Ana Rosa de Oliveira: Na sua conferência “jardins históricos, a restauração do paraíso” você iniciou falando da necessidade de proteção do jumento, caracterizador de toda cultura do semi-árido. O exemplo serve para fundamentar uma crítica à prática corrente da preservação? O que a caracteriza? Há alguma perspectiva de mudança?
Carlos Fernando de Moura Delphim: Todo mundo acha perfeitamente normal proteger, por exemplo, o mico-leão e investir fortunas para assegurar ao planeta a existência desse primata ameaçado de extinção. Isto porque não existem preconceitos na área ambiental. Na área cultural, contudo, ainda existe uma postura “col monte” de gente que torce o nariz para o que não se acha ainda incorporado à cultura pretensamente erudita. Para elas ser culto é tocar Eric Satie ao piano, gostar de poemas de Kavàfis, ler Proust, reconhecer um Pollock, ter visto todos os filmes de Einsenstein. O conceito de cultura mudou tanto depois dos anos 60 e ainda tem gente assim. Se eu falo de proteger o jumento no Nordeste, essas pessoas têm verdadeiros acessos de riso. “Era só o que faltava, agora vamos ter de tombar até os jumentos”. Ninguém riu quando se falou de proteger o mico-leão na área ambiental.
Há algo mais importante que um jumento na cultura do semi-árido? Que animal resiste às agruras do agreste com tamanha bravura? Sobre eles escrevi, em uma matéria publicada em jornal cearense: “Vendo os jumentos ao longo das estradas, meditei sobre a aura de santidade que os envolve. Animais indispensáveis à cultura nordestina, tornaram-se obsoletos. Hoje, motos substituem os trabalhos que prestavam. Lamentei que o frigorífico fosse o único e triste destino que um mundo mecanizado reserva a um animal cujos custos são maiores que os benefícios que pode oferecer, malgrado ter sido o eleito para participar dos momentos mais importantes da vida de Cristo”.
Quase todos os jumentos nordestinos estão sendo exportados sob a forma de bifes para o Japão, enquanto os interessados pela cultura brasileira são capazes de gastar uma fortuna para conservar a casa de fazenda de um inexpressivo escritor, só porque é oriundo de uma daquelas indestrutíveis oligarquias nordestinas.
No Rio Grande do Sul, acontece o contrário. Não preciso dizer nada do que é preciso proteger porque já estão muito à frente. A preservação das Missões, por exemplo, não exclui a preservação de cepas primitivas de plantas e animais como o carneiro missioneiro. Já estão fazendo isto sem que eu recomende. Minhas recomendações são sempre acatadas. Uma delas é a de se contratar um arqueólogo para acompanhar escavações ou fazer pesquisas em jardins históricos. Ninguém gosta de chamá-los porque demoram com seus estudos impedindo a inauguração da obra em prazos políticos.
ARO: O que diferencia a prática de preservação do Rio Grande do Sul da do resto do país?
CFMD: Isto que acabo de citar é uma prática de preservação que distingue o RS do resto do Brasil. A freqüência com que sou chamado a Porto Alegre e a outras cidades gaúchas para opinar sobre questões relacionadas a jardins e paisagens históricas é incomparavelmente maior do que qualquer outro lugar do país. Aqui se demonstra elevado respeito pelo que recomendo. Quando volto, muitas sementes germinaram e florescem. Em outros lugares, pode acontecer que meu rigor em preservar tudo de forma sistêmica, conjunta e integrada mais pareça um empecilho ao andamento de obras de restauração e processos de tombamento do que uma opinião a ser acatada. No Rio Grande do Sul, eu não sinto isto. Pelo contrário, quanto mais indico novos valores de velhas coisas, mais contente vejo todos ficarem.