A música brasileira parece ter sempre compreendido, interpretado e cantado melhor as nossas cidades, do que nós, arquitetos.
O título do artigo, que aparece na forma de pergunta, é na verdade uma afirmação de Caetano Veloso em Vaca Profana. ("...São Paulo é como o mundo todo, no mundo um grande amor perdi..."). E mesmo Chico Buarque, vaticinava há quase trinta anos, que "...esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal..."
Hoje, a "Vaca Profana" de Caetano e o "Fado Tropical" de Chico parecem ter sido o prenúncio de uma realidade. Mas é necessário que saibamos interpretar os nossos músicos, a nossa atividade e a nossa cidade, sem desafinar.
Os ecos de Lisboa, com a Expo 98, e de Barcelona e seu "planejamento estratégico" vêm penetrando e perdurando, aguda e desafinadamente em nossos delicados ouvidos, acostumados à boa música. Ecos que chegam como a brincadeira de "telefone sem fio", sem essência, sem compreensão, sem interpretação. Nada mais que um ruído.
Tudo que nos chega das duas intervenções urbanísticas trata, basicamente, de dois aspectos e de duas escalas : os aspectos econômicos ou a macroescala, (da luta que as cidades travam entre si por um lugar na tão propalada "rede mundial de cidades") , através das estratégias dos governos locais em adequar suas cidades às turbulências de ordem econômica e na urgência que quer se fazer pairando sobre as nossas grandes cidades no sentido de elas também aderirem ao esforços de "readequação" , sob pena de perderem postos na corrida por um lugar na rede mundial de cidades.
O outro aspecto e a outra escala são bem mais prosaicos. Assumem a forma de belíssimos livros, exibidos e folheados à exaustão, que tratam do "novo urbanismo" e do "desenho urbano" das duas cidades ibéricas: são imagens de lixeiras, postes de iluminação, quiosques, placas de sinalização e projetos de praças, muitas praças, esplanadas (algumas delas encomendadas a artistas plásticos e todas, invariavelmente, vazias - ao menos é como aparecem nas ilustrações dos livros). Há também profusão de detalhes em close da diversidade de materiais e texturas utilizados, além das inevitáveis imagens da "laje curva" de Álvaro Siza.
Surgiram então, entre nós, duas novas categorias de profissionais: os seguidores de Jordi Borja, o ideólogo do novo urbanismo catalão e os "descobridores" de Álvaro Siza. Como se Barcelona somente tivesse passado a existir depois do "planejamento estratégico" e como se Siza fosse um iniciante, recém descoberto.
Entre um aspecto e outro, entre uma escala e outra, vamos sorvendo e mal digerindo o que nossos ancestrais produzem e vamos perpetuando nossa falta de capacidade de atuar na escala urbana, na escala intermediária entre o planejamento (urbano / econômico) e o projeto do artefato (arquitetura / mobiliário urbano).
Vamos ainda mal compreendendo o que vem a ser "desenho urbano", confundindo-o com o desenho da calçada, da lixeira, do protetor de árvores, da cabine de telefone público, da placa de sinalização, da placa com o nome da rua, do quiosque que vende flores, com o detalhe do guarda corpo da ponte de Santiago Calatrava, das luminárias "transadas" das ruas e praças de Barcelona (e agora também do Rio de Janeiro), com a geometria das novas praças e suas esculturas e daí até à exaustão.
São Paulo não vai ficar fora da "rede mundial de cidades" (nem o Rio, ou a cidade do México ou Nova Delhi), pelo simples fato de ser impossível para o "mercado" ignorar um "mercado" de 16 milhões de almas.
O que precisamos compreender, definitivamente, é que desenho urbano, urbanidade, cidadania, etc. não têm nada a ver, diretamente, com a qualidade da calçada ou com o desenho "chic" do mobiliário urbano. Isto é decorrência e não causa.
Barcelona é uma cidade belíssima. Um legado dos romanos, um legado de Cerdá. É pequena e bela, mas não cabe em São Paulo. Assim como Lisboa é alta e baixa, mas não cabe em Salvador.
Desenho Urbano é o que faz com que a cidade seja compreensível e apreensível para quem nela habita. É o que a faz legível. E somos nós que precisamos fazê-la legível, para que seja compreensível e então, finalmente, respeitada, querida e preservada ,quando for o caso.
Aos seguidores de Borja, pode-se dizer que o grande mérito de Barcelona não está em suas luminárias "chics" ou nos raios de curvatura das esquinas. O grande mérito é que a cidade se abriu para o mar (Vila Olímpica), pelas mãos de Oriol Bohigas, que, por sua vez, carrega a herança de Coderch e do Grupo R, que, por sua vez, teve o legado de Cerdá.. È herança da história e da cultura urbanística de Barcelona.
Lisboa, pela Expo 98, tratou de se reconciliar com o rio Tejo.
Aos "descobridores" de Siza, é bom deixar claro que Álvaro Siza já existia (e como!!!) antes da Expo 98, com trabalhos consagrados pelo mundo afora e continuará existindo, porque é um "senhor" arquiteto. (Paulo Mendes da Rocha diz que ouviu Álvaro Siza falando sobre a "laje curva" e ref(v)erenciando-a a Oscar Niemeyer. Reproduzo aqui o que Caetano Veloso diz sobre Gilberto Gil: "Gil crê em Deus. Eu creio nele.")
Voltando à música, Luis Tatit, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e músico (quem não se lembra do Grupo Rumo, na década de 1980?) , numa passagem de seu livro "O Cancionista – Composição de Canções no Brasil" diz o seguinte sobre Noel Rosa: "...habilidade, em Noel, era equilibrar-se na pulsação rítmica que muitos de seus contemporâneos (e talvez ele próprio) chamavam de samba, independentemente da orientação tomada pela melodia ou do sentido definido pelo texto. Mais que a preservação de um gênero, tratava-se, naquele momento, de traçar um conjunto de regras básicas para a composição brasileira, a partir de cujas restrições os autores pudessem exibir suas peripécias técnicas e comprovar, a cada nova canção, a fecundidade da matriz rítmica nacional. Noel sempre fez questão dessa habilidade, embora ela representasse, em sua obra, apenas um ponto de partida". (1)
Mas não é esse o nosso papel do urbanistas, se trocarmos "composição" por "cidade" e "ritmo" por "projeto"?
"Uma rua que nasce deve ser estudada no plano regulador da cidade e deve ser planejada de modo que corresponda a todas as necessidades técnicas e estéticas sem, ao mesmo tempo, prejudicar as belezas que eventualmente existam em suas vizinhanças." (2)
Não, não se trata nem de Camillo Sitte, nem de nenhum "novo" urbanista catalão ou português. Trata-se de Rino Levi, num artigo escrito para o jornal "O Estado de São Paulo" em 1925. Isso mesmo: em 1925. O que se depreende do artigo é mais ou menos o seguinte: cada caso é um caso; as especificidades devem ser respeitadas.
Se Bohigas é "filho" de Coderch; se Siza está em nosso sangue português de origem, nele também estão Noel Rosa, Tom Jobim, Glauber Rocha, Rino Levi, Artigas e, principalmente, Paulo Mendes da Rocha.
Insistir em não compreender as diferenças entre tudo e entre todos , é como ficar tentando descobrir que lugar é mais bonito: Lisboa ou Salvador; Siena ou Ouro Preto; Veneza ou Rio de Janeiro.
É trabalho em vão. É ilusão à toa.
Num outro sentido, poderíamos dizer que "...São Paulo é como o mundo todo..." quer dizer que em São Paulo há um pouco de cada lugar do mundo. E há mesmo.
Da mesma forma que no mundo todo há um pouco de São Paulo.
notas
1
Tatit, Luiz Augusto de Moraes. O Cancionista, Composição de Canções no Brasil, EDUSP, 1996.
2
Levi, Rino, in Xavier, Alberto (org). Depoimento de uma Geração, ABEA – Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura / Fundação Vilanova Atigas, 1987.
sobre o autor
Vladir Bartalini é arquiteto da EMURB.