Inquérito Portugal: O senhor tem projetado em muitos países, inclusive participado de concursos aqui no Brasil, como o Parque Urbano da Tamarineira, em Recife, e o Parque Olímpico da Barra, no Rio de Janeiro. É uma preocupação sua manter uma identidade projetual atuando em contextos tão diferentes?
João Nunes: Não. Quer dizer, a identidade é metodológica, o resultado é evidentemente diferente. E eu espero que isso seja visível, porque não quero andar aí a repetir padrões pelo mundo afora. Aquilo que me interessa é chegar a um sítio e tentar dialogar com esse sítio, reagir a ele. Claro que temos uma mochila cheia de tiques, mas também cheia de referências de outras soluções, de outros caminhos, que nos ajudam a interpretar aquilo. A riqueza de participar destes desafios pelo mundo afora está também em perceber que aquilo que aprendemos em um sítio consegue ajudar a interpretar outro. Mas isso não significa se apegar a uma solução e espetá-la em outro lado. Até porque não tem graça nenhuma. O que tem graça é descobrir o sítio e perceber como o entendimento deste sítio acaba por produzir um projeto. Portanto, sim, acho que claramente sim, tenho uma preocupação com a identidade, mas a nível metodológico, não a nível físico. E Deus queira que nossos projetos sejam sempre diferentes, e que sejam sempre surpreendentes, inclusive para nós próprios.
IP: Nossa maior referência paisagística, no Brasil, é o Roberto Burle Marx, que realizou importantes projetos no Rio de Janeiro e em outras cidades, inclusive no exterior. A obra dele influenciou de alguma forma a sua produção? Como o senhor vê hoje a concepção de paisagem do Burle Marx?
JN: A obra do Burle Marx influenciou e continuará a influenciar o mundo todo porque é universal. É uma das poucas obras do campo da paisagem que conseguiu atingir essa dimensão ligada a um nome. Depois há referências que podem ser atribuíveis também a autores, mas que não conseguiram construir essa espécie de consistência de obra. O Frederick Law Olmstead, por exemplo, é uma referência universal ainda hoje para todos os parques. De maneira mais ingênua ou mais sofisticada, toda gente quando começa a desenhar um parque desenha à maneira do Olmstead, com clareiras estruturadas pela topografia, orlas de bosques e caminhos.
Creio que isso tem a ver com o fato da obra do Burle Marx ser muito pouco paisagística – no meu entendimento de paisagem. Porque é uma obra muito centrada numa espécie de expressão pessoal, imagética, gráfica, e portanto que tem a ver com o transporte da oportunidade que a paisagem oferece para uma dimensão artística que é de fato uma outra coisa, e por isso pode ser celebrada de uma maneira tão pessoal e autoral. Porque aquilo que eu creio que a paisagem tem de maravilhoso é precisamente essa característica, que uma pessoa faz alguma uma coisa e desaparece. Se não desaparece é porque aquilo não é exatamente um trabalho de paisagem.
IP: Burle Marx teve uma relação bastante complicada com alguns arquitetos, como Oscar Niemeyer. Como é sua relação com os arquitetos com os quais trabalha e demais agentes da arquitetura?
JN: Com uns me entendo maravilhosamente, como irmãos. Não trabalhamos sequer já num sentido de atribuições disciplinares: se surge um problema, vamos jantar na casa de um, discutimos e chegamos a soluções, se não temos que fazer outro jantar e por aí vai. Mas tenho tido também experiências horríveis com arquitetos fantásticos, cuja obra admiro. Trabalhei com Charles Correa em Portugal, por exemplo, e a relação foi um desastre. Creio que, exatamente como a relação com o sítio, a relação com o outro autor que está a trabalhar no mesmo projeto tem que ser vista de uma maneira muito impessoal. Ou seja, eu tenho a sorte de ter estabelecido grandes e profundas amizades com muitos arquitetos, mas quando trabalho com outros arquitetos aquilo que eu tento fazer é centrar naquele trabalho. Estou com ele para resolver aquele projeto, e portanto creio que, muito mais do que disputar maneiras de pensar, interessa entender qual a melhor maneira de pensar para aquele problema. Às vezes há entendimentos comuns e às vezes não há, mas também não temos que trabalhar com toda gente.
Durante muitos anos a relação entre a arquitetura e a arquitetura paisagista foi vista como uma relação de marginalíssima complementaridade, em que o arquiteto paisagista fazia uma espécie de acompanhamento verde, uma espécie de salada que se punha ao lado do prato principal, e que era concebida depois do prato principal estar pronto. Hoje em dia, sobretudo com os arquitetos mais inteligentes, que entendem que a relação entre o edifício e o contexto é um valor muito importante para seu projeto, o arquiteto paisagista é chamado para a discussão e para a investigação acerca do projeto desde o primeiro momento, desde a primeira instância da leitura do sítio. Claro que há deliberações que são específicas: com as questões de arruamentos, incêndios, acústica e questões térmicas do edifício, por exemplo, não temos muito a ver, ou raramente temos a ver. Mas tudo que são questões de implantação, de discussão de contexto remoto e imediato são em geral assuntos que faz sentido debater com alguém que consiga ter uma visão muito rápida e que seja muito ágil no entendimento do território. Portanto, é uma mais valia que, se o arquiteto é inteligente, não deixa de usar.