O papel, e o desenho de arquitetura ou engenharia nele delineado, parece ser um suporte frágil e efêmero diante da solidez da construção. As linhas e cotas traçadas em pranchas, que antecipam e orientam a futura construção, espalham-se em cópias pelos canteiros de obras, e se desmancham tão prontamente o edifício se materializa.
Alguns podem julgar que o papel se torna dispensável, concluída a edificação, o objeto culminante do esforço dos arquitetos e engenheiros. Os usuários do edifício sequer têm consciência desses papéis. Mas os fatos evidenciam paradoxos: muitos papéis são mais duradouros do que os objetos que representam. Quantos edifícios deixaram de existir, demolidos ou modificados, e o papel guardou suas feições originais, a lembrança de sua existência? Como o retrato de um ente querido, a fotografia e o desenho podem registrar a memória de um ser que já nos deixou, ou podem restituir um instantâneo da vida de uma construção. A fragilidade do longevo papel se contrapõe à efemeridade do resistente concreto e do duro tijolo.
Desenhos de arquitetura e engenharia são representações técnicas, como a pauta e o pentagrama recebem as notações que os músicos lêem para suas interpretações. Ninguém vai a um concerto para ver pentagramas, como ninguém freqüenta um edifício pensando em plantas e cortes. Mas os músicos extraem sentimento e êxtase ocultos em signos gráficos. E aos signos retornam, para rever e reinterpretar e reinventar o que parecia pronto e definitivo. Arquitetos e engenheiros vislumbram materializar beleza e estímulos sensoriais a partir de traços e cotas. E a arquitetura, mais do que a música ou as demais artes, está subordinada à dinâmica dos tempos e usos. Sem os desenhos, a consciência do tempo, a existência do visível e do palpável ficam comprometidas.
O mérito das realizações e do acervo de desenhos do EDIF extrapola a frieza que a boa técnica da construção pode sugerir. O EDIF foi um setor da administração municipal paulistana cuja origem resguarda um extraordinário pedigree: o Convênio Escolar. Foi a definição de uma política de arquitetura para o ensino, num momento em que a Educação ganhava relevo enquanto manifestação de afirmação cultural e de cidadania, no pós 2ª Guerra Mundial. Foram poucas as experiências em que houve diálogo tão produtivo entre educadores e arquitetos.
Anísio Teixeira é personagem exponencial na História da Educação no Brasil. Em sua filosofia pedagógica nasceu a indissociabilidade entre educação e espaço arquitetônico, demonstrado em suas realizações, quer à frente da Secretaria de Educação do Distrito Federal entre 1932 e 1935, com a criação da Divisão de Prédios e Aparelhamentos Escolares, à frente da Secretaria de Educação da Bahia, com as escolas-parques dos anos 1940-50, e os sucedâneos paulistanos concebidos pelo discípulo-arquiteto de Teixeira, Hélio Duarte, caracterizando o Convênio Escolar como uma das mais luminosas realizações no campo da educação no Brasil no século 20. Como fundador da Universidade de Brasília e mestre de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira foi inspirador das experiências dos CIEPs, CIACs e, mais recentemente, dos CEUs – a corroborar a longevidade e permanência da essência de um ideário ainda hoje reverenciado no campo da Educação Pública.
O Convênio Escolar foi uma iniciativa que alterou tanto a paisagem da educação paulistana como a paisagem urbana e afetiva da cidade. Pessoalmente, fui estudante no Grupo Escolar Almirante Barroso, na Avenida Jabaquara. Recordo-me da generosidade dos seus espaços, a claridade dos ambientes, o diálogo que o conjunto escolar estabelecia com o bairro. Hoje, passo diante do prédio em que estudei e vejo, com certa melancolia, o ar sorumbático que o antigo Grupo Escolar ganhou após reformas burocráticas. Como eu, muitos usufruíram desses lugares generosos, desses grupos escolares disseminados nas então periferias, ou de outros edifícios, como o Teatro Paulo Eiró ou o Teatro Arthur Azevedo – obras contaminadas de uma urbanidade que as caracterizavam como referências na cidade sem monumentalização de suas arquiteturas, com adequada escala enquanto espaços públicos, democráticos e de reconhecido valor simbólico para a sociedade.
Tais valores não podem ser separados dos ideais dos jovens profissionais que conformaram o quadro técnico do Convênio Escolar. Hélio Duarte, o líder, foi um dos criadores da Escola de Engenharia de São Carlos da USP, diretor de planejamento do plano da Cidade Universitária Armando e Salles de Oliveira e Professor Titular da FAU USP; Eduardo Corona também foi Professor Titular da FAU USP, criador da FAU Brás Cubas de Mogi das Cruzes; Oswaldo Correia Gonçalves foi fundador da FAU Santos; Ernest Robert de Carvalho Mange, Professor Titular da FAU USP e da Escola Politécnica da USP, foi o criador da SEHAB e da EMURB na administração Olavo Setúbal, bem como responsável por projetos do porte como Ilha Solteira e Jupiá, e de escolas do SENAI; José Roberto Goulart Tibau foi emérito professor da FAU USP, autor de inúmeros projetos para o SENAI. Estes e outros arquitetos foram fundamentais para a consolidação de um sentido peculiar na arquitetura de São Paulo na segunda metade do século 20 – e foram, também, grandes educadores.
Naturalmente, o EDIF não é apenas o Convênio Escolar. Há uma respeitável folha de serviços de mais de meio século de atividades cuja espessura histórica está para ser desvelada. Essa espessura é mais encorpada que as folhas de vegetal: acumuladas ao longo de tanto tempo, formam grossos rolos impregnados de densidade histórica e social, a merecer imediato cuidado de conservação. Tais papéis importam a instituições de pesquisa, arquitetos, engenheiros, historiadores, educadores, pós-graduandos de múltiplas áreas, estudantes de arquitetura, engenharia e interessados outros que buscam nas mapotecas e pastas do EDIF a informação e o conhecimento de realizações que marcam a paisagem paulistana, que fazem jus a mais interpretações e difusão, ainda a revelar todos os personagens e as intenções nas entrelinhas de traços e registros técnicos. Como as atas da Câmara Municipal que anotaram as decisões dos homens bons dos séculos coloniais, os desenhos são atas modernas que testemunham as decisões acerca da educação paulistana. É fundamental que a documentação do EDIF seja valorizada e manuseada com o mesmo carinho e cuidado de registros de séculos passados. A diferença é que a arquivística hoje pode recomendar as medidas corretas para que a preservação dessa memória, ainda íntegra, não se perca com a incúria do manuseio ignorante derivado da falta de reconhecimento da importância de tão preciosos material.
sobre o autor
Hugo Segawa, Professor Livre-docente do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. Coordenador da seção brasileira do DOCOMOMO – International Working Party for Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the Modern Movement.