Ana Sousa Dias: Morou muitos anos numa vivenda fantástica projetada pelo arquiteto José Porto. Podemos começar por conversar sobre essa casa?
Manoel de Oliveira: Era uma casa muito especial, não havia fachada, não havia um canto. Só tinha uma esquina da casa voltada a norte. Tinha sol a nascente, depois virado a sul tinha um solário, numa varanda no quarto, que recebia sol todo o dia. Era aberta, para o sol poder entrar por todos os lados. Era uma casa concêntrica.
ASD: Foi feita pelo arquiteto José Porto de acordo consigo?
MO: Foi imaginada por ele, ia-me dizendo – “vou fazer isto” – e eu – “faça, faça mais ainda”. Ele dizia que eu era cliente muito especial. E eu achava que ele era um arquiteto muito especial.
ASD: Por que é que ele era especial?
MO: Porque era muito correto e tinha uma sensibilidade estética extraordinária. Uma vez comprou um copo de cristal, daqueles com pé. Chegou a casa e viu que o pé não estava bem aprumado, tentou endireitá-lo e partiu-o. Era tal a obsessão que nem reparou que o vidro era friável. Quando fazia contas, a preocupação dele não era a soma, era a colocação dos números, se ficavam bem aprumados. A soma era secundária.
ASD: Isabel disse-me que a casa era cinematográfica, que não tinha portas.
MO: Não, não tinha portas. Tinha algumas paredes, tinha uma entrada de onde se via a sala de jantar, porque tinha um vidro e depois um corredor que dava para as escadas de serviço e para a cozinha, e tinha um janelão em retângulos, que dava uma luz muito forte. Via-se a sala, que tinha uma parede que não chegava ao fim, deixava um vão bastante largo na entrada, não tinha porta. Depois tinha um fogão de sala e, por trás do fogão, tinha outra parede que não chegava até lá e entrava-se para o escritório. Mas também se podia entrar pelo hall, onde havia uma escadaria. A idéia dele era que a casa não tivesse parede nenhuma, que tivesse apenas cortinas. Mas não chegamos a tanto.
ASD: Ainda viveu quantos anos nessa casa?
MO: Foi o período mais longo da minha vida, vivi lá 40 anos e agora já não vivo mais 40.
ASD: Já mudou para aqui há vários anos?
MO: Mudei para aqui, a vida mudou, o regime mudou, agora estamos na época do terrorismo, tudo mudou. Tudo deixou de ser igual ao que era.
ASD: Isso é normal.
MO: Não, é do mais anormal possível. O que está acontecer agora é anormal.
ASD: O que eu queria dizer é que é normal haver mudanças.
MO: As mudanças são normais e o desgaste também é normal. Nada fica como é. Como se diz, nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma. O que fica é outra coisa. Não chegarei lá para verificar o que fica, mas sei que não fica o que está. Disso tenho a certeza, mesmo sem ser cientista. Nós vivemos neste planeta chamado Terra que é a nossa casa. Vivemos nela e vivemos dela. Muita gente esquece que nós vivemos da natureza: da água, do oxigênio, das plantas. Hoje estão a desfazer o planeta e a artificializar tudo. O peixe já não vem do mar, as galinhas já não vêm da capoeira, os legumes são feitos artificialmente, já não apanham sol nem chuva nem vento, essas coisas que lhes davam a qualidade. Nós estamos a artificializar-nos e de tal forma que amanhã o próprio ser humano amanhã será outra coisa. Os cientistas às vezes esquecem que são pobres criaturas, não são criadores. Vão-se apoderando das leis da natureza e vão-as usando, mas elas são inexoráveis. Se não fossem inexoráveis, não havia ciência. Se hoje a água fervesse a 20 graus e depois a 50 e depois a 100, não havia forma de haver ciência – mas aquilo é certinho. Tenho uma admiração enorme pela ciência pura, mas a ciência aplicada tem coisas muitíssimo boas e outras que são um abuso. Por exemplo, a bomba atômica. O Einstein descobriu a desintegração do átomo e até tem uma frase muito bonita: “É mais fácil desintegrar um átomo do que mudar uma mentalidade”.
ASD: Por que diz que o ser humano também vai ser artificial?
MO: Os cientistas não resistem e amanhã fazem o homem artificial. Mas a mulher é fundamental. Eu adoro a Vênus de Milo, que representa a mulher mas não tem nada o lado provocativo ou sensual, nada disso. É uma mulher no sentido profundo e verdadeiro. O que sobressai mais é o ventre, os seios são lindíssimos, são dois limões cortados ao meio mas não provocantes, nem a cara, que é muito sóbria, muito reta. É uma cara de mulher, mas também é a cara da mãe e o ventre é que gera a humanidade. A Agustina Bessa-Luís dizia uma coisa bonita: “Deus nasceu do ventre da mulher”.
ASD: Quando foi a primeira vez que viu a Vênus de Milo?
MO: Não me lembro, parece-me que a vi sempre. Quer dizer, depois de ter saído do ventre de minha mãe. A mãe gera o filho protege-o e alimenta-o, como a loba etrusca defendeu e sustentou os dois gêmeos. Com os clones, amanhã podem tornar o homem dispensável. O homem vai ser arrumado, fica só a mulher. E é um serviço bem feito.
ASD: Disse que quando mudou para esta casa mudou tudo. Já tinha acontecido o mesmo quando saiu da casa do “Porto da Minha Infância”?
MO: A casa do “Porto da Minha Infância” foi onde eu nasci, era o filho mais novo do casamento dos meus pais. Eu e o meu irmão Casimiro, que era pouco mais velho do que eu, andávamos sempre juntos, chegamos mesmo a andar vestidos de igual.
ASD: Também andavam juntos nas corridas de automóveis.
MO: Gostamos sempre muito dos automóveis. Agora não gosto nada. Não se pode andar, anda-se mais depressa a pé. Agora não conduzo porque é uma chatice muito grande e também porque é o pior que há para a coluna.
ASD: E de que carros gostava?
MO: Gostava imenso de carros mas os outros que os comprassem. Gostava que os outros tivessem carros lindíssimos para que eu os pudesse ver. Por exemplo, o Isotta-Fraschini e o Hispano-Suiza, carros que já não se fabricam. Tinham um chassis e uns motores formidáveis. O Marinetti [Filippo Tommaso Marinetti, 1876-1944, escritor italiano futurista], é que era um entusiasta do automobilismo e do automóvel, mal ele sabia a praga que isso viria a ser. Nessa altura, era um brinquedo lindíssimo.
ASD: Foi difícil habituar-se a viver aqui, depois de ter saído da Vilarinha?
MO: O homem tem essa qualidade da adaptação. A casa da Vilarinha tinha o dobro do espaço destas duas, tinha 620 metros quadrados e estas duas não chegam a 300 metros quadrados. Gosto desta casa mas é acanhada, falta-me espaço. Tenho mais um andar alugado onde estão as coisas que hão-de ir para a Casa do Cinema. Mas não vão enquanto não fizermos um contrato, coisa que eu peço desde o início. Há cinco anos que disse que cedia o meu acervo, mas só depois de assinarmos um contrato. Quando foi lançada a primeira pedra, repeti ao engenheiro Nuno Cardoso as condições e disse que não ia à cerimônia porque não estava o contrato feito. Ele disse que confirmava as condições todas mas que não havia tempo porque era necessária a aprovação da Assembléia Municipal e ele estava para sair. Ele tinha verdadeiramente vontade de que a casa se fizesse. Depois disso ainda não me fizeram o contrato.
ASD: Gosta do projeto do arquiteto Souto Moura para a Casa do Cinema?
MO: Gosto. Fui eu que escolhi o arquiteto e disse-lhe que gostava que o trabalho tivesse um mérito arquitetônico, que fosse uma obra bonita e interessante. É um chamariz para o arquivo, é bom porque enriquece o patrimônio do Porto e tem esse mérito, esse atrativo para a Câmara, para os portuenses. Para mim, só tem vantagens ser uma coisa bonita. E ele fez realmente uma coisa que é interessante.