“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Saculejo, dou um tranco no pescoço, bato a cabeça no vidro, meio dormido, meio fora do mundo, dentro do ônibus que atravessa a cidade. Sou só sono, embaçado, contando minutos para sair, descer, esticar as pernas anestesiadas, os braços formigando, a zonzeira da vida toda. As pessoas passam pela minha catraca sem me ver. Um ou outro ainda paga em dinheiro para ressuscitar o cobrador. Cobrar. Às vezes, dar uma informação. Cobrar, por ironia, justamente, por aquele que só faz fugir de cobranças e contas sem fim.
Sair de Taboão, pegar a Francisco Morato até o Butantã, subir a Teodoro até a Dr. Arnaldo e descer a Consolação até a Xavier, a Praça Ramos e o Largo Paissandu. E rumar pela Prestes Maia até a Marginal em direção ao Tatuapé. Cruzar o Tietê e toda a Vila Maria até a Medeiros. Desembarcar só no Jaçanã. Fumar. Voltar. Não sei como o motorista aguenta. Ele ganha mais, mas eu não daria conta. Ele comanda e eu não existo.
Tenho um zumbido no ouvido que se mistura com os ruídos do motor, dos motoboys, das buzinas, das sirenes, dos aviões, dos celulares e seus tik-toks, dos bate-estacas, das serras tico-tico, dos marteletes de obra, que me impede de ouvir os passageiros. Ahn? A cidade é um itinerário por onde a minha vida trafega. Nada acontece para me tirar da rota diária. Só alivia no Jaçanã, na paradinha rápida do fim da linha, a minha fuga do Carandiru.
Me distraio ao reconhecer um passageiro, uma cara que resmunga ou cantarola, um que perde o ponto ou o rumo. Invento apelidos: o guarda-chuva vermelho, a mochila laranja, o lenço arco-íris na cabeça, os olhos de coruja, o trio da Fiel, o Vila Maria-vai-com-as-outras, o enrosco na catraca, a mãe que dorme e baba, o Zé do Biju com seu terno cáqui bem cortado, gravata estampada, sapato engraxado, produtos numa mão, matraca na outra, declamando versos de cordel. Todos na peleja, subindo e descendo desse mundo que cobra mais do que eu. Esperando passar, esperando chegar a sua vez.
Estamos no mesmo ônibus, de alguma forma, interligados, mas sozinhos. Muitas origens, mesmos destinos. Envelhecemos com os sentimentos e as palavras roendo no fundo do pensamento.
nota
NE – Décimo texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.