Elevado Costa e Silva, 1971–
Imagine uma enorme reinvenção urbana de São Paulo. A partir da que já foi a maior via elevada da América Latina. Aproximadamente 3,4 km de extensão, dezenas de bairros e milhares de pessoas impactadas. De um desastre contínuo, “ligando um congestionamento a outro” a uma nova ecologia cultural e urbana.
Imagine essa reinvenção como uma série de intervenções singelas e duradouras que gradativamente se apropriam da estrutura existente, agressiva e degradante, para transformá-la em ambientes híbridos, “humanizados” e flexíveis. Nem ponte, nem prédio, nem praça, nem viaduto, nem avenida, nem rua, muito menos parque. Um pouco de tudo, mas diferente também. Uma ecologia infra-estrutural suavemente reconfiguradora de passagens em lugares.
Imagine que esse processo, reivindicado a décadas por arquitetos, urbanistas e principalmente moradores locais, atuasse nos dois níveis da estrutura existente: no térreo, sempre acompanhando as ruas e avenidas por onde se instala, e o terraço, plataforma linear e contínua que se comunica com o térreo e se abre para o céu, às vezes formando pátios, rasgos, planos inclinados. Ao longo de sua extensão, entretanto, esses dois níveis se interpenetram e se interrompem se necessário, numa topografia singular onde território e estrutura se misturam, incorporando agora as particularidades e mesmo as contradições dos mais variados contextos antigamente atravessados. Uma linha, não mais como um ato abstrato e genérico, acúmulo de vetores desconexos de movimentos privados, mas um conjunto integrado e solidário de remansos diversos e particulares.
Imagine que esse processo de reinvenção tivesse como objetivo costurar vizinhanças, bairros, áreas e regiões inteiras cindidas por essa construção já historicamente equivocada. E, à medida que se desdobrasse e avançasse sobre esse território desolador e brutal, inauguraria uma miríade de possibilidades aparentemente solapadas pelo cinza, pela velocidade e pela fumaça. O que o asfalto e o concreto separaram, um ecossistema inteiramente artificial re-alinhavaria.
Imagine: bosques densos de mata atlântica, jardins selvagens, hortas cuidadosamente cultivadas, pomares aromáticos, campos de cerrado, praças sombreadas, quadras poliesportivas, campos de futebol gramados, coretos, laguinhos, lagoas, tanques de pesque-e-pague, pista de corrida, calçadas para caminhada, bibliotecas públicas a cada km (será uma boa distância?), banheiros públicos, livrarias, bares, cafés, escolas-clubes, piscinas pequenas e rasas, piscinas fundas e olímpicas, piscinas com deck, ciclovias, pistas de skate, bicicross, espaços para eventos grandes e pequenos ao ar livre e também fechados, churrasqueiras públicas, laboratórios e oficinas para atividades criativas e comunitárias, galerias de arte, postos de atendimento, cibercafés com WI-FI e LAN houses, ambulatórios, cinemas, palquinhos e teatros de verdade, restaurantes grã-finos e populares, botecos, feiras livres, etc. Uma infinidade de atividades, algumas previamente e estrategicamente implantadas e outras que surgiriam espontaneamente.
Imagine, que além de tudo isso, em diversos lugares da obsoleta estrutura se implementassem equipamentos para provimento de energia elétrica, em terraços e pérgulas fotovoltaicas que aproveitariam o sol, e que toda a água e esgoto utilizados dos bairros e localidades adjacentes à esse enorme laboratório urbano seriam recolhidos e tratados e reutilizados em lagoas que serviriam também como espaços de lazer e ócio. O lixo, após triagem, reciclado. Não só o dos bairros próximos, mas de todas as adjacências, em plantas de reciclagem transparentemente didáticas e abertas à visitação. Ao ser percorrido, de bicicleta ou de bondinho elétrico (finalmente ressuscitado), poder-se-ia do silêncio do bosque ouvir à distância o burburinho fervilhante do imenso, porém lento movimento da multidão nesse impensável condensador sócio-ambiental. Do alto, das janelas dos apartamentos reabertas depois de décadas e das torres de escritórios envidraçadas, agora cobertas pelas trepadeiras que insurgem desrespeitando os limites da estrutura e escalando as superfícies mais lisas, ver-se-ia claramente: o leito sinuoso, verde, multifacetado e quase sem fim desse processo aparentemente impossível mas já familiar.
Linha Verde, 2006–
Imagine uma enorme intervenção urbana em Belo Horizonte. A maior das últimas décadas. 35,4 km de extensão, 100 bairros e mais de 3,5 milhões de pessoas impactadas. Do centro, parte planejada e adensada em direção à partes pobres, esquecidas e rarefeitas da cidade, chegando ao aeroporto internacional, ao norte.
Imagine essa enorme intervenção como um conjunto de projetos distintos e graduais, porém complementares, desenvolvidos a partir de uma estratégia abrangente, diretora mas também colaborativa e transdisciplinar, capaz de absorver e aglutinar a diversidade em uma estrutura híbrida, imprevisível e indecifrável. Nem ponte, nem prédio, nem praça, nem viaduto, nem avenida, nem rua, muito menos parque. Um pouco de tudo, mas diferente também. Uma ecologia infra-estrutural radicalmente transformadora dos lugares por onde passa.
Imagine que essa estrutura, de fazer inveja aos arquitetos, urbanistas e artistas mais visionários, tivesse dois níveis: um térreo, sempre acompanhando as ruas e avenidas por onde se instala, e o terraço, plataforma linear e contínua que cobre o térreo e se abre para o céu, às vezes formando pátios, rasgos, planos inclinados. Ao longo de sua extensão, entretanto, esses dois níveis se somariam a outros intermediários, mezaninos, mirantes e conexões que interpenetrariam e se interromperiam se necessário, numa topografia singular onde território e estrutura se misturam, incorporando e potencializando as particularidades e mesmo as contradições dos mais variados contextos atravessados. Uma linha, mas não como um ato abstrato e genérico, e sim um conjunto de segmentos diversos e particulares.
Imagine que essa estrutura tivesse como objetivo costurar vizinhanças, bairros, áreas e regiões inteiras cindidas por outras intervenções historicamente equivocadas como vias expressas, trincheiras e viadutos. E, à medida que avançasse sobre esse território desolador e brutal, inauguraria uma miríade de possibilidades aparentemente solapadas pelo cinza, pela velocidade e pela fumaça. O que o asfalto e o concreto separaram, um ecossistema inteiramente artificial re-alinhavaria.
Imagine: bosques densos de mata atlântica, jardins selvagens, hortas cuidadosamente cultivadas, pomares aromáticos, campos de cerrado, praças sombreadas, quadras poliesportivas, campos de futebol gramados, coretos, laguinhos, lagoas, tanques de pesque-e-pague, pista de corrida, calçadas para caminhada, bibliotecas públicas a cada km (será uma boa distância?), banheiros públicos, livrarias, bares, cafés, escolas-clubes, piscinas pequenas e rasas, piscinas fundas e olímpicas, piscinas com deck, ciclovias, pistas de skate, bicicross, espaços para eventos grandes e pequenos ao ar livre e também fechados, churrasqueiras públicas, laboratórios e oficinas para atividades criativas e comunitárias, galerias de arte, postos de atendimento, cibercafés com WI-FI e LAN houses, ambulatórios, cinemas, palquinhos e teatros de verdade, restaurantes grã-finos e populares, botecos, feiras livres, etc. Uma infinidade de atividades, algumas previamente e estrategicamente implantadas e outras impossíveis de planejar.
Imagine, que além de tudo isso, essa serpenteante estrutura ainda funcionasse no provimento de energia elétrica por onde passasse, através da incorporação de quilométricas pérgulas fotovoltaicas que sombreariam o terraço, e que toda a água e esgoto utilizados dos bairros e localidades adjacentes à esse enorme laboratório urbano seriam recolhidos, tratados e reutilizados em lagoas que serviriam também como espaços de lazer e ócio. O lixo, após triagem, reciclado. Não só o do próprio complexo, mas de todas as adjacências, em plantas de reciclagem transparentemente didáticas e abertas à visitação. Ao ser percorrida, de bicicleta ou de bondinho elétrico (finalmente ressuscitado), poder-se-ia do silêncio do bosque ouvir à distância o burburinho fervilhante do imenso, porém lento movimento da multidão nesse impensável condensador sócio-ambiental. Do alto, das janelas dos apartamentos reabertas depois de décadas e das torres de escritórios envidraçadas, agora cobertas pelas trepadeiras que insurgem desrespeitando os limites da estrutura e escalando as superfícies mais lisas, ver-se-ia claramente: o leito sinuoso, verde e aparentemente sem fim dessa intervenção impressionante mas já familiar.
Fim!
PS: 2007
Pare de imaginar. Nada disso é improvável ou utópico. Nada disso é extremamente inovador ou incrivelmente ousado. Nada disso é exageradamente mais caro do que construir ou desmontar hoje o que sabemos que vamos “revitalizar” num futuro próximo. Isoladamente ou em agrupamentos diferentes, todas essas atividades, tecnologias, estratégias, espacialidades existem e já foram realizadas, em algum lugar (muito distante daqui!). Provavelmente como reparo histórico a violências tectônicas daquilo que engenheiros insistem em chamar de “obras-de-arte” e políticos de “benfeitorias”, e que estamos prestes a “reinaugurar”.
sobre o autor
Wellington Cançado, arquiteto, mestre em arquitetura, professor do UnilesteMG.