"Pedra, padre, ponte, muro e um som cortando a noite escura colonial vazia pelas sombras da cidade hino de estranha romaria lamento água viva" (Milton Nascimento, Beco do Mota)
Muitas pessoas associam Diamantina imediatamente ao Beco do Mota e à cachoeira da Sentinela, que inspiraram a Milton Nascimento as duas músicas assim nomeadas. Estou entre elas, e esses dois locais serão abordados neste texto, que parte de minha viagem à cidade no ano de 2007, em plena 39ª edição do consagrado Festival de Inverno da UFMG.
Nos dias do festival em que estive em Diamantina, eu pude apreciar a movimentação promovida pelo evento em todas as partes da cidade. Sua agenda era distribuída por folhetos e caderninhos, noticiada por cartazes e por um jornal diário do festival. A cidade fica cheia, recebe várias visitas, turistas de origens diversas e, sobretudo, estudantes. A animação é total, e muitas das oficinas e espetáculos vinculados ao evento ganham as ruas.
Diamantina faz parte do recorte de minha tese de doutorado, dedicada ao estudo das representações sociais na Web das cidades brasileiras patrimônio mundial. Tombada pela Unesco em 1999, a cidade recebeu o título pelo conjunto arquitetônico e urbanístico de seu Centro Histórico. Movida pelas lembranças da viagem, neste artigo eu narro uma breve história da cidade, e descrevo seu traçado, acervo arquitetônico, e sítio natural de implantação, motivadores do seu tombamento.
Historicamente, Diamantina é ligada à descoberta e exploração de copiosas jazidas de diamante, no início do século XVIII, na região da nascente do Rio Jequitinhonha, onde já prosperavam arraiais de garimpo de ouro, minerado com trabalho escravo. Premida pelo crescimento dos arraiais, a Coroa Portuguesa implantou, em 1731, a Demarcação Diamantina. Era um regime especial de administração que incluiu o Arraial do Tijuco (futura Diamantina), tendo por sede a Vila do Príncipe (atual Serro). Para reforçar o controle sobre as minas, o Marquês de Pombal instituiu o Regimento dos Terrenos Diamantinos, que manteve o Arraial do Tijuco subordinado à Comarca do Serro. Essa subordinação só viria ser suprimida em 1832, no progresso do Arraial do Tijuco à categoria de vila, depois nomeada Diamantina, quando guindada a cidade (1).
Situada em sítio íngreme, assistido pela extraordinária escarpa da Serra dos Cristais, a cidade convive com vigorosa natureza agreste, descortinada diante de suas janelas, e apreciada do alto das ladeiras e torres das igrejas. Seu relevo montanhoso é atravessado pela Serra do Espinhaço, tombada como reserva da biosfera pela Unesco. Diamantina adapta-se a tal relevo, povoando-o com um colorido casario cuja implantação declina rumo ao rio, no sopé da vertente.
Diversamente de outros núcleos mineiros, seu traçado distingue-se pela forma aproximadamente quadrada de sua compacta trama urbana, ditada pela localização, em cada um de seus vértices, dos principais arraiais de que se originou. O do vale do Tijuco (na saída para Minas Novas); o Arraial de Baixo (que escoava para a Vila do Príncipe), e o Arraial de Cima (caminho para o sertão baiano) (3) são esses arraiais. Comportando ainda ruas tortuosas, moldadas às pendentes, o traçado cria pequenas praças e largos, que acentuam a riqueza de sua trama urbana. Nela, destacam-se a praça do mercado, chamada Praça da Cavalhada Nova, e o Largo do Rosário (dito Largo da Cavalhada Velha), na antiga entrada da cidade. Sobressai, igualmente, a Rua do Bonfim (da igreja de mesmo nome), com seu casario implantado em passagem elevada.
Outrora, ressaltava-se nessa trama a Praça da Intendência, espaço cívico da cidade e lugar da antiga Sé, que na década de 30 do século passado foi substituída por uma catedral neobarroca de grandes dimensões. Chamada de Catedral Metropolitana de Santo Antônio, a nova Sé foi erguida de costas para praça, alterando o aspecto original daquele espaço. Ali estão a Prefeitura Municipal (outrora Casa da Intendência), o Museu do Diamante (em casa que pertenceu ao inconfidente Padre Rolim), e o Chafariz da Câmara. A fotografia da nova Sé neste artigo permite aquilatar a desproporção dimensional e estilística entre a catedral e as construções do século XVIII, do entorno da antiga Praça da Intendência.
Outra particularidade do traçado diamantinense é a localização das igrejas, integradas ao casario, não dominando visualmente a malha urbana, e ostentando pequenos adros, de singelos desenhos. Representam-na a já citada Igreja do Rosário, a Capela Imperial do Amparo, e as seguintes igrejas: de Nossa Senhora do Carmo, das Mercês, de Nosso Senhor do Bonfim dos Militares, e de São Francisco. Reconheço que as fotos que as ilustram neste texto dizem menos de sua inserção no casario, que do meu encantamento pelas igrejas em si, mostrando os detalhes responsáveis por tanto.
Um galo português sobre um globo vazado, ambos de metal, encimando o campanário da Capela Imperial do Amparo, e o desenho de um lótus no acabamento de seu frontão. As pinhas nos cantos dos telhados da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. A meia-cruz de madeira que salta de cada um dos lados da estrutura do campanário da Igreja de Nossa Senhora das Mercês. A delicada escultura branca sobre os cantos do telhado da Igreja do Nosso Senhor do Bonfim dos Militares lembrando, em alguns ângulos, um pássaro pousado, e, em outros, a imagem de uma santa. Por fim, na Igreja de São Francisco, uma flor de quatro pétalas em relevo sobre a alvenaria do frontão, e o relógio de sua torre. Tudo isso somado às alvenarias brancas, coloridas pela marcação da estrutura e da moldura das esquadrias. Eis o conjunto de preciosidades que atiçou o meu olhar, meu porta-jóias diamantinense.
Sobre a Igreja do Senhor do Bonfim dos Militares, vale ainda destacar seu altar barroco, que apresenta rico trabalho em talha dourada, e seu campanário, franqueado aos visitantes, que ali podem apreciar seus dois belos sinos, e divisar a cumeeira da linda Serra dos Cristais. Na Igreja do Carmo, por sua vez, sobressai o forro de sua sacristia, pintado com perspectiva ilusionista pelo guarda-mor José Soares de Araújo, artista muito prestigiado ao seu tempo. São notáveis também seus altares folheados a ouro, e o órgão de 549 tubos de seu coro, onde foi organista Lobo de Mesquita, compositor de música sacra do século XVIII. Essa igreja distingue-se no conjunto religioso pela singularidade de apresentar uma torre sineira na parte posterior da construção, quando o usual era construí-la no frontispício. Tecnicamente, um motivo que pode justificar tal solução é a implantação em conformidade com a malha urbana, que dificultava a construção de duas torres (4).
Mas no folclore local a razão é bem outra. Refere-se ao fato de a igreja ter sido construída pelo contratador de diamantes João Fernandes, que vivia com a famosa Chica da Silva em sobrado próximo à igreja. A localização da torre é uma das muitas lendas em torno do casal no imaginário da cidade. Eis como a explica o site Trem de Minas: “Diz a lenda que até mesmo a torre da Igreja do Carmo teve de ser mudada de lugar para não perturbar o sono da beldade” (5).
Cabe aqui um parêntese para breve perfil de Chica. Nascida Francisca da Silva (? – 1796), era escrava mulata de José da Silva e Oliveira, nos tempos do antigo Arraial do Tijuco. Libertada a pedido do contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira, com quem passou a viver, Chica adquiriu grande prestígio na cidade, o que lhe valeu um apelido: a Chica que manda. Sua casa, presente de João Fernandes, é um sobrado da segunda metade do século XVIII, cujo programa original comportava um teatro e uma capela particular, de que restou apenas a portada, encimada por uma cruz.
A bela volumetria do sobrado é ainda valorizada pela localização diante da curva da Rua do Jogo da Bola para a Rua do Contrato. Em seu interior é de se lamentar a ausência da mobília original do lar, que pudesse reconstituir sua ambiência interna. O sistema construtivo do século XVIII (e de meados do XIX) tem nesta casa um exemplar didático. Notam-se facilmente ali a estrutura autônoma de madeira, sua armação composta de esteios de seção quadrada, e, no telhado, os frechais sobre os quais se assentam os forros e as coberturas. Igualmente notáveis são as treliças de vedação da varanda lateral, a portada da antiga capela, e os alpendres posteriores, donde se avista o seu belo quintal. Este último é um atrativo por si só, pois sobe a encosta organizando-se pela divisão dos canteiros em pedras douradas.
No conjunto arquitetônico de casarios, edifícios administrativos e religiosos, a simplicidade prevalece. Particularizam essas construções o uso de duas ou mais cores vivas nas aberturas, em contraste com o branco das alvenarias, seja nos sobrados, nas igrejas, ou ainda nas casas de porta e janela. Em suas construções predominam a estrutura em madeira e as alvenarias em pau-a-pique, até nos casos que pronunciam uma linguagem mais erudita, a exemplo do sobrado do Arcebispado, o Palácio Episcopal, antiga Casa do Contrato.
Nas sacadas do Palácio Episcopal vale atentar para a vedação do guarda-corpo de ferro-fundido trabalhado, e o para-peito de madeira com acabamento em pinhas coloridas, posicionadas em cada um de seus cantos. Tais acabamentos e adornos de sacadas aparecem em vários exemplares do casario, constituindo uma característica desse conjunto, onde algumas casas têm pinhas em cristal bacarat. A Rua do Contrato sedia o Palácio, e ambos são plasticamente beneficiados pelo seu conjunto, entorno e natureza. Ocasiões exemplares para apreciar essa combinação de forças são as tardes de julho, quando por sobre o Palácio projeta-se o perfil da Igreja do Carmo.
Sem o uso de recuo frontal, o casario da cidade define os quarteirões, as vias e os espaços públicos, de dimensões acanhadas, em sua maioria. Refulge nesse conjunto o emprego de elementos evocativos da arquitetura luso-árabe, tais como as gelosias (folhas de esquadrias com treliças), presentes, por exemplo, na Casa de Chica da Silva; e o muxarabi. Deste último, o único exemplar completo de sacada no Brasil é o da sede da Biblioteca Antônio Torres. Ademais, o colorido cenário da cidade é percorrido sobre uma criação que destaca a urbanística diamantinense: a capistrana. Trata-se de trecho de calhas centrais para escoar a água, pavimentado com lajes retangulares, como caminho de pedestres. Apresenta bonitos acabamentos de piso, e, nas curvas, notáveis concordâncias.
Na arquitetura civil destaca-se ainda o conjunto do antigo Colégio de Nossa Senhora das Dores, outrora administrado pelas irmãs vicentinas. Atual sede do Instituto Casa da Glória, o conjunto é composto por duas casas situadas em lados opostos da rua, ligadas por um raríssimo passadiço elevado. Construído por estrutura e vedações de madeira, esse elemento de ligação é conhecido como Passadiço da Glória.
Em 1979, o conjunto foi adquirido pelo Ministério de Educação e Cultura para sediar o Centro de Geologia Eschwege, quando de sua incorporação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Hoje este centro é um órgão complementar do Instituto de Geociências da UFMG, que reúne os cursos de Geologia, Geografia e Turismo (6). O conjunto de todas as instituições instaladas na edificação é chamado de Instituto Casa da Glória, e conhecido mais simplesmente por Casa da Glória.
A Casa da Glória é a matriz do prestigiado Festival de Inverno da UFMG, que entre os dias 15 e 28 de julho de 2007 realizou a sua 39ª edição, com o tema “Territórios Híbridos/ Linguagens Contemporâneas”. Sua programação incluía oficinas, cursos, e aulas abertas de artes audiovisuais, cênicas, literárias, musicais, plásticas; e as transdisciplinares e híbridas (assim chamadas pelos organizadores). Além de cursos e oficinas, a Casa da Glória foi palco de várias exposições e espetáculos vinculados ao evento.
Além da Casa da Glória, entre outros exemplares da arquitetura civil despontam ainda a antiga Casa de Câmara e Cadeia (atual Fórum), a Santa Casa de Caridade (do final do século XVIII), e o Mercado Público. Este último é todo edificado em madeira, portando arcos abatidos em cores vivas. Construído por um comerciante local para ser rancho de tropeiros, situa-se na Praça da Cavalhada Nova. Nesse mercado, outrora chamado Pouso dos Tropeiros, reuniam-se as tropas de mulas de carga, dos longes provindas, recordando os sistemas de caravançarás das cidades orientais. Hoje, a construção aloja um espaço cultural e a feira de artesanato, onde são vendidas criações do Vale do Jequitinhonha, pedras semipreciosas, e iguarias locais (doces e bolos) conhecidas como quitandas.
Em um contexto mais tardio da arquitetura e do urbanismo, na estilística que caracteriza a cidade são raros os exemplares de ecletismo, neoclassicismo ou neocolonial. O modernismo foi ali introduzido nos anos 50 do século passado, por iniciativa de Juscelino Kubitschek. A investida deu-se inicialmente pela edificação de três projetos de Oscar Niemeyer: o Hotel Tijuco, a Escola Júlia Kubitschek, e o antigo Clube de Tênis, atual Praça dos Esportes.
Essas arquiteturas atestam claramente seu tempo de construção. Do ponto de vista estilístico, sua diferenciação do entorno setecentista garante a legibilidade das diferentes épocas, a setecentista e a modernista. Não obstante, o questionamento acerca da inserção de tais construções no tecido setecentista é compreensível por duas razões principais. Em primeiro lugar: porque tais obras mudam totalmente o desenho das quadras onde se inserem; e a sua relação com a rua é de distanciamento, portanto, totalmente diversa da proximidade casa-rua dos setecentos. Em segundo, mas não menos importante: porque sua escala difere totalmente da setecentista, o que o recuo frontal nelas adotado vem a sublinhar, dotando a construção de uma monumentalidade antes inexistente no conjunto.
Ademais, percorrendo as ruas da cidade, nota-se a disseminação dessa influência modernista em outras tantas obras. É o que atestam, por exemplo, os edifícios da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Murici (UFVJM), bem como do atual Hospital Santa Izabel. Ambos situam-se em uma mesma quadra da Rua da Glória, em cuja subida avista-se, todo o tempo, o já citado passadiço de madeira, reforçando o sentido radical do contraste dessas obras com o entorno.
Saindo agora do acervo material, para contemplar as demais manifestações culturais da cidade, vale lembrar que a riqueza da mineração concorreu para que em Diamantina formasse-se uma cultura ímpar – a cultura do garimpo, ou diamantina. A singularidade de suas práticas é eviternamente renovada pelo transmitir da tradição, sobretudo pela música, que ali sobressaiu desde os setecentos. A música erudita da sofisticada produção setecentista teve seu maior expoente no organista e compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita (? – Rio de Janeiro, 1805) (7). O interesse por suas composições foi recobrado, no século XX, a partir das pesquisas do musicólogo teuto-uruguaio Francisco Curt Lange (Eilenburg, 1903 – Montevideo, 1997) (8).
Essa musicalidade é hoje reverberada pelas vesperatas e Diamantes Musicais, apresentações tocadas por músicos nas janelas do casario, regidas por maestro posicionado sobre um palco no centro da rua. Tive a sorte de assistir a um Diamante Musical na noite de 21 de Julho de 2007, um sábado em que tocou a Banda Sinfônica Mirim de Diamantina, regida pelo maestro Alex. As igrejas da cidade também sediam apresentações musicais. Algumas delas reúnem corais de monges, com destaque para a de São Francisco de Assis. Outras há que acolhem orquestras, como a Capela Imperial do Amparo, que na manhã do domingo de 21 de julho de 2007, recebeu a supracitada banda mirim e seu maestro.
No rico cenário musical diamantinense, destacam-se as tradicionais Pastorinhas, meninas guiadas por Dona Ambrosina e seu acordeom, que percorrem as ruas da cidade. Diamantina é conhecida também por suas serestas, puxadas por coletivos dominicais de seresteiros no Beco do Tecla. Perto dali, no decantado Beco do Mota, toca-se música informalmente entre mesas e calçadas, e joga-se conversa fora em bares tão pequeninos quanto cativantes.
Em meio à musicalidade dos espaços públicos, ressaltar a Rua da Quitanda é inevitável. Entre suas mesas, em tarde memorável, presenciei a chegada de um grupo de ciclistas que viera pedalando desde Belo Horizonte. Estacionaram as suas mountain bikes, e comemoraram a recém concluída viagem. Também ali pude assistir ao alegre futebol que um pai jogava com a sua filhinha. Perto dos dois, o grupo Rádio Relógio, de Divinópolis, tocava suas especialidades latino-americanas. Esbanjando latinidade, o casual show abriu com a irresistível cubana Chan-Chan, desfilou repertório de reggaes, boleros, e o pop de Manu Chao, e animou um casal a improvisar um verdadeiro espetáculo de dança.
Na cidade que a todos convida às notas e aos tons, uma frase musical ecoa no imaginário popular: “Como pode o peixe vivo viver fora da água fria?”. É o mote que lembra um filho seu, ali muito prestigiado, o ex-presidente Juscelino Kubitschek. Impossível falar da cidade sem citá-lo, pois sua presença patenteia-se no nome de logradouros públicos, de casas comerciais diversas, e repercute-se na fala do povo diamantinense.
No âmbito do patrimônio construído, um terno modo de tomar contato com sua memória é visitar a casa onde morou o ex-presidente quando menino, na Rua de São Francisco. Sua família mudou-se para a casa em 1905, quando o ex-presidente tinha três anos de idade, tendo ele vivido aí até os seus dezoito anos. Em seu interior, preservam-se com mobiliário da época a cozinha e o seu antigo quarto. Os demais cômodos são usados para exposições relativas à biografia do ex-presidente, do restauro da casa, bem como de fatos da história da cidade e do Brasil ligados à pessoa de JK.
Além do ali venerado ex-presidente, cumpre citar outra personagem que entrou para sua história, e até hoje marca seu imaginário: Helena Morley (1880 – 1970). Pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant, Helena notabilizou-se pela publicação de seu diário de adolescente, sob o título de Minha Vida de Menina. Escrito no período entre os seus doze e quinze anos (1893 a 1895), foi publicado pela primeira vez em 1942.
O texto que apresenta sua edição de 1998, descreve-o como uma “história da vida privada avant la lettre”. Considero-o como tal, tanto pelo diário em si, quanto pela condição da menina na sociedade de seu tempo. Descendente de ingleses e portugueses, vivendo entre o urbano e o rural, transitando entre diferentes classes sociais, a autora posicionava-se em um entremeio muito favorável à observação crítica do cotidiano. Seu mérito foi reconhecido por Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, e Elizabeth Bishop, que verteu o diário para o inglês. Posteriormente, a obra tornou-se objeto de análise comparada (9), e de transposição ao cinema (10).
De escrita franca, com a espontaneidade e despretensão da adolescente que iniciou um diário seguindo o conselho do pai, Helena acaba por desvendar criticamente a cidade e a sociedade à sua volta. Uma sociedade que alternava entre a tentativa de segurança, representada pelo esforço por estabelecer e consolidar um núcleo urbano, e as oscilações do aventureirismo representado pelo garimpo. A menina tinha uma madura consciência desses dois pólos, muitas vezes conflitantes, da cidade. É o que Helena demonstra, de forma bastante arguta, no trecho abaixo transcrito.
“Eu, tirando meu título de normalista, sei que tudo vai melhorar, pois irei até para o fim do mundo dar minha escola. Já fiz meus planos, tão bem assentadinhos, que até poderemos guardar dinheiro. Mas deixar meu pai nesta peleja, furando a terra à espera de diamantes que não aparecem, é que não deixarei. Às vezes eu dou razão a Seu Zé da Mata, da resposta que ele deu quando meu pai o foi convidar para entrar de sociedade num serviço de mineração. Ele disse: Não, Seu Alexandre, eu não deixo o meu negócio onde estou vendo o que tenho, para procurar debaixo da terra o que eu não guardei lá!” (11).
O diário de Helena relata ainda as diversas aventuras e desventuras de sua família em meio à paisagem circundante, e suas temporadas na Vila de Biribiri, antiga vila operária de indústria têxtil, construída em 1870, atualmente sediando estância de lazer e turismo. No entorno, ficam as cachoeiras da Sentinela e dos Cristais. Ambas encantadoras por suas formas, pelo tom entre dourado e cobre das rochas onde cascateiam suas águas, e pelo verdor destas diante do áureo fundo arenoso das lagoinhas no sopé.
Por tudo isso, Diamantina é um relevante testemunho da conquista do interior do país. Evidencia a sábia adaptação dos modelos europeus à realidade americana, pelos desbravadores do território, aventureiros do diamante, e representantes da Coroa, originando uma cultura peculiar. Integrado à grave e majestosa paisagem das serras circundantes, seu conjunto urbano e arquitetônico ilustra o aventureirismo e o esmero dessa cultura. São esses dados que justificam a inscrição de seu centro histórico na Lista do Patrimônio Mundial segundo os critérios II e IV, respectivamente:
“II. Ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores humanos durante um determinado período ou em uma área cultural específica, no desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, de planejamento urbano ou do desenho da paisagem...
[...]
IV. Ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou de conjunto arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias etapas significativas da história da humanidade...” (12).
Em termos de diversidade cultural brasileira, assim como Ouro Preto, e, em certa medida, também como Goiás Velho, Diamantina reporta um incipiente sentimento de brasilidade. Um sentimento forjado nas lidas com pedras preciosas, marcado pelo audaz desbravamento, e construído por lutas pela soberania da terra, e dos bens a ela captados. Assinala o dom de superação de um povo cujo afinco implantou uma cidade em território difícil. Eu espero que este texto ajude a despertar a vontade de conhecê-la. Para os que já queiram visitá-la, eu deixo uma dica: estendam a viagem até o Serro. Posso adiantar que é compensador, por uma série de motivos que pretendo contar, em breve, neste Vitruvius.
notas
1
UNESCO. Patrimônio mundial no Brasil. 3 ed. Brasília, UNESCO, Caixa Econômica Federal, 2004.
2
TIRAPELI, P. Conhecendo os patrimônios da humanidade no Brasil. São Paulo, Metalivros, 2001.
3
Idem, ibidem.
4
PIMENTEL, B; ALCARÁ, J. As Jóias da Coroa. Belo Horizonte: Trem de Minas. Disponível em: http://www.terra.com.br/tremdeminas/diamantina.htm. Acesso em: 14 ago. 2008.
5
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA UFMG. Casa da Glória e a UFMG. Diamantina: Casa da Glória. Disponível em: http://www.igc.ufmg.br/casadagloria/casaeufmg.html. Acesso em: 14 ago. 2008.
6
HOUAISS, A. Pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larousse. Rio de Janeiro, Larousse do Brasil, 1982.
7
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Acervo Curt Lange. Belo Horizonte: Acervo Curt Lange. Disponível em: http://www.curtlange.bu.ufmg.br/pinicio_pgs/pinicio01.htm. Acesso em: 14 ago. 2008.
8
SCHWARCZ, R. Duas meninas. São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
9
SOLBERG, H. Vida de menina. Rio de Janeiro, Raccord Produções, Radiante Filmes, Brasil, 2003.
10
MORLEY, H. Minha Vida de Menina. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 71.
11
UNESCO. Patrimônio mundial no Brasil. 3 ed. Brasília, UNESCO, Caixa Econômica Federal, 2004, p. 291.
sobre o autorEliane Lordello, arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em arquitetura (PROARQ/FAU/UFRJ, 2003) é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (MDU/UFPE) na área de Conservação Urbana. Desenvolve atualmente a tese Sete Cidades: um estudo das representações sociais das cidades brasileiras patrimônio mundial na Web