Assisti a várias palestras de Paulo Mendes da Rocha, mas duas das maiores lições que aprendi com ele se deram em encontros pessoais. Vi muitas de suas entrevistas, conheci e me debrucei sobre muitos de seus projetos e obras construídas, mas foram suas atitudes em dois momentos íntimos que me fizeram compreender melhor a dimensão do homem e do arquiteto.
Em 1997, estive no Congresso Brasileiro de Arquitetos, em Curitiba. Eu era ainda um estudante de arquitetura mais ou menos pela metade do curso e Paulo Mendes da Rocha fez a conferência de abertura. Foi uma palestra inesquecível para mim. Paulo começou falando de desarmamento mundial e dos desafios da arquitetura em âmbitos planetários, para problematizar a condição do arquiteto “no limiar do século 21” — tema geral do evento. O impacto da queda do muro de Berlim e o esmaecimento da guerra fria não eram matéria apenas de geopolítica internacional. À luz do pensamento dele, eram circunstâncias incontornáveis para um arquiteto do seu tempo. Além disso, a temática ambiental e a sobrevivência da civilização humana (que ele sempre contemplou pelo lado positivo do engenho e da inventividade) ajudaram a conduzir aquela reflexão.
Depois da palestra, do lado de fora do auditório, se formou uma fila enorme de estudantes e arquitetos interessados em conseguir dele um autógrafo ou um croquis. Fiz questão de me colocar por último e, a cada novo colega que chegava, eu voltava a ocupar o almejado e derradeiro posto. Assim, depois de um tempo, pude estar a sós com ele, que, com a caneta em punho, estranhou que eu não lhe entregasse um caderno aberto: “Você não quer um desenho?”. “Não, seu Paulo, eu quero apenas conversar”.
Ele riu muito e acho que gostou da ideia, pois ficamos ali, por algum tempo, a falar de arquitetura, dos assuntos da palestra, dos desafios contemporâneos da profissão. Alguém veio lhe chamar para assistir à outra conferência ou evento que se seguia – não me lembro exatamente o que é que era –, mas ele imediatamente respondeu que iria depois e que, naquele momento, iria ficar um pouco mais ali comigo, conversando sobre arquitetura. Após algum tempo, já bem conversados, acabei levando dois desenhos seus, um deles para um grande amigo que também lhe admirava muito. Mais ainda do que isso, levei a lição de uma generosidade imensa para com um estudante que queria muito aprender.
Muitos anos depois, reencontrei Paulo Mendes da Rocha na sala de embarque do Aeroporto de Congonhas. Caminhávamos oportunamente ao encontro um do outro e paramos para conversar, muito brevemente, como convém a viajantes no vai e vem interminável de uma sala de embarque. Foram poucas e gentis palavras. Seu filho, Pedro, também arquiteto, logo se aproximou e nos despedimos, desejando-nos reciprocamente boa viagem. A outra lição estava ainda por vir.
Eu viajava para Belo Horizonte e, para minha surpresa, eles também. Só me dei conta disto quando identifiquei o meu lugar, ainda em pé, no corredor do avião, e vi que Paulo estava sentado na fileira anterior. Guardei minha bagagem e não trocamos palavra, ocupados com os preparativos da viagem. Pedro ficou com o assento da janela e aparentemente adormeceu. Paulo ficou com o assento do meio, exatamente à minha frente. Ajeitei-me na poltrona e comecei a ler um livro, esperando a decolagem do avião. Assim que levantamos voo, alguns minutos depois, foi quando tudo aconteceu.
Imagino que Paulo Mendes da Rocha tenha decolado de Congonhas algumas centenas de vezes em sua vida. Não deveria ser, portanto, uma novidade. Mas para ele era, sim, em alguma medida que importa muito aqui. De sua poltrona, já octogenário, ele esticou o corpo e o pescoço em direção à janela. Enquanto era possível ver e observar alguma coisa lá embaixo, ele permaneceu completamente estendido em direção à janela. E tinha um olhar tão intenso de curiosidade que era impossível não notar. Como estávamos, ambos, sentados nos assentos do meio, eu possuía uma posição privilegiada para vê-lo de perfil, no intervalo entre as poltronas, já que o encosto do assento da janela estava reclinado. O olhar lançado para baixo era aguçado e inquieto, a tentar capturar os desenhos da cidade e do território que se definiam lá embaixo. Era impressionante notar a sua atenção. Parecia uma criança que voava a primeira vez. Por vezes, um olhar arregalado; por vezes, a expressão de insatisfação; por vezes, ainda, a expressão de alguma descoberta.
Volta e meia, conto esta história para os meus alunos de arquitetura, como uma lição que dele lhes transmito. Grandes arquitetos e arquitetas se fazem de várias maneiras, com tantas qualidades que seria ingênuo pretender elencar. Mas em todos esses, dificilmente faltará esta virtude que se revelou ali de um modo muito divertido, com requintes anedóticos. Para se fazer um bom arquiteto, é preciso, além de muito estudo e dedicação, nutrir essa curiosidade inesgotável, essa vontade de conhecer e de desvendar o porquê e o não-sei-quê das coisas, seus espaços, seus sentidos, suas formas, sua história. Essa atitude permanente de compreender se transforma em desejo de desenhar e construir, diria Paulo, o que realimenta a curiosidade, numa espiral interminável de voos e de mergulhos pelas coisas, mesmo quando já se leu ou viu aquilo tantas vezes, mesmo quando já se recebeu os mais honrosos prêmios que a sua profissão pode oferecer.
sobre o autor
Rodrigo Bastos é arquiteto, engenheiro civil, mestre pela Escola de Arquitetura da UFMG e doutor pela FAU USP. Foi professor de vários cursos de Arquitetura no país e atualmente é professor associado do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de dois livros, A maravilhosa fábrica de virtudes e A arte do urbanismo conveniente.