Da tocha olímpica, ao Borba Gato e a uma parte ainda não mensurada da cultura cinematográfica brasileira, o fogo esteve presente na nossa vida mental e afetiva de forma particularmente intensa nos últimos dias.
Poder roubado aos deuses por Prometeu para presentear os mortais, segundo a mitologia grega, que não esquece de agregar a eterna condenação sofrida pelo traidor, o fogo aparece ao longo dos tempos e mitos associado duplamente à vida, conhecimento e poder, mas também à destruição e à condenação.
Na tradição grega, equivale ao conhecimento e embasa uma certa tradição, entre o literário e o arqueológico, que identifica no seu domínio um momento central na constituição do humano, juntamente com o surgimento do ritual mortuário, expressão de consciência da própria morte e do erotismo, derivação especificamente humana da sexualidade.
Na judaico-cristã, é de fogo a espada que expulsa Eva e Adão do paraíso, após a heresia do conhecimento, condenando-a às dores do parto e a ele ao suor do trabalho. Mas sobretudo ameaçando-nos com a danação eterna no fogo dos infernos, o que nunca é demais lembrar no ano do hepta centenário de Dante, aquele que ao descrever os círculos do inferno criou também uma das primeiras línguas modernas.
A tocha olímpica nos lembra que o fogo é energia vital que deve ser preservada entre um e outro ciclo da vida e conduzida por aqueles que melhor expressam as virtudes da justiça e da pureza.
Mas uma vez acesa nos expõe não apenas ao inevitável ciclo de vitórias e derrotas, mas às dificuldades inerentes a esse processo de transferência afetiva que caracteriza o esporte moderno.
Exaltamos, com razão, a vitória da jovem negra e pobre que tem a ousadia de levar o Baile da Favela para o centro do Olimpo, mas fingimos não perceber que reduzir o esporte a histórias de superação individual é uma maneira nada sutil de evitar a denúncia do sucateamento do pouco que o Brasil havia construído em termos de apoio sistêmico ao esporte.
A decisão de atear fogo, novamente mais simbólico que real, a um monumento que exalta um personagem narrativamente construído a partir da necessidade de afirmação simbólica do estado de São Paulo depois da derrota de suas elites em 1930, poderia suscitar reflexões e debates muito mais consistentes do que vimos até agora.
Mas nada justifica que os autores desse suposto vandalismo estejam presos e os que realizaram a batalha das propinas à custa de meio milhão de mortos não. Que para a nossa mídia, frequentemente autoproclamada opinião pública, destruir uma vitrine seja vandalismo e destruir um país, não.
Falta espaço para falar do crime doloso perpetrado contra a Cinemateca ou para lembrar que por sorte apenas presidentes que prezam a nossa língua (os de Portugal e de Cabo Verde) estiveram presentes à reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, obra do mestre Paulo Mendes da Rocha, que literalmente ressurge das cinzas nesta semana.
E terminamos sem saber se toda esta digressão serve para perguntar se nosso país ressurgirá, qual fênix, de todas as suas queimadas ou apenas para desejar que os responsáveis ardam no fogo dos infernos.
nota
NE – A publicação original do texto ocorreu no Facebook do autor.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos e gostaria de ter estado presente à reinauguração do Museu da Lingua Portuguesa, após a reconstrução levada a cabo sob a coordenação de seu amigo Pedro Mendes da Rocha.