades onde ocorrem também.
Inundações e enxurradas de terra foram responsáveis por 11,1% das mortes por desastres naturais no mundo, entre 1996 e 2015, sendo que 68,3% são pessoas de classe média-baixa e baixa (1). Somente em 2015, cerca de 156 ocorrências de enchentes foram registradas, o que representou 46,5% de todos os desastres ocorridos nesse ano (2). As ocorrências de externalidades têm se intensificado, principalmente nos países em desenvolvimento, que apresentam fragilidades quanto ao planejamento e prevenção de desastres.
No começo do ano de 2020, entre os meses de janeiro e março, as tragédias relacionadas às enchentes e deslizamentos de terra na Região Sudeste do Brasil contabilizam quase 120 mortes e mais de 30 mil desalojados, nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, um ano após a tragédia de Brumadinho, que vitimou 270 pessoas. Tal situação traz sempre à luz discussões acerca do impacto de fenômenos naturais no ambiente urbano. Reflexões sobre causas, consequências e estratégias para mitigar tais cenários são resgatas. No entanto, já é de conhecimento, tanto dos órgãos públicos e da sociedade, que os locais atingidos apresentam alta vulnerabilidade a inundações.
A partir dos dados da Agência Nacional de Águas, autarquia atualmente vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, é possível observar a frequência, impacto e vulnerabilidade a inundações na Região Sudeste do Brasil. Regiões e cidades mais afetadas pelas chuvas este ano, como São Paulo, Belo Horizonte e Vitória, apresentam alta suscetibilidade a externalidades causadas pelas chuvas. Considerando que dados como estes são obtidos com base em análises de séries históricas, conclui-se que o Estado é ciente da fragilidade dos municípios brasileiros em suportar fenômenos naturais mais intensos.
As políticas públicas ambientais para as cidades brasileiras, relacionadas às áreas mais frágeis e suscetíveis a desastres, têm focado na identificação das áreas de ocupação irregular. No entanto, os principais investimentos ainda são empregados no socorro às vítimas (remediação), e as ações para que os acidentes sejam minimizados ou evitados (prevenção) são colocadas em segundo plano (3).
Parte deste contexto pode ser explicado pelo fato de eventos climáticos severos relacionados às chuvas sofrerem com a chamada “tragédia dos bens comuns”, na qual chuvas mais intensas são tratadas como um perigo comum e natural, relacionada apenas pela adversidade meteorológica no período e sem vínculo com ações antrópicas no meio urbano. Este discurso torna os gestores e sociedade relutantes ou incapazes de participar de ações efetivas para gerenciar todo o sistema (4). De fato, enchentes são fenômenos naturais e os rios e riachos passam periodicamente por este ciclo, porém, inundações só ocorrem quando a área por onde a enchente do corpo hídrico passaria foi ocupada (5). Não se pode negligenciar as causas de tais desastres sob a justificativa de que são fenômenos naturais.
As declarações dadas por gestores públicos, responsabilizando a população pelos desastres ocorridos, associados às reduções nos investimentos de prevenção a enchentes (6) expõem a ineficiência do Estado em fazer cumprir o que determina a lei. O Art. 6 da Constituição Federal considera a moradia e a assistência aos desamparados como direitos sociais a serem garantidos a toda a população, sendo, portanto, responsabilidade do Estado, nas esferas municipal, estadual e federal, fazer cumprir este dispositivo. Assim, não é possível admitir que os gestores públicos dirijam a responsabilidade de prevenir e mitigar desastres naturais para a população, uma vez que a administração pública é quem representa os interesses da comunidade. A relocação de famílias em áreas de risco é uma das principais medidas preventivas, asso
notas
1
UNITED NATIONS OFFICE FOR DISASTER RISK REDUCTION. Poverty and Death: Disaster Mortality 1996-2015. Geneva, UNISDR, 2015.
2
GUHA-SAPIR, Debarati; HOYOIS, Philippe; BELOW, Regina. Annual Disasters Statistical Review: The Numbers and Trends. Brussels, Centre for Research on the Epidemiology of Disasters, 2016.
3
PISANI, Maria Augusta Justi. Arquitetura e urbanismo resilientes às inundações: planejamento de áreas inundáveis e tipologias de edificações. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, v. 18, n. 2, São Paulo, jul-dez. 2018, p. 145-163 <https://bit.ly/3Ceso99>.
4
SPENCE, Kevin; BRIDGE, Jonathan; MCLUCKIE, Duncan; KANDASAMY, Jaya. Urban Stormwater and Flood Management. In: JEGATHEESAN, Veeriah; GOONETILLEKE, Ashantha; VAN LEEUWEN, John; KANDASAMY, Jaya; WARNER, Doug; MYERS, Baden; BHUIYAN, Muhammed; SPENCE, Kevin; PARKER, Geoffrey (ed.). Urban Stormwater and Flood Management. Applied Environmental Science and Engineering for a Sustainable Future. Cham: Springer, 2019.
5
BOTELHO, Manoel Henrique. Águas de chuva: engenharia das águas pluviais nas cidades. 3a edição. São Paulo, 2011.
6
MELLO, Igor. Crivella culpa cariocas, mas zera investimento em prevenção de enchentes. UOL, 2 mar. 2020 <https://bit.ly/3fD0dHh>.
sobre os autores
Alexandre Augusto Bezerra da Cunha Castro é graduado em Arquitetura e Urbanismo (UFPB, 2011), Mestre em Engenharia Urbana e Ambiental (PPGEUA-UFPB, 2014), doutorando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAU-UFRN), membro do Grupo de Pesquisa Morfologia e Usos da Arquitetura (MusA-UFRN). Professor Assistente A (Substituto) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e professor da UNIFIP Centro Universitário de Patos, Paraíba, Brasil.
Karla Azevedo dos Santos é graduada em Arquitetura e Urbanismo (UNIFACISA, 2011), Mestre em Engenharia Civil e Ambiental (PPGECA-UFCG, 2015), onde desenvolveu pesquisas voltadas ao estudo das águas urbanas. Atualmente, atua como professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do UNIFIP Centro Universitário de Patos, Paraíba, Brasil.