Paranapiacaba: tombamento protege?
Texto de Cecília Rodrigues dos Santos
Após ler a notícia sobre o tombamento de Paranapiacaba no Vitruvius (7 de setembro de 2002), não pude deixar de fazer uma pequena "errata histórica", uma colaboração para o portal.
Isto porque Paranapiacaba, além de ter sido o lugar onde minha avó Clara nasceu em 1901, ano da inauguração da vila, foi meu objeto de trabalho para um curso de especialização na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Também fiz questão de colaborar na instrução do seu processo de tombamento federal quando era superintendente do Iphan e mais recentemente retomei os estudos como uma das curadoras de um segmento da exposição "Os Britânicos no Brasil" (Cultura Inglesa / SP), que tratava da São Paulo Railway.
A Vila Martim Smith, depois batizada de Parapiacaba ("de onde se vê o mar", mas só nos raros dias sem neblina...), localizada no município de Santo André, foi planejada e construída pelos engenheiros ingleses por ocasião da ampliação do sistema de transporte ferroviário que ligava o Porto de Santos ao interior, Jundiaí, grande região produtora de café.
A primeira ligação ferroviária que venceu a Serra do Mar começou a ser construída em 1860, sendo inaugurada sete anos depois. Em 1890 iniciou-se a ampliação desse sistema de transporte, momento em que se construiu também a Estação da Luz em São Paulo e uma verdadeira "cidade de serviço" no Alto da Serra. Esta vila com traçado ortogonal, zoneamento hierarquizado e construções pré-fabricadas em madeira foi erguida para acolher os engenheiros da SPR e os trabalhadores que mantinham o funcionamento do sistema de planos inclinados responsáveis pelo transporte na serra, sistema este incluído no processo de tombamento porque tão ou mais importante do que a Vila. Fazem parte ainda desse importante conjunto diversas construções como oficinas, casas de máquinas, passadiços, mercado, clube, além da torre da Estação construída na mesma época em que a Vila (o edifício desapareceu com um incêndio).
A São Paulo Railway só vai ser nomeada Estrada de Ferro Santos – Jundiaí com sua encampação pelo governo brasileiro em 1946. O privilégio de concessão concedido pelo imperador ao Barão de Mauá para explorar este trecho de ferrovia foi de fato levado a cabo por esta companhia de capital inglês, a SPR.
Não posso deixar de aproveitar o espaço e chamar a atenção mais uma vez para a importância desse conjunto, e de toda a ferrovia, na história paulista e brasileira. Abandono e incúria são responsáveis pela sua grave deterioração e urgentes são as ações efetivas que modifiquem este estado desolador. Se Paranapiacaba sobrevive, ainda que em estado preocupante, não é por causa da proteção legal do Condephaat que já conta com mais de 20 anos, mas sim graças à dedicação abnegada de algumas ONGs, dos seus moradores, de funcionários da RFFSA, de membros da ABPF , de cidadãos apaixonados... Está mais do que provado ( e discutir "porque" é uma outra história que fica para uma outra vez...) que o tombamento não mais garante a integridade e preservação do bem protegido, nem do ponto de vista da fiscalização e orientação técnicas e legais muito menos da canalização de recursos, públicos ou não. Basta olhar em volta. Ou talvez seja melhor não olhar muito...
Paranapiacaba, um patrimônio cultural, tecnológico e arquitetônico
Texto de Issao Minami
Vila de Paranapiacaba, outrora Alto da Serra, é um núcleo urbano tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo, em 1987, conjuntamente com o complexo ferroviário que deu origem à Vila e, também, com o entorno próximo que é uma reserva biológica de grande importância para o eco-sistema da Serra do Mar. Agora, neste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, finalmente considerou também a Vila, um patrimônio histórico nacional.
Este complexo foi planejado, empreendido, construído e mantido pela "São Paulo Railway Co. Ltd.", uma “single-enterprise” ferroviária, no período que vai de 1860 até 1946. Neste período, Alto da Serra foi um modelo de vila operária que nasceu e sempre viveu em função de uma única atividade e onde imperou uma relação de paternalismo entre os trabalhadores e a empresa. Historicamente, Alto da Serra é composta pela junção de três partes: a Vila Velha, que é o núcleo original; a Vila Martin Smith, a parte projetada e; a Parte Alta ou a Vila dos Aposentados.
Alto da Serra, já em 1887, despertava o interesse de Júlio Ribeiro que retratou, em seu romance "A Carne", passagens neste lugarejo. Com a chegada do cinema, no entanto, a bucólica povoação, sempre envolta numa densa neblina, tornou-se locação preferida pelos cineastas e publicitários nacionais.
José Mojica Marins, o “Zé do Caixão”, utilizou Paranapiacaba para seus filmes de terror. João Batista de Andrade, inspirado num romance de Geraldo Ferraz , fez com que Paranapiacaba se transformasse na irrequieta cidade de Cordilheira, com suas casas de madeira e o trabalho ferroviário ao dirigir Doramundo, estrelado por Antonio Fagundes, Irene Ravache e Rolando Boldrin. Pelé também contracenou em "A Marcha" junto às casas de madeira da Vila. Da mesma forma, o cineasta José de Anchieta rodou seu "Parada 88", um filme explorando tema ecológico e estrelado por Regina Duarte. Um filme de curta metragem, "Alerta Final", também foi filmado no povoado.
As cenas de desembarque dos imigrantes japoneses em "Gaijin", de Tizuka Yamazaki, também foram rodadas na antiga estação. Muitos filmes para publicidade também se utilizaram da cidade, dos cenários naturais que ela oferece como a antiga estação e as casas de madeira da Martin Smith. É o exemplo de uma campanha publicitária da Volkswagen que aproveitou da estação para aumentar a comercialização de seus veículos. Até uma novela, "Um homem muito especial", foi inteiramente gravada na cidade.
Quando dos Rolling Stones em sua turnê pelo Brasil, ao pretenderem gravar um clipe em Paranapiacaba, ela (a Vila de Paranapiacaba) tomou emprestado dos não menos famosos artistas, o brilho - pois o palco com o cenário serrano mesmo sem eles, esteve preparado para o dia pretensamente marcada para a gravação.
Naturalmente Paranapiacaba não só oferece o seu cenário. Possui em sua envoltória meio-ambiente e vegetação exuberante formando uma imensa reserva biológica. Um clima agradabilíssimo como também uma boa água colhida da serra, são requisitos que a torna rota de excursionistas e escoteiros, além de centro de atenções de estudantes e colegiais, de todos os níveis, à procura de um pouco de estória e que acabam por deparar com uma verdadeira aula de história da técnica e da engenharia nas obras de arte da construção ferroviária mostradas in loco na Vila e na Serra do Mar e também de uma mostra de exemplos significativos da arquitetura e do sistema construtivo em madeira da Vila Martin Smith e sua implantação exemplar. Oferece assim, um roteiro de visitação interessante pelo seu aspecto pedagógico cultural.
No entanto, o transporte da região metropolitana de São Paulo até a localidade que deveria ser facilitada pela ferrovia, não mais ocorre, com a facilidade anterior e infelizmente, Paranapiacaba depende deste meio de transporte ideal para o turismo pois foi ela que a caracterizou, durante décadas.
Após a encampação, em 1946, pelo Governo Federal, aos poucos, os sistemas ferroviários originalmente construídos, em 1867 e 1901, para a subida e descida da serra, foram sendo substituídos e desativados e hoje, este patrimônio cultural imenso, constituído pelos equipamentos ferroviários, funiculares, vila operária e seu entorno próximo, formando o Sistema Paranapiacaba, apesar de tombado como um bem cultural, padece, necessitando de urgente intervenção no sentido de inverter o seu rápido estado de degradação física. Atualmente, sérias e contínuas ameaças de descaracterização, que instituídas, comprometem irreversivelmente todo este complexo.
Depois de fadada a ser apenas uma cidade dormitório, as alternativas de desenvolvimento da Vila começam ser reestabelecidas. Senão vejamos: Local turístico? Reserva eco sistêmica e biológica da Serra do Mar ? Área de proteção dos mananciais? Pólo para prestação de serviços e atividades ligadas ao turismo e ao meio-ambiente?
E população local? E evidentemente, quais rumos tomar para resgatar, reavivar, reativar, revitalizar seus edifícios, equipamentos, infra-estrutura, tecnologia e sistema construtivo?
Antes de ser considerada um parque eco ambiental, é um patrimônio cultural imensurável, razão de ser do duplo tombamento, na esfera estadual e agora, federal. Porém o que resgatar do material físico se não efetivar a destinação social no sentido verdadeiro.
Portanto, em respeito, a pelo menos, seu memorável passado, necessita-se com urgência repensar e redirecionar sua destinação e medidas que impeçam a deterioração de seu espaço constituído pelo patrimônio arquitetônico e ferroviário. A gravidade da situação exige uma postura da sociedade como um todo, pois tomando a Vila de Paranapiacaba como exemplo, o momento exige seriedade de todos os órgãos que tem o dever de zelar pelas condições de preservação dos nossos bens culturais. Não se pode mais adiar a implementação de propostas de revitalização que levem em conta a destinação social, maximizando o significado do patrimônio cultural: “ferrovia - arquitetura - meio-ambiente” que abra frente, ao potencial turístico, uma vocação natural da localidade. Com certeza, por trás de cada edificação em pinho-de-riga e de cada plano inclinado da ferrovia batalha-se, incessantemente, pela preservação deste patrimônio e pela liberdade de se criar e discutir conjuntamente os caminhos necessários, razão de ser do próprio homem resgatando seu passado autofágico, buscando seu espaço presente e suas necessidades vitais futuras para o enriquecimento das relações sociais e humanas, dentro do verdadeiro cenário que sempre a caracterizou.
Nota do editor – Ciceroneados por Issao Minami, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da UniABC, estiveram recentemente na Vila de Paranapiacaba o artista plástico e arquiteto paulistano Claudio Tozzi, a estudante Thais Ometto e o italiano Massimo Canevacci, natural de Roma, que estava ministrando um curso de especialização na USP. Canevacci, conhecido no Brasil como autor de São Paulo Cidade Polifônica, é especialista em antropologia visual. Minami é autor de tese de doutorado sobre a preservação cultural do patrimônio arquitetônico e tecnológico de Paranapiacaba. A visita se reveste de um caráter muito especial por parte destes estudiosos e pesquisadores universitários pois a localidade foi finalmente declarada patrimônio nacional pelo IPHAN. Minami defende uma redestinação social cuja vocação turística privilegie a correta preservação deste importante acervo da região do ABC. Canevacci e Tozzi se mostraram preocupados com o estado de preservação da localidade, mas se encantaram com a recepção calorosa e animada da moradora Zelia Paralego e do fotográfo Adauto Gonçalves Rodrigues da ONG local SPR Paranapiacaba.
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sobre os autores
Cecília Rodrigues dos Santos é arquiteta, doutoranda e consultora para a área de patrimônio cultural, crítica de arquitetura e co-autora de "Le Corbusier e o Brasil".
Issao Minami, doutor, é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.