O relógio da história acelerou e qualquer tentativa de análise está arriscada ao atroz desmentido dos fatos. E, paradoxalmente, nunca tantos se arriscaram a opinar tão taxativamente.
O velho bordão da verdade como primeira vítima da guerra parece superado. Hoje, a primeira vítima, condenada previamente, é a possibilidade do exercício da dúvida. A “verdade” vai muito bem, porque cada um tem a sua e parece muito feliz com ela.
O incomodo privilégio de viver num momento agudo da guerra entre três impérios – o norteatlântico, o russo e o chinês – em diferentes momentos de seu ciclo de expansão e declínio, deveria induzir cientistas políticos, historiadores e intelectuais em geral a uma posição de humildade, de reconhecimento da extraordinária complexidade desse processo e de cada um de seus episódios. O contrário do que nos chega diariamente por todos os meios: certezas e mais certezas. Ferozes, inabaláveis.
Para além da geopolítica, das forças militares e econômicas, dos organismos internacionais, dos interesses estratégicos em torno do petróleo e do gás, talvez haja uma outra dimensão fundamental para tentar apreender em que condições se dá e que consequências poderá vir a ter esta que, de maneira tão evidentemente errônea, se imaginou que poderia ser a Guerra Fria 2.0.
Como demonstrado enfaticamente nos últimos dias, de “fria” ela não terá nada. E 2.0 já não dá conta do “ambiente comunicacional” em que se desenrola. Os especialistas definem como web 4.0 a dominada pelos algoritmos que rastreiam o que as pessoas postam e reorientam seletivamente as mensagens que cada um receberá. Em milissegundos.
As reações do que em outros tempos se poderia chamar “opinião pública mundial” parecem indicar que mais do que Biden, Putin, Zelensky ou Xi Jinping, a chave para entender o terreno em que se desenrola essa batalha é Mark Zucherberg.
Qualquer que seja o resultado da guerra no antigamente chamado mundo real, parece que sua dinâmica só poderá ser compreendida a partir da ideia de Metaverso.
Não importam mais os líderes em carne e osso, suas histórias ou compromissos, seus atributos e circunstâncias, mas a sua transformação em avatares.
Como entender a decisão de Putin de acelerar o desenlace de um processo em que vinha jogando há anos e conquistando a fama de – cruel e sanguinário ou não – frio estrategista? Ou ele nunca foi um estrategista frio e cruel ou algo, que até agora não sabemos e talvez nunca saibamos, o empurrou a essa decisão que é difícil não avaliar, de imediato, como desastrosa em termos de imagem.
Como entender, no outro polo, que o ponto central de seu discurso sobre o Estado da União seja a promessa de Biden de “trazer os empregos americanos de volta”?
Surpresa zero em que o plenário do congresso estadunidense se levante em aplauso bipartidário à menção da palavra liberdade, embora estejamos cansados de saber que aplaudem uma ideia de liberdade que só vale para eles.
Mas podemos acreditar que Biden se livrará da surra que as eleições midterm em novembro lhe prometem assumindo as bandeiras e as promessas de Trump? Quem simpatiza com Trump porque votaria em Biden?
E o que significa, não só para esta guerra mas para o nosso futuro como sociedade humana, a brutal irrupção em escala global do “cancelamento”, essa curiosa criatura gerada pela hibridização entre as redes sociais e o puritanismo new left?
Não seria surpreendente que Putin, essa encarnação de todos os males, fosse cancelado. Mas quem poderia esperar que a Rússia e tudo que é ou foi russo inaugurasse a nova escala, planetária, desse brutal processo?
Na civilizada Milão, uma universidade decidiu suspender um curso sobre Dostoievski, um escritor que morreu em 1881. Um reconhecido maestro russo foi demitido na Alemanha, terra de Wagner e Hitler. As empresas de stream e os festivais internacionais evitam a divulgação de filmes russos porque “geram sensibilidade”. Outras universidades e instituições culturais do “Ocidente democrático” seguem na mesma trilha.
A Fifa e o Comitê Olímpico Internacional proíbem a participação de atletas russos em qualquer atividade internacional, embora não vejam nenhum problema nos estadunidenses, sauditas, israelenses ou quatarianos, que vêm, como se sabe, de países sabidamente pacifistas e fieis cumpridores das normas internacionais.
E quando sobrevinha a esperança de o Brasil já tivesse o bastante com suas próprias insanidades para aderir a mais essa, eis que o respeitável Sesc São Paulo (até tu, Danilo Miranda?) decide cancelar a oitava edição de seu festival de cinema russo.
Me pergunto, como professor de história da arte e da arquitetura, se ainda poderei falar em Tatlin, Malevich, Chernikov, Kandinsky, Chagal, Lissitsky, Popova, Stepanova e Ginsburg, ou se a Rússia, e tudo que é ou foi russo, estará definitivamente transformado em anátema e cancelado no altar do monopólio internacional do gás e do petróleo?
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.