Roberto Boettger e Olivia Marra: Esse projeto já foi exposto em vários eventos e está agora no pavilhão do Arsenale da XV Bienal de Veneza. Sob qual guisa o curador Alejandro Aravena convidou sua participação?
Angelo Bucci: Aravena conheceu o projeto em 2013 quando fizemos o primeiro giro de America No Del Sur em homenagem a Rafael Iglesia, também estavam conosco como palestrantes o próprio Rafael, Solano Benitez, José Maria Saez e Ricardo Sargiotti. Talvez tenha sido por aí que ele nos deu a honra deste convite para a Bienal de Veneza sob o tema Reporting From the Front. Então, consideramos mais uma vez as ideias ali a partir da primeira pergunta que nos cabia responder para Veneza: “qual é a batalha?”
A questão revelou-se extremamente oportuna, pois o projeto trata de modo notável com um confronto recorrente na atividade da arquitetura: o conceito de herança – para designar todo o acervo cultural que nos chega – e legado – para se referir ao que vamos deixar às futuras gerações. O quanto o passado, ou o futuro, nos arma e quanto ele nos paralisa? O momento presente sempre contém essa dimensão de batalha histórica.
É uma questão relevante, também no contexto atual da Itália, porque um passado poderoso também tem um efeito paralisante. É um privilégio estudar arquitetura no contexto em que trabalharam Alberti, Brunelleschi ou Palladio, mas é também um desafio desenhar em diálogo com a dimensão desta antecedência. Mas de certa maneira, as vezes o que paralisa o sujeito é um plano absurdo para o seu futuro, como nos contextos que estimulam como meta uma arquitetura espetacular e condenam o sujeito a uma frustração certa por não ser possível iniciar nada já como uma celebridade. Não é preciso ser assim.
A questão neste projeto que apresentamos era sobre como você se relaciona com um legado precioso com toda a admiração e, ao mesmo tempo, não se deixa paralisar.
Aqui, diante dos maiores exemplos deste moderno brasileiro que construiu o Ibirapuera, nosso projeto os homenageia e, ao mesmo tempo, procura trazer um desenho propositivo para aquele contexto e para a cidade. O parque de 1954, que herdamos, pode se desdobrar como um legado estimulante para as novas gerações.
RB&OM: Aravena foi muito enfático ao criar uma lista de “instrumentos políticos para a arquitetura”, tal como sustentabilidade, tráfego, lixo, migração e catástrofe naturais. Mas há uma categoria que não foi incluída: a da forma. Você acha que a forma pode ser um instrumento político?
AB: De fato, a palavra forma pode significar muitas coisas diferentes. Para mim, forma é um modo de pensar. Não existe pensamento sem forma. Mas o termo ficou desgastado por uma associação à ideia de formalismo, quando a forma deixa de servir ao arquiteto e o escraviza. É importante restaurar o sentido da palavra e a função da forma como estrutura do pensamento em arquitetura.
Para esse projeto a forma requer clareza. Ela, nesse caso, realiza a ideia do começo ao fim. O edifício de escala territorial nunca seria percebido por inteiro, mas somente em partes. Então, é uma forma que põe em foco não ela mesma, mas aquilo que emoldura ao centro: o acervo de pavilhões existentes.
Hoje a arquitetura é muito dominada pelo sentido visual e a forma fica reduzida à tal dimensão, sem que suas relações espaciais sejam compreendidas. Mas aqui, você não precisa olhar. A forma não existe apenas para ser forma. Ela existe pelo raciocínio, pelo que revela sobre o lugar e sobre seu contexto na cidade. A apreensão do projeto está mais ligada ao modo de compreender a cidade do que ao modo de compreender a arquitetura.
RB&OM: Como este pensamento se traduz na sua prática de arquitetura?
AB: A arquitetura é uma atividade extremamente sensível e delicada. Digo, ela é vulnerável porque não pode e não deve ser protegida. Por isso, não é raro que a gente testemunhe discursos amadurecidos noutras atividades e campos de saber que se alojam na arquitetura para dizer o que não pertence à atividade (da arquitetura). É uma espécie de usurpação discursiva, uma apropriação oportunista da voz que a arquitetura pode ter num contexto tão dominado pelas imagens.
Nossa proposta para o MAM tem uma grande escala. Então, há uma contradição? Depende! Se ela corresponde aos anseios, é legítima. Se não, não serve e nós partimos para outra. Quando se faz um projeto teórico, ele tem um campo para existir. É o campo das ideias, das publicações, dos debates, das exposições. Entrar nesses canais de diálogo, é o modo como um projeto teórico se realiza. Por isso, é tão especial trazer esse projeto para Veneza.