Ana Vaz Milheiro: E aí o papel do arquiteto qual seria?
João Filgueiras Lima, Lelé: O papel do arquiteto seria orientar a população, justamente no uso desse Lego. Por exemplo, agora, para o Rio de Janeiro, eu estava estudando um sistema em que a habitação fosse em vários níveis verticais. Então, a pessoa podia ter inicialmente um pavimento, depois anexar um outro, mais dois, até chegar a quatro pavimentos, podendo ter seu ateliê de trabalho, ou sua oficina, num desses pavimentos. É uma tipologia de construção que está hoje, de um modo geral, muito ligada ao sistema de vida das favelas, no Brasil. Por exemplo, em Salvador nós temos favelas com casas de quatro, cinco pavimentos. Faz parte da cultura de construção da favela.
AVM: Seria, no fundo, interpretar o que as pessoas já fazem.
JFL/L: Sim, apenas com um material mais estável e mais fácil de manusear. Mas para isso teríamos de ter uma pequena indústria que fornecesse esses componentes, localizada na favela, com mão-de-obra local, não especializada. É como um brinquedinho de armar de uma criança, que usando uma, duas vezes, aprende a armar esse brinquedo. Então é um pouco assim. Agora é claro que tem de ser orientado por um profissional, uma pessoa mais experiente, justamente para treinar. Mas não existe nenhuma ciência, nenhum mistério na montagem dessas peças.
Nas experiências que nós fizemos, por exemplo, em Abadiânia, de 1982, não havia nenhum profissional para além do arquiteto. As populações captaram o processo rapidamente e ficavam muito orgulhosas, porque achavam que aquilo era uma tecnologia de ponta. E houve uma repercussão grande, com a visita do governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, que veio ver as experiências, o que deixou as pessoas profundamente orgulhosas.
AVM: E o que construíram lá?
JFL/L: Escolas, pontes... existiam vários problemas em Abadiânia. Infelizmente a experiência foi muito curta porque eu fui levado para o Rio de Janeiro pelo Darcy Ribeiro e pelo Brizola. Não pude dar sequência. Mas acho que teria sido a experiência mais rica de possibilidades com esse tipo de construção.
É claro que isso depende de um estímulo grande do governo. As companhias construtoras, de um modo geral, não se interessam por um processo desses, que até vai tirar lucro. A produção desses componentes é uma coisa extremamente barata, extremamente simples, que não precisa de nenhuma superconstrutora para os produzir. E a gente pode sempre ficar com o sistema. Durante esses anos todos de produção, a experiência mais rica em torno da flexibilidade foi a dos CIACs (Centros Integrados de Atendimento à Criança, de 1990). Tínhamos já cerca de 200 e tantos componentes, o que permitia uma flexibilidade enorme do sistema e espaços completamente diferenciados, para funções também diferentes. Essa diversificação, essa flexibilidade, essa extensibilidade, está muito ligada à quantidade e especialidade de componentes disponíveis, e isso também baixa o custo.
AVM: É importante, portanto, perceber que, apesar de usar um sistema pré-fabricado, tal não implica a repetição do projeto; ou seja, a partir destes componentes os projetos podem ser todos diferentes.
JFL/L: Completamente diferentes, na medida em que enriquecemos cada vez mais o número de componentes. É como se eu tiver uma bactéria, é uma bactéria; se eu tiver duas bactérias, são duas bactérias; você tem que ter as outras células especializadas que vão chegar ao corpo humano. Então, essa diferenciação de cada componente é que permite a diversificação do produto. Mas isso pode ser gradual. Por exemplo, a escola de Abadiânia tem apenas 16 componentes, o CIAC tem 200; mas o princípio construtivo é o mesmo, não tem nenhuma diferença. Apenas existem mais possibilidades, como num Lego, se você tiver muito mais diferenças você pode fazer várias formas, então o produto final vai mudando. O princípio de montagem é o mesmo.