Inquérito Portugal: O senhor trata paisagem como transformação, processo dinâmico de estados efêmeros. Enquanto por território se entende certa estabilidade. Em que medida isso se desenvolve na sua produção?
João Nunes: A ideia de dinâmica, de transformação, é fundamental no meu trabalho. Creio que é preciso ter a noção de que o sítio muda, e que a dinâmica é uma constante inerente à própria ideia de paisagem. Porque não há sítios estáveis, nenhuma realidade que seja fixa.
Vivemos um momento muito marcado por uma espécie de conservadorismo que de alguma maneira é uma reação ao grande otimismo modernista, quando se acreditava que a obra do homem era capaz de resolver tudo, todos os problemas da Terra e da humanidade. E de repente percebemos que não era bem assim, e que muitos esforços que fizemos para resolver problemas criaram mais problemas do que os que resolveram. Então caímos na vertente oposta, que é de um excessivo conservadorismo. Uma tendência para fazer uma leitura moral do problema da transformação, e sobretudo marcar com o ferrete do mal, hoje, o toque do homem. Aquilo que há 100 anos era visto como a salvação de todos os problemas do homem agora existe como um grande risco. E, por outro lado, tem-se a ideia também errada de que se pode congelar as situações, os sítios, as paisagens e as cidades. Creio que é importante, em primeiro lugar, perceber que com essa moral caímos todos numa dimensão um pouco nostálgica. Aquela ideia profundamente errada de que antes é que se estava bem. Na verdade, antes estava-se bastante mal. Sofria-se mais, morria-se mais e mais cedo, e vivia-se pior. Apesar da poluição, dos riscos atômicos, do efeito estufa, temos agora um grau de distribuição transversal da cultura e do conhecimento, uma possibilidade de discutirmos os assuntos e de confrontarmos opiniões que creio que nunca houve no mundo. E isso é muito bom. Se somarmos o fato da taxa de mortalidade infantil ser hoje a mais baixa e a esperança de vida a mais alta desde a existência do homem, acho que conseguimos perceber claramente que se vive melhor.
Por isso creio que é fundamental sair de uma dimensão moral, em que se associa a ideia de transformação à ideia do mal e a ideia de conservação à ideia de bem, e construir a noção de que não conseguimos viver sem transformar. O ser humano só sobrevive no mundo se o transformar. E isso porque o homem é frágil, não é dotado fisicamente de capacidades que todos os outros animais têm e os fazem ser resistentes ao frio, a voar bem, nadar bem, defenderem-se bem. Nós temos todas essas capacidades reduzidas a dimensões ridículas, e a única forma que temos de sobreviver no mundo é transformá-lo.
Claro que o mundo que estamos a transformar, inicialmente, era um mundo natural, agora é um mundo antropizado. E as questões que surgem a alimentar a nossa capacidade crítica já não são questões exclusivamente ligadas à inaptidão do contexto natural para servir como nossa casa, mas tem a ver com a aplicação de uma ideia crítica em relação à nossa própria obra. E portanto, com um reconhecimento dos nossos erros, e o reconhecimento de que as transformações têm que ser corrigidas para melhorar a nossa performance, sobretudo na relação com as outras comunidades.
Mas creio que a ideia de transformar é fundamental. Transformação é vida, e a construção da paisagem é transformação. Mesmo quando a nossa decisão se aproxima de uma curadoria conservativa, essa ideia é uma ideia transformativa. O projeto passa a ser conservar, a transformação passa a ser fixar. Porque sem essa ação, naturalmente o processo tenderia para um outro estado, outra condição. Então quando queremos conservar, temos que aplicar um esforço enorme para que a coisa não se altere, ou para que não se alterem as coisas que consideramos importantes e às quais atribuímos um valor pelo menos afetivo.
Isso tem a ver com uma mensagem muito importante em relação ao mundo contemporâneo, em relação à necessidade de lutar contra todas essas falácias de uma natureza boa, macia, gentil, quando de fato a natureza tem tanto de gentil quanto de cruel, tanto de bom quanto mau, porque é completamente indiferente a qualquer tipo de valoração de caráter moral. A natureza é assassina, é brutal, é violenta, produz o mais profundo sofrimento, causa a destruição de tudo, da mesma forma que é maravilhosa, extraordinária, apaixonante. E a nossa capacidade crítica serve precisamente para nos proteger daquilo que é mau para nós, e celebrar, com convicção cada vez maior, aquilo que é bom para nós.
Creio que neste momento a natureza é nosso último deus. De certa maneira, é nosso deus indiscutível, que encerra precisamente essa mesma dimensão terrível e maravilhosa que a divindade desde sempre ofereceu. Por outro lado, creio que para a conceituação do que nós andamos aqui a fazer, todos, padeiros, ciclistas, motoristas de táxi, é fundamental ter essa ideia de transformação e de dinâmica.
Aplicada concretamente à análise do sítio, essa ideia é fundamental para percebermos que aquilo que estamos a ver do sítio é o último fotograma de um filme que começou há muitos anos. E nesse filme se foram sobrepondo extratos diferentes, correspondendo a transformações às vezes radicais, que correspondem a contextos diferentes, de todo tipo e de toda ordem: climáticos, geomorfológicos, políticos, econômicos – já entrando no domínio do antrópico. E portanto, aquilo que estamos a ver é um momento de qualquer coisa que para ser compreendida tem que ser buscada muito atrás, tentando separar a emanação de uma imagem que resulta de um processo do processo mesmo. Nosso projeto vai intervir não na imagem, mas no processo. Se tentamos intervir na imagem, estamos a fazer cosmética. Se estamos a intervir no processo, estamos a fazer um trabalho que entende a estrutura daquilo que existe e tenta, através da construção de cumplicidades com essa estrutura, modificar ligeiramente o caminho evolutivo desse sítio em favor da ideia do projeto.
Portanto, em primeiro lugar vem o entendimento geral do que estamos a fazer aqui; depois o entendimento do sítio, e portanto aquilo que em termos metodológicos poderia corresponder a uma espécie de formulação de um método de análise. Em terceiro lugar, a formulação de um método de projeto, que exatamente da mesma maneira que a análise, tem que entender que o projeto não acaba numa construção da qual nos libertamos, mas é um pontapé de saída para um processo que vai ter acréscimos, transformações, mutações. E portanto, que aquilo que nós fazemos não é uma escultura sagrada para pôr dentro de uma redoma, mas qualquer coisa que vai se transformar numa parte de um processo de vida, ativo, que vai ser digerido, transformado, adaptado, destruído, reconstruído, mantido... que vai conseguir ou não ganhar o amor das pessoas que o usam, que vai cair na completa indiferença e seguir outros caminhos… Nós temos que entender que é isso. E perceber o que queremos fazer. Queremos fazer uma coisa que ao fim de trinta anos se solta e se transforma noutra, ou qualquer coisa que daqui a dois mil anos ainda continua através da sua capacidade de afirmação – não propriamente física e monumental, mas na afetividade das comunidades e das pessoas?
IP: O senhor falou em nostalgia, tema muito presente nos textos do pensador português Eduardo Lourenço. Ele diz que a saudade é intrínseca ao português, algo que atravessa passado, presente e futuro. Já o senhor fala de camadas de tempo e de sobreposição. Como essa relação com o tempo é trabalhada em seus projetos de requalificação, sobretudo na Ribeira das Naus – ponto de partida das Grandes Navegações e símbolo histórico da saudade?
JN: Detesto a saudade “choramingas”, aquela saudade melada e pastosa. Se a saudade for só o repisar da perda, não serve para nada. A saudade é interessante se for um ingrediente para a construção do futuro, como um sólido tempero para a produção de qualquer coisa que aposte na ideia de um mundo melhor.
Creio que a saudade interessa para conseguir perceber, das perdas do passado, o que nós queremos que possa sobreviver no futuro. E portanto para nos fazer perceber que nossa passagem pela vida, este momento absolutamente efêmero que é o privilégio de estar vivo, é a oportunidade de encontrar uma maneira de ligarmos o passado ao futuro. Entender que o presente existe enquanto projeção de todos esses passados, e que o futuro só é um futuro terrível se nós quisermos. Ao contrário de uma ideia fatalista de saudade, não acredito num futuro diabólico e terrível, como um animal feroz escondido numa esquina do tempo à nossa espera. O futuro é consequência do que nós fazemos. E nessa medida, a ideia de passado me interessa não numa perspectiva nostálgica, mas como algo que tem que ser conhecido. Um passado que tem que construir uma consciência clara do que é o presente, do que é o sítio, e um futuro escolhido em função de uma ética, em função daquilo que queremos deixar para o mundo dos nossos filhos. Aquilo que queremos que os nossos filhos consigam ter do mundo que herdamos. E não pode ser “herdei uma coisa ótima e deixo-te uma porcaria estragada”. Temos que conseguir perceber que a nossa passagem, mais que manter tem que construir, valorizar.
Isto coloca-nos uma pergunta sobre o que são esses valores, o que é importante passarmos aos filhos. A primeira coisa que nós queremos é que eles consigam comer, portanto que o mundo não fique reduzido em termos da sua produtividade. E logo começamos a pensar em termos de solo, começamos a pensar em termos da proteção do solo produtivo, em termos da construção de solo produtivo. Seja o solo que colocamos na cobertura de um edifício, seja o solo que salvamos porque retiramos uma infraestrutura que já não serve, ou o solo que pura e simplesmente cultivamos porque estamos a fazer um jardim que substitui uma fazenda de oitenta ou cento e cinquenta anos atrás. Com a água é a mesma coisa. Todos esses valores têm a ver com a produtividade do mundo e com a salvaguarda de recursos básicos para que as pessoas consigam viver e sobreviver com qualidade.
Outro valor que eu creio que é evidente é o da diversidade. Não queremos passar aos nossos filhos um mundo mais pobre. E não é pela perspectiva do colecionista, dizendo “Olha, o meu pai me passou esta coleção de selos e eu perdi três”. Não é isso. É porque a diversidade, além da dimensão colecionista, corresponde efetivamente à defesa de condições melhores de sobrevivência. A diversidade é construída através de processos de mutação tornados possíveis pela sexualidade – e essa é a grande evolução na história da vida. E a diversidade é um valor. Nós não morremos todos quando há uma gripe porque somos diversos, temos capacidades diversas de resistir. Não somos todos biologicamente iguais, temos códigos genéticos diferentes que nos atribuem características diferentes de sobrevivência, e isso é fundamental. Portanto, quando falamos de um mundo diverso não falamos só de um mundo capaz de produzir um atlas muito rico, falamos de um mundo seguro, capaz de enfrentar desafios muito grandes e sobreviver a crises.
O terceiro valor que eu creio ser fundamental, e que no Brasil se entende muito bem, é o da identidade. Não queremos transmitir aos nossos filhos um mundo empobrecido no que diz respeito ao que a cultura construiu, ao que a cultura conseguiu colher da diversidade natural na construção de uma identidade para cada sítio, para cada lugar e para cada maneira de viver, de cantar, cozinhar e comer. Portanto, temos a obrigação de entender cada sítio como um sítio e cada projeto como um projeto, de recusar a facilidade do estereótipo e da aplicação de tipologias universais.
Creio que se nós defendermos esses valores, e se tivermos esses valores presentes nos nossos projetos, podemos apostar numa transformação com uma certa tranquilidade.
IP: Eduardo Lourenço também discute uma certa capacidade do português de se fundir na paisagem e fazer disso sua maior identidade. O senhor considera isso válido para a arquitetura portuguesa contemporânea? Reconhece isso em obras suas?
JN: Bem, em primeiro lugar vocês estão a fazer aqui um sacrilégio, porque estão a pôr lado a lado o Eduardo Lourenço, que é de um valor gigantesco da nossa cultura, comigo, que sou um arquiteto paisagista que anda aí a esgravatar terra pelo mundo afora. Mas acho que é evidente que uma característica muito portuguesa é essa a que ele se refere. Ao contrário de outras culturas colonizadoras, como a inglesa, na cultura portuguesa, muito mais do que impor um tipo, um padrão, um estereótipo, há sempre uma certa adaptação. Talvez por preguiça, talvez por pobreza. Não digo que por trás disso esteja um valor muito nobre, agora que o resultado é bom, eu acho que é. Porque o resultado da produção da mistura, da produção de diversidade, da produção de outra coisa nova, é muito melhor do que a imposição de algo num contexto completamente absurdo, que é o que muitas vezes nós encontramos. O exemplo dos ingleses nem sequer é muito feliz, porque eles, apesar de tudo, tiveram a inteligência de produzir culturas coloniais relativamente bem adaptadas. Mas estou a pensar, por exemplo, nas colonizações contemporâneas, dos padrões anglo-saxônicos contemporâneos, estou a pensar nos grandes estereótipos da arquitetura e no fato de que encontramos edifícios em Luanda, Tel Aviv e Helsinki com a mesma peça, a mesma marca, a mesma maneira de colocar e de construir um sistema de fachadas, por exemplo – não o design, mas o sistema construtivo da fachada. Como isso é possível? Como é que se pode universalizar uma coisa que nasce precisamente de uma ideia de contexto?
Há duas dimensões muito diferentes em relação à maneira como a arquitetura surge como produção de espaço. Há uma dimensão que me parece evidente, que é a dimensão da concha. Nós estamos a construir uma concha que é feita à medida do nosso corpo, dos nossos gestos, das nossas funções, da nossa família e do nosso grupo. Estas conchas partem sempre da dimensão do nosso corpo, da dimensão do nosso corpo coletivo e do funcionamento do grupo. E isto produz um tipo de arquitetura que, apesar de tudo, tem uma dimensão relativamente universal, porque o nosso corpo não é assim tão diferente. Mas tem também uma dimensão contextual porque aquilo de que o nosso corpo se protege não é sempre a mesma coisa. Num sítio nos protegemos de animais selvagens, noutro nos protegemos da chuva mas não precisamos nos proteger do frio, e noutro nos protegemos do frio mas não precisamos nos proteger da chuva.
E há uma outra dimensão, que é a das arquiteturas que não tem nada a ver com a nossa dimensão, mas com a dimensão do metabolismo ao qual nós temos que reagir para nos defender. Falo, por exemplo, das arquiteturas relacionadas com a água, os diques, barragens. Tudo que tem a ver com a questão da água nasce de uma necessidade de proteção, e nasce também de uma necessidade de otimização de um percurso, que já não tem nada a ver com a ideia de arquitetura concha a partir da dimensão do corpo, mas com o entendimento de um metabolismo à escala do território. Isso gera uma produção arquitetônica completamente diferente, movida por outras formas. E então esta é que evidentemente tem que ser contextual.
Um dos temas que me interessa tem a ver precisamente com a dimensão muito abstrata da infraestrutura, a dimensão da infraestrutura construída que perdeu de alguma maneira a capacidade de se debruçar sobre a espacialidade que constrói e a possibilidade de ser entendida como uma arquitetura. Que transformou-se numa coisa completamente abstrata, guiada só pelo cumprimento de regras de funcionamento que tem a ver com a largura da faixa, a sinalização, o raio, coisas que são absurdamente abstratas, esquecendo completamente que apesar de tudo essas regras convivem com territórios que são diferentes, que vão mudando, que tem circunstâncias completamente diferentes.