A massa deformada agarra o gesto das mãos. A geometria do edifício é testada por pesos. O corpo imprime seu vazio sobre a matéria. Os vazios se solidificam. Como produzir tensão, é o título da nova exposição de Marcia Pastore. “Como” — termo em evidência — carrega a indagação central na trajetória da artista; pista para sua compreensão. É sobre os procedimentos que ela reflete. Portanto, seu trabalho pede uma ponderação a respeito das ações e a escolha dos verbos adequados para descrevê-lo. Assim, a exposição é um conjunto que intervém na linguagem, nos incentivando a usá-la para definir o que vemos, o modo como as operações são desencadeadas e, a partir disso, entender o mecanismo posto em funcionamento. Isso tudo pode parecer muito difícil, mas requer o mínimo: estar frente a frente com o trabalho e perceber como ele acontece.
Marcia Pastore, nascida em São Paulo, pertence a uma geração de artistas do Brasil que, a partir dos anos 1990, se dedicou a produzir obras que tensionam a experiência da vida até seu espessamento, ampliando assim nossa zona de atrito com o cotidiano. Dentre elas, o trabalho de Marcia se destaca por considerar seu próprio corpo como escala sem, no entanto, entendê-lo enquanto regra universal. É um instrumento de aferição particular, que verifica o mundo sem planificá-lo ou advogar por uma experiência comum. Para isso, lida constantemente com a impossibilidade de refazer a realidade a partir do que apreendeu dela — deixando evidentes os vãos, as lacunas e o vazio que sobram entre a arte e aquilo a que ela se refere. São essas frestas que ganham matéria no trabalho da artista.
O conjunto disposto na galeria mostra como Marcia faz isso, e então ganha interesse na variedade dos procedimentos revelando seu compromisso ético de entender e se relacionar com o contexto em que trabalha, sem impor sua presença de forma autoritária. Assim, é possível perceber dois vetores de sua pesquisa: aquele que investe na direção do espaço procurando conhecê-lo a partir do trabalho. E aquele que se volta para o corpo como experiência do mundo.
Sobre o espaço: Marcia entende sua estrutura ao dispor cintas conforme a geometria das tesouras de madeira que sustentam o teto. Geometria que deforma, ao fazer pesar sobre ela cilindros encontrados em ferro velho. O mesmo desenho é investigado em trabalhos de linha e agulhas que são atraídas por pontos imantados. Nenhuma dessas operações descreve ou explica o espaço — ao contrário, testam e tensionam seu funcionamento como em um diálogo feito de argumentos, não de sínteses.
Sobre o corpo: o mecanismo das frestas e o conjunto de gestos amassados são indícios, rastros de movimento. O corpo, no trabalho de Marcia, é uma técnica de enfrentamento. Da experiência de reconhecê-lo, marcá-lo e registrar seu desenvolvimento pelo espaço resultam elementos sólidos. Elementos que não figuram nem representam um corpo, mas são produtos da relação. O que interessa a artista é isso: reter e materializar essas relações, justamente por entender que é nessa negociação — fugidia e constante — que podemos estabelecer um jeito ocupar o espaço, um modo de estar.
De tudo que está exposto, o vídeo é mais recente. Nele, as pernas de Marcia estão envolvidas por fios que são tensionados pelo simples movimento de abrir e fechar. Aqui a novidade é o corpo aparecer como matéria do trabalho, onde incide o gesto que pode transformá-lo. Há um caminho que se abre a partir dessa proposta. Um caminho novo que submete o corpo a lógica desse trabalho de anos; o corpo como resultado das relações que o constituem, um corpo feito de negociações, um corpo disposto a ser tensionado pela experiência. Marcia Pastore: como produzir tensão.
sobre o autor
Yuri Quevedo é curador da Pinacoteca de São Paulo e professor de História da Arte na Escola da Cidade. Formou-se em Arquitetura e Urbanismo na mesma instituição, e é mestre em História da Arte pela FAU USP.