Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Um Índio, Caetano Veloso
Como resposta à pandemia da Covid-19, o projeto Marieta lançou em abril de 2020 o “Transa Marieta”, programa de entrevistas com personalidades da arte e da cultura contemporânea, com o propósito de discutir uma trajetória de vida e uma percepção específica do mundo atual. Desde então, o coletivo paulista e diversos convidados conversaram com o escritor Milton Hatoum (1), o músico Arrigo Barnabé (2), a arquiteta Erminia Maricato (3) e o gestor cultural Danilo Santos de Miranda (4), todos com expressiva audiência.
Nesse mês de julho, com a pandemia em curso e sem adoção de medidas de contenção pelo governo federal, Isa Grinspum Ferraz, Marco Altberg, Suely Rolnik e Abilio Guerra entrevistaram o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak no quinto episódio da série. O evento ocorreu no dia 21 de julho de 2020, a partir das 18h30, com aproximadamente duas horas e quarenta minutos de duração, e transmissão ao vivo via Facebook, na página do projeto Marieta (5). Com grande repercussão e participação do público, teve mais de 3.000 visualizações, 303 comentários, 241 curtidas e 68 compartilhamentos durante sua exibição. Agora, na íntegra, a entrevista está disponibilizada na plataforma Youtube e pode ser acessada no módulo 2 dessa edição da entrevista.
A cultura indígena vivencia hoje em nosso país um agravamento de suas condições de vida, com as investidas cada vez mais violentas de invasores de suas terras para plantio e garimpo, com a dizimação sistemática do seu meio ambiente – florestas queimadas, rios enxovalhados, lavoura de subsistência envenenada pelos agrotóxicos das fazendas que avançam sobre seus territórios. Com a pandemia avançando nas tribos de diversas etnias, nunca os indígenas brasileiros estiveram tão perto da extinção. Estamos diante de um projeto oficial de genocídio, tema que os militares do atual governo querem interditar, fato que não escapou à fala irônica do entrevistado.
Mas se os indígenas sofrem com os venenos da civilização branca, sua cultura se oferece de forma generosa como sucedâneo para os males contemporâneos da sociedade de consumo. As práticas e conhecimentos das diversas etnias que habitam o país podem sustentar uma visão transformadora da sociedade humana, como foi visto e salientado por Eduardo Viveiros de Castro, um de nossos maiores intelectuais, em relação aos Yanomami (6). Seu amigo Ailton Krenak, ativista indígena que sempre priorizou a aproximação das agendas das diversas nações que habitam nosso território muito antes da chegada dos europeus, é um dos porta-vozes mais autorizados para nos apresentar uma visão de mundo alternativa, que prioriza o bem comum, a vida comunitária e o respeito extremo aos outros seres – vivos e inorgânicos, como as montanhas e rios – que compartilham a mãe Terra com os humanos.
Muito ativo desde quando se apresentou em 1987 na comissão preparatória para a Assembleia Constituinte, Ailton Krenak se afasta da postura romântica, que cultiva uma visão paralisante do paraíso perdido, mas apresenta uma promessa de futuro, uma aposta que ele vai existir, apesar dos riscos das atividades de agressão constante ao meio ambiente e aos modos de vida não integrados – caiçaras, índios, quilombolas... O pensamento de Krenak, embebida dos valores culturais do seu povo, aponta a possibilidade de adotarmos práticas e modelos mais inclusivos, de baixo impacto no sistema ecológico, que valorizem a vida e fujam da armadilha presente na narrativa hegemônica do desenvolvimento econômico ilimitado.
Sua fala, contudo, não se materializa a partir de um lugar específico – o espaço cultural e socialmente determinado ao oprimido. Fluente e fluída, sua narrativa alterna uma visão pessoal e um ponto de vista coletivo, um “nós” que pode ser sua tribo, os povos originários, os supliciados pelo povo branco, ou a própria humanidade, que ele destaca ter uma origem comum. Ao invés de simplesmente responder perguntas, Ailton Krenak a situa na sua visão de mundo, a relativiza, retira sua aparente solidez. Responder é radiografar a fala do Outro, evidenciar o quanto a pergunta está impregnada de pressupostos que escapa ao próprio interrogador. Mas não se coloca como rival refratário à palavra do interlocutor, pois a essa forma de ver as coisas, de enunciar o mundo, não faltam as referências do mundo culto branco, cujos personagens e argumentos são convocados para a conversa – Michel Foucault e a vigilância da sociedade, Claude Lévi-Strauss e as mitologias indígenas, Darcy Ribeiro e suas ambiguidades em relação ao povo nativo, Eduardo Viveiros de Castro e sua persistente busca de diálogo entre universos culturais distintos...
Em textos e conversas recentes, Ailton Krenak tem proposto uma discussão de como evitar a extinção – e, se não for viável, retardar ao máximo o processo de esgotamento dos recursos naturais e viver a melhor das vidas possíveis (7). Na entrevista, ele faz uma candente defesa da vida como um dom maravilhoso, que deve ser preservado, mas fundamentalmente compreendido em sua radicalidade, que envolve não só o prazer, mas também a dor e a morte. E que envolve também um compromisso ético ao recusar a depredação do planeta para atender as necessidades artificiais de consumo de uma parcela minoritária da humanidade. E essa ética fundada no viver e no se saber vivo, como tudo, ou quase tudo, em sua linguagem, tem o discurso convertido em uma narrativa vivencial:
“Aquele menino que batia balaio na beira d’água, ele continua sendo o que vai na minha frente, correndo, batendo as carpinhas na beira d’água para ver aonde eu passo. Então, eu sempre tenho um menino me estendendo a mão. Minhas decisões são guiadas por essa memória” (8).
A quinta edição do Transa Marieta traz uma conversa simpática e um discurso poderoso, que faz ainda mais sentido nesse momento de urgência. A trincheira virtual cavada pelo coletivo se oferece agora à visitação de todos (9).
notas
1
O primeiro episódio do “Transa Marieta”, com Milton Hatoum, ocorreu no dia 20 de abril de 2020, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; MASSI, Augusto; BUSSIUS, Julia. Milton Hatoum: literatura em tempos de cólera política e pandemia de coronavírus. Transa Marieta – episódio 1. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 082.02, Vitruvius, abr. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7713>.
2
O segundo episódio do “Transa Marieta”, com Arrigo Barnabé, ocorreu no dia 12 de maio de 2020, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; ROMANO SANTOS, Silvana. As mil faces do artista Arrigo Barnabé. Transa Marieta – episódio 2. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 082.04, Vitruvius, maio 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7740>.
3
O terceiro episódio do “Transa Marieta”, com Erminia Maricato, ocorreu no dia 26 de maio de 2020, segunda-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; SAMPAIO, Celso Aparecido; WHITAKER, João Sette; RUBANO, Lizete Maria. Erminia Maricato, arquiteta, professora, gestora pública e ativista social. Transa Marieta – episódio 3. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 082.05, Vitruvius, maio 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7757>.
4
O quarto episódio do “Transa Marieta”, com Danilo Santos de Miranda, ocorreu no dia 22 de junho de 2020, segunda-feira, com início às 18h30, e está disponibilizado no portal Vitruvius: GUERRA, Abilio; BOGÉA, Marta; PIRELLI, Giovanni. Danilo Miranda, um intelectual a serviço do Brasil. Transa Marieta – episódio 4. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 082.07, Vitruvius, jun. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.082/7792>.
5
Transa Marieta #5 – Ailton Krenak em conversa com Abilio Guerra, Isa Grinspum Ferraz, Marco Altberg e Suely Rolnik, 21 jul. 2020 <www.facebook.com/watch/live/?v=3312010195526777>.
6
“Que venha, então, dos Yanomami, uma mensagem, uma profecia, um recado da mata alertando para a traição que estamos cometendo contra nossos conterrâneos – nossos co-terranos, nossos co-viventes –, assim como contra as próximas gerações humanas; contra nós mesmos, portanto”. CASTRO, Eduardo Viveiros de. O recado da mata. Prefácio de: KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu – palavras de um xamã yanomami. 7a reimpressão. São Paulo, Companhia das Letras, 2019, p. 23.
7
Em seu livro recente, sugere uma alegoria maravilhosa, onde os humanos inventam magníficos artefatos multicoloridos para retardar a queda no precipício existencial: “Por que nos causa desconforto a sensação de estarmos caindo? A gente não faz outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então por que estamos grilados agora com a queda? Vamos aproveitar toda a nossa capacidade crítica e criativa para construir paraquedas coloridos. Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos”. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2019, p. 30.
8
Ailton Krenak, o sonho da pedra. Direção de Marco Alberg, 1’49”.
9
É fundamental agradecer as pessoas que espontaneamente têm apoiado o centro cultural Marieta, impossibilitado no momento atual em desenvolver suas atividades cotidianas e obter recursos para a manutenção de seu espaço: Ana Lucia R M F Costa, Andrea Pisani Megna Sipoli, Daniel Martins Rodrigues, David da Silva Junior, Denise Matta, Erika Almenara, Fausto Sombra, Gleisson Arrabal, Guilherme Severo, Helder Lourenzi Inaie Cardozo, Isabella Hernandes, Jaime Cupertino, Laís F Braun Ferreira, Lana Terpins, Larissa Dionisio, Leda Braga, Magaly Corgosinho, Marcelo Consiglio Barbosa, Mariana Schmidt, Marina Dias Teixeira, Marina Frugoli, Matheus de Sousa Santos, Néliane Catarina Simioni, Norma Maria Romano Santos, Patrícia Martins, Paula Nocchi Martins, Paula Sacchetta, Paulo Moritz Kon, Renato Luiz Sobral Anelli, Ruth Verde Zein, Sandra Rodondi de Godoy, Sergio Kon, Taisa Cristina dos Santos Leonardo, Thomas Goldenstein Leirner, Yadhira Álvarez e Yasmin Abdalla.