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interview ISSN 2175-6708

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O músico, ensaísta e professor José Miguel Wisnik é entrevistado por Abilio Guerra, Eucanaã Ferraz e Evandro Camperom, no nono episódio do Transa Marieta.

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GUERRA, Abilio; FERRAZ, Eucanaã; CAMPEROM, Evandro. José Miguel Wisnik, profissão indefinida. Transa Marieta – episódio 9. Entrevista, São Paulo, ano 21, n. 084.05, Vitruvius, dez. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/21.084/7965>.


José Miguel Wisnik em bate-bola com amigos. Córdoba, Argentina, 1972
Foto Flávio Aguiar

Bloco 1. Prólogo

Abilio Guerra: Há mais de dez anos publicamos uma pequena entrevista com você no portal Vitruvius. Na ocasião, você fez questão de nos enviar uma fotografia de sua juventude, devidamente emoldurada. No registro de 1972, de autoria de Flávio Aguiar, você é flagrado jogando futebol na posição de goleiro, em uma “ponte” para agarrar a bola. A foto eterniza seu corpo no ar, na horizontal, com as pernas muito abertas, conformando um triângulo virtual, uma estabilidade ao mesmo tempo provisória e eterna. Mas é também um vir-a-ser, uma energia potencial, uma promessa de futuro inédito. Na época pensei muito sobre o motivo de você nos enviar essa foto. Agora tenho a oportunidade de ouvir sua resposta.

Eucanaã Ferraz: Ainda sobre a juventude, gostaria que você falasse especificamente sobre sua relação com o piano. Como quem fala de um amigo: quando e como se conheceram. Julgo que um momento muito relevante de sua trajetória com o instrumento foi o disco Pérolas aos poucos, de 2003, que eu amo. Também gostaria que você focalizasse esse momento.

Capa do DVD “O fim da canção”, de Arthur Nestrovski, José Miguel Wisnik e Luis Tatit, selo Sesc, 2013
Imagem divulgação

Bloco 2. Música

Evandro Camperom: Em um país cujo letramento médio é tão baixo, como é o caso do Brasil, você acredita que a canção brasileira exerce um papel formador em nosso processo civilizatório? A canção – para além do aspecto lúdico e do ensejo à fruição estética – educa os brasileiros? É possível se falar de uma “inteligência acústica” – indiferente ao estado, diga-se – apresentada e aperfeiçoada pela canção?

Eucanaã Ferraz: Até que ponto sua canção é paulista? Ou isso não existe? Talvez fosse mais correto perguntar: em que sentido você se considera, ou não, um compositor paulista?

Abilio Guerra: A Edusp acaba de relançar o livro “Ensaio sobre a música brasileira”, publicado em 1928 por Mário de Andrade. Em certa passagem ele afirma que “o critério histórico atual da Música Brasileira é o da manifestação musical que [...] reflete as características musicais da raça. Onde estas estão? Na música popular”. Segundo Mário, a arte brasileira vivia “uma fase primitivística”, uma “fase de construção”, onde a arte deveria assumir um “critério de combate”. Há algo desse universo discursivo que ainda faça sentido nos dias atuais?

Evandro Camperom: Você tem parcerias musicais também muito diversas: Luis Tatit; Ná Ozzetti; Elza Soares; Tom Zé; Arthur Nestrovski; Marcelo Jeneci; Marcio Arantes etc. Como é que se dão esses atravessamentos, do ponto de vista da criação musical?

Aula-show sobre as canções praieiras de Dorival Caymmi, com Arthur Nestroviski e José Miguel Wisnik, na exposição Aprendendo com Dorival Caymmi: civilização praieira, de 3 de março a 1 de maio de 2016, Instituto Tomie Ohtake
Foto divulgação

Bloco 3. O “alto” e o “baixo”

Eucanaã Ferraz: Você e Arthur Nestrovski deram nome e forma ao que todos chamamos hoje de aula-show. Talvez seja esse o melhor exemplo de compatibilização do mundo acadêmico/ intelectual/pedagógico com o palco popular. Gostaria que você falasse desse formato, como você o define, como surgiu, o que mudou com o tempo.

Evandro Camperom: Ao ouvir as tuas canções nos deparamos com aproximações espantosas, tanto nas letras quanto nas melodias: Gregório de Matos (Mortal loucura); Blaise Pascal (A terra não é plana); Beethoven (Baião de quatro toques); Luiz Gonzaga (Assum branco). Curiosamente, parece que esses tensionamentos – aparentemente inviáveis noutros espaços – dialogam com a mais fina tradição de nosso cancioneiro. De onde vem essa liberdade? Essa estética do embaralhamento entre "alta" e "baixa" cultura tão presentes na tua música, em particular, e na música brasileira, de forma geral?

Eucanaã Ferraz: Você, como compositor, músico, cantor, faz ver muitas faixas de complexidade no quadro da canção. Quero falar em particular de sua recepção. Apesar de sua reconhecida importância no campo da música popular, sua carreira nunca alcançou uma visibilidade massiva. Vejo aí algo como um fio de duas pontas – uma é: não se pode dizer que o público brasileiro (para falar em termos muito vagos) esteja despreparado para a alta qualidade do seu trabalho; a outra é: suas canções exibem, sim, uma forte capacidade de comunicação, de fruição. Que lugar é esse que você ocupa no vastíssimo e matizado universo da canção popular? Como você o descreveria? Observação final: posso ver também, uma mudança desse quadro, uma transformação no tempo, sobretudo um alargamento de sua presença como compositor; estou certo?

Abilio Guerra: No livro “Veneno remédio – o futebol e o Brasil” você comenta um texto de Pasolini, que divide a prática do futebol a partir de metáforas literárias: a) a prosa realista de alemães e ingleses; b) a prosa estetizante dos italianos; c) a poesia dos brasileiros. Eu entendo que você desenvolve essa questão da poesia do nosso futebol trazendo-a para o solo histórico-cultural da sociedade brasileira. E traz à cena Machado de Assis para evidenciar o “complexo recorrente do imaginário brasileiro, o da pendulação entre a ambição da grandeza máxima e a impotência infantilizada de um povo periférico e anarcóide” (p. 171). O futebol, como uma mônada, traz em si o que somos?

Eucanaã Ferraz: Fala-se muito num hipotético preconceito do mundo intelectual – sobretudo o acadêmico – não exatamente com quem pertence ao mundo do entretenimento, ou da cultura de massas, mas com aquele indivíduo que participa dos dois mundos. É exatamente o seu caso, professor universitário, ensaísta, mas também músico, compositor, cantor; cancionista, para usarmos a perfeita expressão que Luiz Tatit revigorou e a qual deu consistência conceitual. Ele que, como você, pertence aos dois mundos. Gostaria de saber se você confirma a existência daquele preconceito, vivido ou não “na pele”. Mas pergunto se também há preconceito do outro lado: o mundo olha da canção popular vê com desconfiança o intelectual que vem da sala de aula para o palco?

José Miguel Wisnik e Caetano Veloso
Foto divulgação

Bloco 4. Ensaística

Evandro Camperom: Em algum momento do livro “Sem receita”, você faz uso da expressão “lugar fora das ideias”, fazendo alusão ao ensaio de Roberto Schwarz, referindo-se, ainda, ao caráter múltiplo e móvel de certas questões que nos dizem respeito. Admitida a hipótese de que o Brasil melhor se revelaria nos entremeios de seus disfarces (ao assumir uma estética do negaceio – presente no drible futebolístico, na gestuália capoeira e na rítmica de nossa música popular), como você vê o “veneno remédio” da mestiçagem – para além dos determinismos racialistas –, entre nós, no momento em que assistimos a ascensão ao poder de atores que reverberam discursos supremacistas brancos? (Tendo ainda, como elemento tensionador, a reivindicação de identidades por parte das minorias). Há lugar para a multiplicidade e para a plasticidade mestiça, hoje, no Brasil?

Abilio Guerra: Roberto Schwarz, tanto em “Ideias fora do lugar” como em “Um mestre na periferia do capitalismo”, vai atribuir a graça e a profundidade da obra madura de Machado de Assis em sua capacidade de evidenciar ironicamente o descompasso entre o ideário liberal e o país patriarcal que o adota. Você, em seu livro “Maquinação do mundo”, vai nos revelar um Carlos Drummond de Andrade oscilando entre sua Itabira provinciana e a capital Rio de Janeiro de adoção. Esse estar dentro e fora, ao mesmo tempo, lhe permite enxergar que são para “os arranha-céus de Copacabana” que “se transfere, disfarçada de modernidade, a velha elite brasileira” (p. 95). O paradoxo de nossa modernização sem modernidade, presente no seu texto e de Schwarcz, conversa com a obra de Antônio Candido?

Eucanaã Ferraz: Você se consagrou como grande ensaísta ao tratar de autores como Guimarães Rosa e Machado de Assis. Mas também Caetano Veloso. Mais recentemente, publicou um livro-ensaio magnífico sobre Carlos Drummond de Andrade. E foi se tornando também grande leitor de Clarice Lispector. Como surgem esses interesses de natureza crítica? E ainda: há alguma coisa em comum entre os autores sobre os quais você se detém como mais tempo e fôlego? O que é que você procura quando escolhe um autor para estudá-lo?

Pico do Cauê, Itabira MG, anos 1930
Foto divulgação

Bloco 5. Epílogo

Evandro Camperom: Eduardo Viveiros de Castro, em certa ocasião, ao comentar sobre a antropofagia oswaldiana, descreveu a retórica incendiária de Oswald de Andrade como fruto de uma salutar “inconsequência visionária”. Jacques Attali, em seu livro “Bruits”, destaca o caráter premonitório, quase profético da música; em seu “Maquinações do mundo” é notável a percepção aguda do poeta Drummond em relação à barbárie ecológica que se veria encarnada pela atividade mineradora, particularmente pela, à época chamada, Companhia Vale do Rio Doce. Você acredita que a arte tem uma natureza profética? Seria possível enxergar entre nós, agora, esse visionarismo inconsequente, capaz de inventar tradições mais generosas?

Eucanaã Ferraz: A canção sempre tomou para si a tarefa de pensar o Brasil. Cantar como um modo de pensar. Se eu estou certo, pergunto-lhe se esse traço cultural ainda é pertinente hoje. Se é, diga para nós: o que canção de hoje pensa do Brasil de hoje?

Abilio Guerra (pergunta optativa): Recentemente, uma deputada federal bolsonarista usou sem autorização a música “Xiquexique”, composta em 1997 por você e Tom Zé para o espetáculo “Parabelo”, do Grupo Corpo. Para além de sua justa indignação, da qual fui e sou solidário, creio que o episódio revela uma genuína incapacidade de incorporação de valores simbólicos por parte desses radicais da extrema-direita, que oscilam entre o plágio óbvio ou o simples saque das coisas alheias. Falta aqui, me parece, a capacidade da inversão paródica característica da cultura de resistência. Saber lidar com essa invasão bárbara não seria uma necessidade de sobrevivência?

José Miguel Wisnik e Tom Zé
Foto José Luiz Pederneiras

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