O Movimento Moderno marcou a paisagem urbana e a cultura de muitas cidades latino-americanas com exemplares notáveis que hoje fazem parte do património arquitetônico e urbanístico, muitos deles declarados monumentos históricos pelos órgãos de avaliação e proteção.
Uma obra de destaque é o edifício da Municipalidad de Córdoba, produto de um concurso nacional de projetos vencido em 1953 pelo escritório portenho SEPRA – Sánchez Elías, Peralta Ramos e Agostini, de importante atuação, entre cujas obras de ressalte merecem menção o Banco de Londres y América del Sur (em coautoria com Clorindo Testa), os hotéis Sheraton e Libertador, a torre Catalinas Norte, o Hospital Privado de Córdoba e outras.
O projeto provocou impacto na estrutura urbana e na consciência social conservadora da época por suas características simbólicas e inovadoras. O edifício articula dois volumes diferentes, correspondentes a sede do poder executivo municipal um deles, e aos escritórios administrativos o outro. A composição volumétrica integra significativos espaços urbanos e definem o denominado Centro Cívico da cidade, composto pelo próprio edifício municipal, o edifício do Palacio de Justiça (de organização e linguagem neoclássica), o caraterístico riacho La Cañada, o Passeio Sobremonte e as praças Itália e da Intendência.
O volume administrativo pousa sobre um sistema de pórticos de concreto aparente de expressiva plasticidade, resultante de evidenciar a resposta aos próprios esforços estruturais, que concentram a distribuição dos pilares dos pavimentos tipo. Brisse soleis protegem as aberturas nas orientações Leste, Norte e Oeste, e o sistema construtivo fica evidente manifestando o concreto aparente na estrutura e os planos de alvenaria nos fechamentos. A organização tipológica é de planta livre, com núcleo central de circulações e serviços.
O volume executivo, mais baixo, possui colunata perimetral que define uma ordem monumental para a sede do governo. A base do edifício se resolve com pedra do lugar, integrando a linguagem internacional com elementos da geografia local.
A articulação e integração entre interiores e exteriores, diversidade de alturas e sequências de locais abertos e semicobertos definem uma espacialidade rica e cambiante, um dos principais legados do Movimento Moderno.
Ao longo de mais de sessenta anos de vida o edifício sofreu modificações provocadas pelo acúmulo de escritórios para atendimentos presenciais, e assim dar conta da crescente demanda de uma cidade que experimentou um dinâmico processo de crescimento e transformação. Sucessivas improvisações foram alterando as qualidades do espaço original para dar lugar à crescente e dominante burocracia.
As obras de restauro do Hall principal se iniciaram em 2021, sob gestão da Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Governo Municipal, e permitiram recuperar as características originais do projeto. A superação do atendimento presencial e a substituição do papel pela informação nas nuvens revelaram a inutilidade e ineficácia de inúmeras divisórias físicas que, a aos poucos, foram destruindo os conceitos do projeto inicial, especialmente a limpeza da estrutura e a claridade das integrações espaciais.
Divisórias inúteis e agressivas foram retiradas e camadas de tintas foram removidas até recuperar a aparência magnifica do concreto domesticado (cuidadosamente construído, diferente da expressão bruta dos projetos corbusieranos).
O brutalismo revalidado é surpreendente, assim como a limpeza de elementos supérfluos, que revela a ideia original do projeto de integração de espaços interiores e exteriores, de diversas alturas.
À valorização da arquitetura, indubitável patrimônio cultural da cidade, soma-se uma reivindicação pessoal. Durante doze anos desenvolvi trabalhos profissionais na Secretaria de Desenvolvimento Urbano e na Direção de Planejamento Urbano, e sempre estimei as qualidades arquitetônicas do meu local de trabalho. Embora cobertas por camadas de tinta e múltiplas improvisações, dava para imaginar as intenções originais do projeto. Mas nada se compara com a gratíssima supressa de descobrir o espaço com suas características originais, até o ponto da emoção e a reafirmação do amor pela profissão escolhida. Viva a Arquitetura!
sobre o autor
Roberto Ghione, Arquiteto, Especializado em Crítica Arquitetônica, Preservação do Patrimônio e Planejamento Urbano. Presidente do IAB PE 2017/2119. Titular do escritório Vera Pires e Roberto Ghione Arquitetos Associados.