“O que buscávamos já existia”, dizem José Selgas e Lucía Cano ao recapitular sobre o processo de criação de seu edifício para o Palácio de Congressos de Badajoz “Manuel Rojas” (1), incitando a pensar que imaginar é um estado de concentrada sensitividade ante a realidade, ante a complexidade da realidade, desde o qual se percebem os fatores pelos que se criam as formas na qual se materializa, ao reconhecê-la ou ao entendê-la. Selgascano, nome do escritório que fez o projeto, atuou através do reconhecimento e entendimento das condições que dão identidade desde o século XVIII ao enclave urbano onde se encontra hoje o edifício, assumindo sensivelmente essa herança e apresentando uma construção que busca não só conservar a essência dessa identidade, mas ser parte dela.
Obra selecionada como integrante da recentemente concluída exposição On-Site no MoMA de Nova York, este palácio de congressos foi inaugurado dias atrás com os propósitos sempre assinalados pelas instituições oficiais comitentes de constituir um centro que dinamize a vida cultural local além de funcionar como uma peça que articule a conexão entre o centro antigo e a cidade nova de Badajoz e contribua para modernizar sua paisagem. Selgascano conseguiu um edifício que satisfaz estes requerimentos oficiais e que simultaneamente é, no arquitetônico, a serena e sólida expressão de uma criatividade inteligente que parece ante tudo se fundamentar numa liberdade comedida e rigorosa consigo mesma para cristalizar a precisa construção tanto do conceitual como do físico.
O Palácio de Congressos de Badajoz se levanta no Baluarte de São Roque – parte da antiga muralha defensiva que rodeava a cidade –, sobre os restos de antigas praças de touros que antes ocuparam esse ponto, a cuja presença se deve a precisa forma circular das duas estruturas externas que formam a nova construção. Um grande anel de fibra de vidro cria a primeira fachada, véu e ante-sala protetora do cilindro que contém o palácio sobre o lugar antes ocupado pela arena da praça, distinguido por uma fachada branca e luminosa rematada em anéis de metacrilato iluminado. Para preservar a integridade de ambos cilindros, a entrada ao edifício se realiza por uma descida e desemboca no grande vestíbulo, enterrado e iluminado por clarabóias, desde o qual partem as diferentes escadas que seguem a curvatura do perímetro do auditório e distribui o acesso às diferentes dependências do edifício. O trecho subterrâneo entre o anel exterior e o cilindro está ocupado por diferentes salas pequenas. Os cinco andares de altura do cilindro contêm um auditório com cenário de grandes dimensões e capacidade para um milhar de pessoas, sala de seminários, três salas polivalentes e uma de exposições, dependências administrativas e de serviços. A identidade do edifício como peça urbana se define pela singularidade que lhe outorga a aparência de transparência e ligeireza obtida mediante o uso dos materiais que rodeiam seu exterior, matizados ao longo do dia em seu jogo com a luz natural, com o propósito de imbuir a sua presença da virtude da discrição, tentando fazê-la desaparecer diluída na forte herança do lugar onde agora se levanta.
A “obviedade”, nomeada pelos arquitetos, na qual acabou derivando a dificuldade inicial que apresentava afrontar uma atuação sobre um solar tão intensamente definido pelo caráter e significação histórica de sua estrutura, não deve ser interpretada paralelamente à decisão de ter recorrido à “literalidade” para criar as decisões que fundamentaram este projeto. A forma do novo edifício é antes de tudo um gesto de preservação da marca do esquema físico da praça de touros na memória da identidade do espaço definido pelo perímetro do baluarte. A intervenção total efetuada por Selgascano é a materialização de um processo de imaginar o lugar para lhe dar nova forma sem alterar a sustância de sua identidade como marca urbana, operando sobre seu potencial latente. Corroboram isto ao explicar: “Para nós tem importância o processo palimpséstico de todas essas praças anteriores e suas evoluções, e não só a última com a que nos encontramos ao chegar ao lugar. Não nos importa o fato físico de algo que já não existe, mas a condição criada previamente, no século XVIII, pela decisão de esvaziar um círculo num grande baluarte pentagonal distorcendo todo o conceito que tinha de defensivo, contornando e fazendo-o receptivo ao acesso e ao ato público; que pode ser tanto uma corrida de touros, como um concerto ou um congresso. Por tanto nossa decisão desde o principio foi manter esta condição de vazio público, de vazio ganho para a cidade. Para conservá-lo nos ‘limitamos’ a abarcar todo esse contexto existente, preenchendo-o absolutamente”.
Este projeto mostra como é possível a reconstrução da paisagem urbana transformando uso e identidade sem fazer desaparecer a marca que o lugar tem sobre a memória coletiva de seus habitantes. A proposta destes arquitetos não consiste em uma mera refuncionalização de uma área, imbuída também de uma lembrança trágica de elevado conteúdo emotivo para os pacenses (dado que a arena da praça foi cenário de fuzilamentos durante a guerra civil), mas também propõe seu reposicionamento no imaginário cidadão ao transformar positivamente suas conotações. A decisão de Selgascano vai mais além da conservação da forma cilíndrica característica das praças taurinas. A operação se centra na reversão do fundo e da figura ao criar um vazio na área onde se elevava o palanque da praça e colocar o auditório no vazio da arena, provocando a transformação deste em corpo de aparência etérea que flutua sobre a pesada muralha, outro dos elementos que Selgascano consegue arquiteturizar, não sem esforço, ao escavar o solo para situar as dependências e salas do palácio.
O trabalho de José Selgas e Lucía Cano para o Palácio de Congressos de Badajoz evidencia claramente como o uso sensível e consciente da tecnologia e dos materiais atualmente à disposição do arquiteto permite a criação de peças clave enriquecedoras da cidade, não só por sua funcionalidade mas também por possuir uma capacidade simbólica e metafórica que transcende o fato construtivo.
nota1
Badajoz é a capital da província de Badajoz, na comunidade autônoma de Extremadura (Espanha)
[tradução Ivana Barossi Garcia]
sobre oa autores
Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste são autores do livro Enric Miralles Arquitetura do sentimento, que será publicado em breve pela editora Testo & Immagine.