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interview ISSN 2175-6708

abstracts

português
Ana Rosa de Oliveira entrevista o engenheiro-arquiteto Carlos Delphim, que se dedica à restauração de jardins históricos e se declara jardineiro de nascimento e arquiteto da paisagem

english
Ana Rosa de Oliveira interview the engineer-architect Carlos Delphim, who is dedicated to the restoration of historic gardens and considers himself as a natural born gardener and a landscape architect

español
Ana Rosa de Oliveira entrevista al ingeniero- arquitecto Carlos Delphim, que se dedica a la restauración de jardines históricos y se declara jardinero de nacimiento y arquitecto del paisaje

how to quote

OLIVEIRA, Ana Rosa de. Carlos Fernando de Moura Delphim. Entrevista, São Paulo, ano 04, n. 016.01, Vitruvius, out. 2003 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/04.016/3334>.


Escola de Agronomia do Rio Grande do Sul. Fonte do jardim como modelo filogenético
[fonte: Acervo da SPHAN-UFRGS]

Ana Rosa de Oliveira: Rosario Asunto diz que as coisas feitas pela natureza evoluem e que as coisas feitas pelo homem se degradam. Sabe-se que os jardins são constituídos de coisas feitas pelo homem e de coisas feitas pela natureza, pode-se afirmar portanto, que eles, simultaneamente, evoluem e se degradam? Como o restaurador de jardins pode enfrentar-se a essa lógica de projeto e processos?

Carlos Fernando de Moura Delphim: Acho arriscado endossar uma premissa sem antes avaliar se é ou não verdadeira. Não creio que a obra do homem se degrada. Há coisas da natureza que se degradam e outras que evoluem; há coisas do homem que se degradam e outras que evoluem.

Na obra humana, muitas vezes a degradação provém da matéria prima e a matéria prima é sempre um produto da natureza. Ou então, as causas da degradação provêm da natureza e não do fato de se tratar de um produto humano.

Muito do que é preservado na natureza se deve à intervenção do homem, como, por exemplo, a recuperação de ecossistemas ou a salvação de espécies ameaçadas de extinção.

De forma inversa, na natureza, muitas vezes é pela ação do homem que surge a degradação. Por exemplo, a Vitória de Samotrácia, se corretamente preservada, nunca virá a perder sua qualidade estética, se houver degradação será do mármore, por motivos naturais. De forma simétrica, as coisas da natureza podem não evoluir, haja visto tanta espécie em extinção. O que pode se degradar é o ser humano, sua maneira de encarar e de tratar o patrimônio e não o patrimônio.

De qualquer forma, o restaurador de jardins tem de enfrentar, nem digo uma lógica mas uma ilógica de circunstâncias que exigem muito bom senso, humildade, respeito pela obra alheia – humana e da natureza – e por seu próprio dom criativo.

ARO: A falta de um registro preciso é um dos problemas cruciais da restauração de jardins. Você equipara o trabalho do restaurador de jardim com o de um detetive. Fale um pouco das tarefas que envolvem a restauração de jardins.

CFMD: Sendo o brasileiro um povo pouco educado e pouco atento para a leitura da natureza, pouco se registra da arte dos jardins na bibliografia e iconografia. Um viajante do século XIX não ia perder tempo fazendo aquarelas de jardins se tinha uma natureza impressionantemente grandiosa para registrar. Ninguém descreveria um jardim com muito rigor desconhecendo o nome das plantas. Há exceções mas são poucas.

Na Inglaterra, antigamente, qualquer pessoa saberia o nome das flores. Aqui é muito difícil. Tem-se de fazer o papel de detetive sem se dispor de muita informação. Felizmente, o que conduz a solução de um projeto não é só o conhecimento do passado, mas a possibilidade de novos papéis no presente e uma projeção para o futuro. Na resposta à pergunta seguinte estão relacionadas muitas das tarefas que são pré-requisitos da restauração, ou, melhor, do próprio conhecimento dos jardins.

ARO: No caso dos jardins da Faculdade de Agronomia da UFRGS, o uso do jardim como instrumento didático; de um modelo filogenético para disposição da vegetação pode considerar-se uma importante pista para uma leitura funda do seu sentido? Há outras?

CFMD: Esta foi uma de minhas mais importantes descobertas. Sabia-se que era um jardim didático, para o ensino da Botânica, não se sabia que era um modelo filogenético construído sob a forma de uma jardim. Uma interpretação espacial de um sistema científico, do qual só se sabia de um outro, construído nos anos 80 em Brasília, cópia de outro, em Hamburgo, Alemanha, o único do mundo até então, segundo informações do diretor do Jardim Botânico de Brasília que o erigiu.

O modelo filogenético da Faculdade de Agronomia é um jardim temático, com funções didáticas, criado exclusivamente para ensino da botânica taxonômica, embora comporte outros usos como o lazer contemplativo e a fruição estética. É um jardim de concepção formal. Segundo informações dos acompanhantes, a forma de roda evoca um signo das ciências agrícolas, a engrenagem.

Os plantios referem-se a um sistema científico de ordenamento e classificação de espécies botânicas que deve ser investigado e identificado. Nos jardins, a fonte central, tem sempre um significado edênico, posto que o Paraíso possuía em seu ponto nuclear, uma fonte de água de onde jorravam quatro rios, cada qual correndo para uma das quatro direções cardeais. Essa água simboliza a vida e o conhecimento, que jorram da nascente central. O significado simbólico do jardim didático é expressivamente ampliado, ao se fundirem os significados mais íntimos da arte dos jardins com a prática do ensino.

O modelo filogenético é um monumento singular, excepcional documento da história dos jardins brasileiros a exigir medidas para sua proteção legal e efetiva. Seus relevantes valores deverão ser preservados, estudados, restaurados e interpretados para o público, servindo a atividades de ensino, de lazer e contemplação, de pesquisa e de uso científico.

A zona do modelo filogenético deve ser protegida de forma integrada e indestacável com o patrimônio cultural e o meio ambiente circundante da Faculdade de Agronomia. Por sua singularidade como categoria de jardim histórico e por seu valor de exceção, no Brasil e no mundo, deverá gozar também de proteção legal destacada do conjunto, sendo recomendado o tombamento em caráter nacional.

O trabalho do detetive exige investigações que incluem profissionais especializados em preservação de paisagens e jardins históricos; de edificações históricas; de elementos decorativos de jardins como fontes e esculturas; historiadores e arquivologistas, botânicos, engenheiros agrônomos e florestais, fitossanitaristas, pedólogos, anatomistas da madeira, paisagistas, jardineiros, eventualmente, arqueólogos, zoólogos, gestores ambientais especializados em programação de uso público.

A equipe deverá promover todos os trabalhos de inventário, levantamento e prospeção do sítio, tais como: levantamento e mapeamento florístico; levantamento faunístico; levantamento edáfico; levantamento fitossanitário; pesquisa histórica, bibliográfica e arquivística, documental, iconográfica, de depoimentos orais (hear say); análises laboratoriais; investigação arqueológica; levantamento de outros jardins análogos; investigação de usos atuais e pretéritos e outros que se façam necessários. O modelo filogenético deverá ser pesquisado para que se descubra o sistema de classificação adotado para sua construção com vistas à restituição dos elementos vegetais desaparecidos do projeto original. Deverão ser efetuados o estudo anatômico da madeira de troncos mortos remanescentes, com objetivo de se identificar a espécie desaparecida e o levantamento e o mapeamento florístico das espécies existentes, com vistas à identificação das espécies que originalmente compunham o modelo filogenético e à sua reintrodução no mesmo local. Deverá ser feito inventário da fauna do campus, com ênfase para a ornitofauna, enfim um vasto trabalho nos aguarda pela frente. Tenho certeza que no Rio Grande do Sul vai frutificar.

Há um grande significado neste jardim sob todos os pontos de vistas dos especialistas que serão convocados a participar do projeto. Predomina o significado científico e didático, bem como as informações científicas, a ordem e as relações sistemáticas entre as espécies que o compõem. Muitos novos valores serão indicados ao longo de sua recuperação e cada leitura, de cada especialista, irá somar novas importâncias. Quanto mais profundas e diversificadas forem as leituras, mais rico é o patrimônio, mais necessário é preservá-lo.

ARO: Você fala da necessidade de certa humildade por parte do restaurador. No entanto, rechaça as atitudes de fingimento ou de criação do falso histórico. Parece também importante nesse processo uma certa dose de invenção. Basicamente é uma intervenção crítica o que você está propondo?

CFMD: Segundo Ruskin, a melhor forma de destruir um monumento é restaurá-lo. A restauração se presta com perfeição à manipulação de informações, à adulteração da história segundo a vontade de quem o restaura. Se o restaurador defender suas idéias, aplicando-as a uma obra do passado, não só falsificará a história como irá reduzi-la a um mero fragmento de seu inteiro significado. O passado não pode ser substituído por uma visão moderna do passado, tornado um kitsch. Humildade não significa excluir-se, significa ser fecundo à germinação do que não é seu. Etimologicamente, humilde significa o que tem húmus, aquele em que tudo germina e cresce, como uma terra fértil na qual tudo se desenvolve. Nutrir-se da terra não significa não crescer. Quanto melhor nos nutrimos da lição do passado, melhor será uma restauração, tanto mais fiel a seu espírito original e tanto mais identificado com os tempos modernos, com a criatividade do restaurador que não deve ser excluída. O ideal é dispor-se de uma equipe o mais diversificada e representativa possível, com todos os especialistas e usuários, já que o saber vulgar e o erudito aqui se equiparam, opinando sobre as tomadas de decisão e as soluções do projeto.

ARO: Você equipara o jardim a um palimpsesto, (manuscrito sob cujo texto se descobre a escrita ou escritas anteriores). Fazendo uma analogia, com o palimpsesto, você afirma que a restauração deve tentar resgatar todas as escritas, sem sacrificar camadas da história nem buscar voltar à escrita original. No caso dos jardins da Agronomia da UFRGS a existência de um roseiral, sua feição primeira, está hoje substituído por um bosque. As exigências lumínicas distintas impedem a harmoniosa convivência entre roseiral e floresta. Como o projeto de restauração poderá contemplar essa complexidade?

CFMD: Não retirarei um bosque vivo e adulto para voltar a plantar roseiras. Recomendarei que, quando as árvores forem morrendo, não sejam replantadas. O bosque não impede uma solução híbrida que concilie o roseiral com as árvores: exposições anuais, na primavera, de mudas de roseira em flor, promovida pelos produtores para venda no local. Quando um dia, todas as árvores estiverem mortas, as roseiras poderão ser replantadas, se então isto for considerado conveniente nos padrões da época.

ARO: Você considera que uma das tarefas importantes da preservação é o despertar para o reconhecimento do valor do bem cultural, fundamentalmente para um melhor deste bem. Fale mais sobre isso.

CFMD: La Fontaine disse, a respeito de um usurário que se põe a chorar quando descobre que seu tesouro enterrado foi roubado:“Quem não usa não tem”. É de suma importância conhecer não apenas um valor mas o maior número possível de valores de um bem. Todavia, sem o uso, o bem não torna práticos e vivos esses valores, ficam como mero títulos, desvinculados da vida.

ARO: Que perspectivas você vê para os jardins de Roberto Burle Marx e o seu acervo de projetos, alguns dos primeiros destruídos pela falta de manutenção ou por projetos de restauração inadequados e a maioria dos seus projetos (em torno de 2000) guardados em uma pequena sala sem proteção efetiva (contra incêndio, umidade, roubo, etc). O que o IPHAN tem feito para proteção do mais importante legado paisagístico do país?

CFMD: Os jardins de Burle Marx utilizaram-se de plantas de fenologia desconhecida, muitas vezes tendo sido utilizadas como sendo de porte muito inferior ao que vêem a apresentar em seu estado adulto. Com isto crescem tanto que acabam por impedir a vida das que foram plantadas ao seu lado e que passaram a estar sob sua copa. É imprescindível que sejam elaboradas normas específicas para a preservação de jardins tropicais modernos, considerando as dimensões e a fenologia da vegetação. Uma grande ameaça à sua obra provém daqueles que se consideram suficientemente íntimos, a ponto de intervirem nela. Nem o próprio criador de uma obra tem indicações tão precisas quanto as de quem se vê no direito de, em nome de tê-lo conhecido, crer que pode substituí-lo.

Quanto ao seu acervo, não sabia estar correndo tal risco, verei o que fazer, com quem falar. Não creio que o IPHAN saiba disto. Lamento que Roberto enfrente agora, em relação à sua obra, perigos contra os quais ele tanto lutou em vida.

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