Ana Vaz Milheiro: O Lelé tem testemunhado, várias vezes, sobre o contributo que o artista plástico Athos Bulcão deu para os seus edifícios… Como é que um artista pode incluir-se nesse processo de pré-fabricação?
João Filgueiras Lima, Lelé: Nas escolas do Rio de Janeiro e de Salvador, por exemplo, todas as portas tinham painéis coloridos do Athos Bulcão. Então, por mais simples que sejam, o cuidado com a beleza, com uma obra que tem um interesse artístico, tem de estar presente. Em tudo o que se faz na vida tem que se ter a presença da beleza; ela é permanente, não se pode abrir mão. Não só da beleza, como também de múltiplas atividades envolvidas. É preciso que as professoras participem do processo. Por exemplo, nas escolas do Rio, desenvolvemos uma tecnologia para as creches. Darcy Ribeiro chamava-as de “Casas da Criança” (destinavam-se a uma faixa etária até aos sete anos). Treinávamos as professoras dos próprios bairros como usar o espaço, a flexibilidade que este permitia, como poderia ser estendido etc., numa unidade da própria fábrica. Tudo isso era feito com a presença das professoras. Acho que essa atividade multidisciplinar, em que o arquiteto se envolve, forma um processo. Costumo dizer que não existe um projeto, existe um processo. Então esse processo se inicia quando se discute o programa. Vai durante todas as fases de desenho, de concepção, de desenvolvimento, em que as equipes se começam a ampliar, os especialistas também atuam. E nem termina quando o edifício começa a funcionar, não termina enquanto o edifício existir. É um compromisso que o arquiteto assume para o resto da sua vida, em cada edifício que faz. Então o arquiteto, quando fica velho, vai ter muitos processos em andamento.
AVM: Outra coisa interessante é esta ideia de que o Lelé vê a sua obra como uma obra transitória, que acode a uma determinada demanda, que pode eventualmente vir a desaparecer. Portanto, existe uma certa independência em relação à ideia de perenidade na arquitetura. Pensamos sempre que os arquitetos produzem edifícios para um tempo longo, e o Lelé tem essa consciência de que a sua obra é uma intervenção transitória.
JFL/L: É. Eu tenho até um livrinho publicado que se chama Escola transitória, modelo rural (1), que mostra a experiência de Abadiânia. Essas comunidades muito carentes estão num sistema de transição; aquilo não é o ideal para sobreviverem. Tem que ter uma linguagem transitória, como é transitório aquele sistema. Por outro lado, também, com a evolução tecnológica que estamos enfrentando, tudo vira transitório. Os automóveis são transitórios. A evolução tecnológica está produzindo esse fenómeno incrível e tudo fica obsoleto rapidamente. Os hospitais, por exemplo, são transitórios. Se fizermos um hospital com carácter definitivo, não conseguiremos colocar os equipamentos de última geração. No último hospital do Rio, que demorou cinco anos entre a concepção e o projeto final, enfrentamos essa questão com alguns equipamentos, como o da ressonância magnética (2). O magneto que é a peça central, naquele tempo pesava duas toneladas, agora pesa doze. Nenhum edifício seria capaz de aguentar, é um monstro que se cria lá. Outros equipamentos, pelo contrário, diminuíram. Essa modificação da tecnologia no dia-a-dia, principalmente esses sistemas mais complexos que são introduzidos na área de saúde, na área da educação, obriga a essa transitoriedade…
AVM: O sistema que tem vindo a desenvolver estes anos todos também dá muita flexibilidade aos edifícios, que rapidamente podem ser alterados, acrescentados, modificados, ganhando uma mobilidade e uma independência em relação a uma configuração mais estática.
JFL/L: Exatamente. Quando eu digo transitório, não quer dizer que eles se acabem facilmente. Até porque o material tem condições para sobreviver muito tempo. Se o edifício cumprir aquela função social já num período de 15, 20 anos, para mim já seria suficiente. Mas tem de, mesmo nesse período, sofrer ajustes. As famílias pobres, por exemplo, no Brasil elas são ainda muito prolíficas, com quatro, cinco filhos. Crescem e depois diminuem também. É preciso que a habitação acompanhe, principalmente num conceito capitalista de casa própria. Se você tem a sua casa, então tem de ajustar a sua vida àquela casa. Se você pudesse vender o seu imóvel e passar adiante, isso seria fácil. Mas na nossa sociedade, principalmente nas sociedades mais pobres, a aquisição de um imóvel significa uma meta importante na vida e que não pode ser descartada. Esse conceito de flexibilidade também é muito importante nesse dia-a-dia.
Claro que sabemos que existem duas arquiteturas que se praticam, a arquitetura do quotidiano e a arquitetura do eterno. Eu não sou contra a arquitetura do eterno, e acho que tem de ter essa expressão artística, dos grandes arquitetos que sempre criam a memória de uma determinada época. Agora, é importante que a arquitetura esteja inserida em seu tempo, para realmente representar uma evolução da sociedade.
AVM: Acha que o sistema que o Lelé criou, todo esse processo que tem vindo a montar – que representa essa ideia da flexibilidade, da arquitetura acompanhar a vida – é um sistema exportável para outras comunidades? Sabendo que não podemos dissociar o seu pensamento daquilo que é a sociedade brasileira, pois há claramente uma relação muito próxima entre a arquitetura que tem praticado e defendido, e a realidade brasileira.
JFL/L: Existe sempre a questão climática. No projeto dos CIACs, como o Brasil é um país continental, nós tínhamos estudado as diferenças climáticas entre o Sul e o Norte, e tivemos de adaptar o sistema a esses aspectos diferenciados. Mas claro que é exportável. Eu vejo em África uma identidade muito grande com este tipo de sistemas e gostaria muito, de repente, de ter oportunidade de atuar noutras comunidades.
AVM: Mas tem construído noutros países da América Latina, ainda agora está a fazer um projeto para El Salvador...
JFL/L: Sim, mas eu acho que vai ser difícil de realizar… Eu fui lá, convidado pelo governo, mas depois fui ficando sem esperança porque teria de me mobilizar com uma equipa pequena, que não pode ser multiplicada rapidamente…
AVM: Este sistema que criou e desenvolveu não adquire autonomia? Não fica nesses locais um know-how disponível para as pessoas?
JFL/L: Claro que sim. Pode ficar e permanece. Mas temos de despertar lideranças técnicas. Por exemplo, em todo esse processo que foi levantado em Abadiânia, tenho a certeza que os moradores ficaram absolutamente felizes por dominar uma tecnologia nova, o que para eles era importante, seria até uma questão de afirmação daquela comunidade. Mas não fizeram mais nada. Porque a minha presença lá era importante, era o único técnico que tinham lá para estimular aquilo, e é claro que um processo desses não pode ficar estagnado, tem de estar sempre evoluindo. A estagnação também desestimula o avanço.
notas
1
LIMA, João Filgueiras Escola transitória, modelo rural. Brasília, MEC/CEDATE, 1984 <www.fau.usp.br/arquivos/disciplinas/au/aup0448/2015/Escola_transitoria_rural.pdf>.
2>
Sobre hospitais do arquiteto, em especial da Rede Sarah, ver: LELÉ, João Filgueiras Lima. Arquitetura. Uma experiência na área de saúde. São Paulo, Romano Guerra, 2012.