Os prêmios costumam suscitar opiniões divergentes, mas quando algum é muito questionável deixa em evidência aos que acreditam equivocadamente que entre gostos não há desacordos. Como esses jornalistas de teatro que aplaudiram a Biblioteca de Santo Domingo em Medellín, Colômbia, sem conhecê-la nem se informar de seus inconvenientes, só porque ganhou recentemente em Portugal a VI Bienal Ibero-americana de Arquitetura e foi inaugurada por Suas Majestades, o que consideram uma honra para o país. Mas apenas dizem de sua arquitetura que é de “meteoritos” e seu autor “costeiro”. Ou esses arquitetos, carentes de elogio mútuo, correram a consagrá-la como a nova arquitetura colombiana desejando que, falecido o arquiteto Rogelio Salmona, pois a rei morto, rei posto. Menos mal que este prêmio, interessado mais que interessante, serviu ao menos para iniciar um debate público sobre essa arquitetura espetáculo que na Colômbia apenas se inicia, enquanto na Europa está convocada a sua desaparição “para fazer parte da história” como o acredita, entre outros, Arturo G. de Terán (El arte en la arquitectura de hoy hacia mañana, 2008).
O fato é que, desde nossa “Independência”, há dois séculos, quase tudo nos chega tarde e de fora. Jurados, desconhecidos para muitos na Colômbia, premiam lá, em Lisboa, o que nem todos eles conhecem, aqui, em Medellín, baseando-se somente em alguns poucos planos e fotografias, a maioria de volumes, como lamentavelmente em todas nossas bienais. Prêmios que depois influenciam no que fazemos no país. Não importa que o “exteriorismo” atual, como o chama Jaime Sarmiento (La arquitectura de moda, 2006), não considere nossa realidade. Como essa presunçosa biblioteca de Giancarlo Mazzanti em Medellín, que ignora a vizinhança pobre em que está e seu escasso espaço urbano público, com seu equivocado significado, duvidosa bio-climatização, carência de conforto, funcionalidade, facilidade de manutenção e segurança, e impossibilidade de flexibilidade, adaptabilidade e reciclagem. Arquitetura espetacular que não é o caminho no trópico hispano-americano, como tampouco o é na Europa a Casa da Música de Porto, de Rem Koolhaas, um dos referentes de Mazzanti, que tampouco é a nova arquitetura portuguesa e apenas um ruidoso gesto de novos ricos nessa bela cidade, além de que parte de seu espaço construído não se pode usar –nem ver– e suas escadas e saídas são uma armadilha numa emergência.
Também é evidente a coincidência dos três volumes da biblioteca de Medellín com os três do Centro Multimídia da Universidade de Hong Kong (2003), de David Chipperfield, aos que também coincidentemente se refere seu autor como “rochas”, como igualmente é indiscutível a semelhança das “nuvens“ da Sala Magna da Universidade Central da Venezuela (1953), em Caracas, de Alexander Calder, com as da Praça Maior em Medellín (2006 ), cujo volume, no demais é mais que igual ao do Museu Universitário de Alicante (1999), de Alfredo Paya. Mesmo assim é notória a semelhança das “ondas“ do Edifício Polivalente de Serviços de Hotelaria na Cidade da Inovação em Navarra, Espanha (2008), dos arquitetos Kahle, Oíza e Arauzo, com as do projeto para os estádios dos jogos Sul-americanos que se celebrarão em Medellín em 2010. Todas estas “inovações” de Mazzanti deixam claro que para alguns de “nossos” arquitetos, o mais representativo de “nossa” arquitetura deve ser a copiada das modas européias já passadas de moda que nos chegam em suas revistas de exportação, sem importar-se com as radicais diferenças geográficas e históricas que existem.
A boa arquitetura não se pode globalizar, e, como insistiu Salmona, não é somente arte. Também é função e técnica, mas, paradoxalmente, sua frivolidade atual se dá quando o avanço construtivo e a proliferação de novos materiais tornaram possível nos edifícios o paradigma de Marcel Duchamp, de que é a vontade do artista o que torna arte qualquer coisa, como seu famoso urinol, que iniciou a arte conceitual. Por isso Ernest Gombrich diz que a arte não existe, e sim somente os artistas que propõem novos problemas ou os desenvolvem; mas muitos deles, no afã da mudança geracional, da qual também ele fala (Historia da Arte,1949), o tomaram literalmente apesar de que com apenas o propor não basta, e muito menos em arquitetura. Evidentemente isto tem graves conseqüências, pois estamos danificando nossas cidades com os edifícios triviais, impertinentes e extemporâneos que, em general, estamos fazendo.
Mas somente com crítica, teoria e história se fará um debate culto e amplo; e daí frutífero. A democracia verdadeira é, sobretudo cultural e não apenas política. É o que permite que os cidadãos convivam pacifica e estimulantemente ao aceder a sua cidade enquanto obra de arte coletiva. Por isso é necessário continuar com o debate público sobre nossa arquitetura atual, essa arquitetura espetáculo que nos chega com os prêmios, as bienais e as revistas. Nos teria que interessar a todos e não apenas aos arquitetos. Em conseqüência, é pertinente analisar a Ata da VI Bienal Ibero-americana de Arquitetura. Dizem nela os arquitetos Antonio Toca do México, Ricardo Carvalho de Portugal, Rosa Grena Kliass do Brasil, Beth Galí e Juan Miguel Hernández da Espanha, e Nelson Inda de Uruguay, para “justificar” o prêmio à Biblioteca de Santo Domingo, de Medellín, que:
“O Parque e Biblioteca Espanha é uma obra de profunda significação cultural, merecedora do Prêmio quando conjuga com qualidade superior todos os aspectos que o Jurado considerou aos itens de sua valorização, destacando-a do conjunto de Obras Selecionadas. O Parque e Biblioteca Espanha é a resposta arquitetônica a um programa que relaciona múltiplos serviços culturais em atenção a uma área da Cidade de Medellín especialmente conflituosa.
A proposição espacial, formal, funcional e de relação com a paisagem, se justifica e explica no memorial apresentado pelos autores: “…mais que um edifício se propõe a construção de uma geografia operativa… Um edifício-paisagem que redefine e tridimensionaliza a estrutura acomodada nas montanhas como forma e espaço…”
A volumetria simples e variada, unitária e diversa, real e virtual, comunica com acerto evidente uma proposta “naturalmente artificial” numa área marcada pela carência material, a desintegração social e o vazio cultural. Como resposta a um programa de Inclusão Social o Parque e Biblioteca Espanha cumpre cabalmente com sua obrigação, quando permite desenvolver as possibilidades de encontrar, por parte da população servida, as bases de identidade enraizadoras com o lugar e integradoras no social que lhe permita projetar-se no tempo.
Por outro lado, não são menores os valores do espaço interior com uma proposta de extrema sobriedade nos recursos e neutralidade nos acentos físicos.”
Aparte da lamentável redação da ata, como o apontou o professor Germán Téllez, quais são os aspectos que o Jurado considerou? Muito cômodo para o jurado que parte do memorial do projeto passe a ser parte da ata e que a sucinta descrição do programa re-situe seu razoamento. O que é isso de geografia operativa, edifício-paisagem, tridimencionalizar ou qual estrutura acomodada? E de “natural artificial”? E desde já a volumetria da biblioteca não é simples, nem unitária, nem virtual, nem seus espaços interiores são sóbrios nem neutros. Todo o contrário e, naturalmente, são artificiais. Quanto aos demais, fica a impressão de que o Jurado não constatou em Medellín que o Parque Biblioteca Espanha, como chamam à biblioteca, cumpra cabalmente com sua obrigação, e obviamente é demasiado cedo para assegurá-lo sem dar a menor importância. E falando de parques, qual foi o que viram?
Os arquitetos, na medida em que intervimos em cidades que são de todos, e tão de antes como de agora, temos que aprender a concentrar-nos no razoável das críticas que suscitam nossos edifícios, mais que nos supostos motivos pessoais dos críticos. A argumentar mais que vilipendiar. Se não temos temor a que se construa tudo o que projetamos, muito menos o deveríamos ter a que o discuta publicamente. É indispensável para poder criar essa útil "substância meditativa" de que fala Milan Kundera (François Ricard: La littérature contre elle-mème, 1990). Nos permitiria desenvolver uma teoria que evite que nos volvamos arbitrários ou repetitivos (Hanno-Walter Kruft: Historia de la teoría de la arquitectura, 1990), e a entender e aclimatar o simples gosto próprio tornando-o complexo, pertinente, coletivo e responsável. Ético, numa palavra, e não apenas estético.
Se bem que há muitas funções novas e a arquitetura agora conta com um grande avanço técnico, suas formas não permitem quase nada totalmente novo; somente alguns poucos sólidos platônicos, mas sim muitas derivações e combinações. Por isso os arquitetos prudentes não caem na simples “imitação servil de um estilo” (DRAE), se não que simplesmente roubam, como disse T. S. Eliot dos poetas maduros. Reinterpretam idéias, que costumam vir de muito atrás, e as desenvolvem criativamente. As leis que tornam efetivo o que consideramos não convencional, baseadas na psicologia elemental, são eternas, e daí que o extraordinário se desprenda do ordinário (Robert Greene: Las 33 estrategias de la guerra, 2007). A arquitetura segue sendo a concepção poética, técnica e econômica de ambientes úteis e íntimos para a vida. Que se vêem, escutam, tocam, cheiram e sentem, em espaços interiores que são sua essência, e que emocionam ao recorrê-los (Bruno Zevi: Architectura in nuce, 1964), mas que se modelam para definir espaços urbanos, discretos ou monumentais segundo demande cada caso. E hoje devem ser sustentáveis, funcionais, confortáveis, seguros e recicláveis.
Lamentavelmente nossa profissão, pese a que cada vez intervém mais em nossas cidades, perdeu o status social que teve, é cada vez menos respeitada e é confundida frivolamente com o “exteriorismo”, a decoração ou o design. Em boa parte porque a divulgação e a crítica de nossa arquitetura não foi sistemática nem contínua. Hoje nossos debates gremiais carecem de sindérese; essa discrição e capacidade natural para julgar retamente. A crítica, baseada em sua competência e pertinência, induziria reflexões que contribuiriam a relacionar e enriquecer os dados existentes para criar uma perspectiva histórica que nos facilitaria transformar nossas cidades. Pois disso é que se trata, nada menos, e daí a importância de um debate que deveria ser permanente e público. E por isso nossas bienais teriam que ser mostras refletidas da arquitetura que se está fazendo no país ou Ibero América, mais que meros concursos de elogios ou exclusões mútuos.
[texto baseado nos publicados na coluna ¿Ciudad? de El Pais de Cali, de 8 e 15 de Maio e 5 de Junho, de 2008.]
sobre o autorBenjamín Barney Caldas, arquiteto e historiador