Ando acompanhando as matérias na grande imprensa acerca dos projetos de revitalização para o centro das principais cidades brasileiras e podemos constatar que uma grande revolução está acontecendo. Aqui mesmo no Vitruvius, vários artigos focalizam a questão da necessidade de resgate do centro das cidades e da importância da arquitetura para a construção permanente da memória urbana (1). Os centros andam ganhando mais dinâmica pela sua beleza histórica – arquitetônica, seus monumentos, suas belas ruas arborizadas e as cidades ganham em qualidade de vida com a redução da marginalidade e criminalidade típica das áreas centrais urbanas sem vida. Mas afinal, o que está acontecendo para que as administrações de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Cuiabá, João Pessoa, Belém, passem a se preocupar com áreas degradadas centrais? Qual a finalidade de se investir recursos públicos recuperando prédios antigos, velhos, sem uso e às vezes sem dono? O que levaria um Prefeito ou Governador a retirar uma parte dos recursos a serem aplicados em obras de infra-estrutura ou sociais e investir em recuperação de patrimônio histórico?
A história destas cidades citadas, certamente, vai nos mostrar a importância cultural dos espaços centrais urbanos, berço do nascimento da vila, lugar de encontro e de negócios durante muitas décadas e que perdeu valor e pujança atropelados pela urbanização veloz ocorrida no século XX. O centro é o lugar, não porque é o centro, mas porque é dele que se tem às referências da memória coletiva de uma sociedade. Memória e cultura são dois pontos fundamentais na cidadania, na história e nas relações humanas dentro de uma cidade. Além destes fatores, há no mundo moderno uma alavanca que vem gerando muito emprego e muita renda e não causa danos ambientais, que é o turismo. Os governantes sabem que investir recursos em áreas culturais e de preservação da memória de seu povo, vai, fatalmente, conduzir uma reação em cadeia em que todos se beneficiam, principalmente as cidades e seus habitantes.
Nas cidades já citadas, que tiveram ou continuam tendo seus espaços centrais históricos revitalizados, aumentou o fluxo turístico com os novos espaços criados – museus, centros culturais, feiras e outros atrativos e elas ficaram mais bonitas com os prédios renovados. É visível naquelas cidades o envolvimento de todos com a memória e a preservação do sítio histórico. É visível o envolvimento de todos e o respeito pela arquitetura antiga restaurada. É impressionante vermos como o centro revitalizado, com novos usos comerciais e de serviços, se revigora, gera novos empregos e atrai fluxos importantes. Nessas cidades, a palavra de ordem é preservar e revitalizar em parceria com o setor privado, palavra de ordem do final do século XX, sem esquecer dos apoios financeiros públicos dos bancos, principalmente o BIRD.
Vi em João Pessoa, os edifícios restaurados e os espaços públicos renovados, atraindo contingentes de pessoas da cidade e de fora. Lá, até uma escola de formação de mão-de-obra para trabalhos em restauração já existe e forma muita gente por ano. Em Cuiabá, um Concurso Nacional foi realizado para obter-se as melhores propostas de revitalização do centro histórico e por aí vai. Em Recife, o Centro Histórico restaurado com a recuperação arquitetônica dos casarões e do Marco Zero, transformou um lugar de violência e prostituição no maior ponto de encontro do povo, inclusive nas festividades.
Aqui em Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul, essa revolução começou a chegar no centro, ainda que tímida, na Rua Barão do Rio Branco, o antigo calçadão da cidade, projetado pelo escritório de Jaime Lerner em 1977. Com a criação da Associação dos Moradores e Empresários do Centro – AME e com a promessa do prefeito André Puccinelli de que os incentivos fiscais virão para quem fizer a preservação da arquitetura do imóvel, há uma tendência de que o quadro atual se modifique. Comerciantes estão diminuindo o tamanho das placas de suas lojas, pintando o edifício e dando um novo ar ao centro. Falando em quadro atual, a propaganda e os letreiros dos edifícios do centro de Campo Grande não diferem das cidades brasileiras onde o painel das lojas esconde os traços da arquitetura da cidade central. Uma enorme poluição visual que combinada aos fios da rede elétrica, à sujeira urbana e ao deficitário mobiliário urbano, contrastante com a qualidade da paisagem natural.
A luta é fazer com que os comerciantes reduzam os painéis, revitalizem os edifícios e encontrem nesse ato uma saída para aumentar as vendas de seu negócio. Apesar do trabalho que vem pela frente, as cidades ainda assistem às demolições de seus prédios. Aqui em Campo Grande as demolições ocorrem não apenas pela falta de uma política de preservação, mas para que o proprietário do terreno economize com impostos e instale um negócio mais rentável: um estacionamento rotativo pois esse é um enorme problema dos centros das principais cidades. É o automóvel destruindo a história. Nesse tom, diversos prédios importantes foram colocados no chão em todo o país. Por aqui, dois sobrados erguidos nos anos 20 e 40, respectivamente, de qualidade arquitetônica ímpar, foram demolidos e hoje, no terreno, funcionam estacionamentos.
Mas não podemos esquecer de outros imóveis de grande valor arquitetônico que também foram demolidos em Campo Grande: a Casa Vasquez, na Rua 13 de Maio esquina com a Av. Afonso Pena e o sobrado de Vespasiano Martins, todos de 1922; o coreto de ferro da Praça Ary Coelho de Oliveira; o Rio Hotel, na Rua Cândido Mariano; o Hotel Colombo, na Rua D. Aquino; a cadeia pública; a igreja Matriz de Santo Antônio; a sede da Prefeitura e da Câmara de Vereadores, na Av. Afonso Pena; o Cine Alhambra, na Av. Afonso Pena; o Cine Santa Helena e um dos mais importantes de todos, o relógio da 14 de Julho. No ano do centenário de Campo Grande, em 1999, o povo descobriu a falta que fazia diversos prédios da cidade antiga, como a Prefeitura e o relógio da Avenida Afonso Pena, demolido nos anos 70 e o reconstruiu em outro lugar, uma réplica.
Mas não dá para reconstruir um marco da importância do relógio, em outro lugar, descaracterizado e sem nenhuma discussão com a sociedade. Reproduzir bens históricos é muito complicado e pode virar um kitsch sem valor, como acabou acontecendo. Mas ainda é tempo de reverter esse quadro, com certa urgência. Uma política de incentivos, envolvendo o Estado, a Prefeitura municipal e todos os setores, pode ser ainda construída. Nossos estudos sobre a arquitetura da área central de Campo Grande, apontam mais de 150 importantes edifícios que precisam ser recuperados e preservados, aí incluídos residências, prédios comerciais e públicos; o ed. Olinda, de 1947, primeiro prédio alto da cidade está abandonado; o prédio do Hotel Americano, ainda intacto, a indústria Estevão, o Hotel Gaspar, dentre outros, precisam de incentivos para suas reformas e para aumentar a sua beleza; a Avenida Afonso Pena, principal artéria e a mais antiga via com canteiro central, carece de reformas urgentes, visando qualificar o espaço urbano, retirando os veículos do canteiro central dando passagem para o pedestre; a Av. Calógeras e seus prédios antigos, com muita urgência precisa de intervenção e a Rua 14 de julho, nossa Rua Principal, com atestou o escritor Paulo Coelho Machado, desde os anos 70 que não sofre uma cirurgia lhe devolvendo a grandeza de sua paisagem.
Uma contagem feita em fachadas pelos estudantes de arquitetura da Uniderp em 2000, pouco menos de 15% do total dos prédios da rua tem sua fachada exposta; as demais estão encobertas pelos painéis gigantescos de propaganda, escondendo a história e a beleza dos edifícios. Apesar de tudo sou otimista. Acredito em renovação do Centro, mas com preservação da arquitetura, uma severa política antidemolição e novos usos que devolvam fluxo ao centro da cidade, como está fazendo São Paulo e outras cidades. Os edifícios de arquitetura são a nossa história viva e portanto não devemos destruí-los mas sim preservá-los, sob pena de estarmos apagando a memória coletiva de uma cidade. No século XXI, o mundo se volta para a preservação como forma de resgate da sua história. Em Campo Grande ainda nos faz falta uma política municipal de preservação do patrimônio cultural e arquitetônico, amplamente discutida com a sociedade, pois nos interessa recuperar esta discussão, já tardia, antes que a modernização arrase a memória da cidade, a arquitetura e seus lugares.
notas 1
Ver em Arquitextos:
Em busca do tempo perdido. O renascimento dos centros urbanos de Vicente Del Rio, Texto Especial 028;
Preservação do patrimônio e o tecido urbano – parte 1, Cristina Meneguello, Texto Especial 007
Preservação do patrimônio e o tecido urbano – parte 1, Cristina Meneguello, Texto Especial 008.
Ver em Minha Cidade:
Patrimônio em Passo Fundo / Imagem urbana: uma parte de nós, Marilice Costi, Minha Cidade 054;
Preservação é ação em Viçosa, Italo Stephan, Minha Cidade 018.
Ou ainda, os textos sobre a Estação da Luz, Fortaleza e outros lugares.
sobre o autor
Arquiteto e professor, Secretário Executivo da ONG Ferroviva e do Instituto Histórico e Geográfico de MS.