Este artigo, centrado no estudo do passado e na formação da cidade de Januária, Norte de Minas Gerais, discute o patrimônio histórico e a identidade como fatores fundamentais para a manutenção do preservacionismo, pondo em relevo a necessidade da educação patrimonial como forma de ampliar a compreensão das relações sociais e econômicas que deram origem à cidade.
Os marcos históricos de Januária foram lançados a partir da conquista do rio São Francisco pelos bandeirantes, que percorreram, no início do século XVI e XVII, as regiões do Alto e Médio São Francisco a procura de riquezas minerais e aí se estabeleceram mediante a submissão e o uso da força escrava dos índios. O rio São Francisco, antes de receber esse batismo em referência ao santo peregrino, era chamado pelos índios tupis de Opará, o rio-mar. Por esse caminho, milenarmente habitado, percorreram as principais correntes migratórias do Brasil colonial. A ocupação territorial foi ocorrendo de forma gradual, com a formação de fazendas para a criação de gado. O comércio entre as regiões se formou durante todo o período colonial, e Januária, então denominada Porto do Brejo do Salgado, Porto do Salgado, Salgado, tinha o seu porto fluvial como centro fornecedor e de escoamento de mercadorias, sobretudo no século XIX. A prosperidade do arraial do Brejo, distante cerca de cinco quilômetros da margem do rio, fez surgir a cidade de Januária, que foi se desenvolvendo a partir dos depósitos de mercadorias. Graças às particularidades geográficas do arraial do Brejo e às características do solo da região, com alta concentração de salinidade, desenvolveu-se a partir da cana-de-açúcar uma economia crescente e o porto comercial progrediu.
Saint-Hilaire registrou em 1817 que essa região não devia em nada em termos de riqueza e relevância à região aurífera do século XVIII: “a prosperidade reina entre os habitantes de Salgado. Parece que vários deles possuem grande quantidade de escravos, e meu próprio hospedeiro tinha setenta” (1).
A economia do Porto do Salgado era assegurada pela troca intensa dos produtos ali concentrados, oriundos do lugar ou que ali aportavam, subindo ou descendo o rio. As barcas, grandes ou pequenas, carregavam cargas e passageiros; além de meio de transporte, elas funcionavam como um estabelecimento comercial itinerante.
Findo o vaivém dos vapores, a ausência de uma política para a navegação fluvial, a construção de ferrovias e o surgimento de novas rodovias, o porto fluvial de Januária “fechou” praticamente todo o movimento de passageiros e mercadorias. Ainda assim, pequenas embarcações trafegam constantemente pelo rio, principalmente entre Minas e Bahia. Sob essa história econômica e social é que foram formados os bens representativos da cultura ribeirinha do Vale do São Francisco.
Patrimônio e identidade
Pierre Nora utiliza as relações entre memória e história, considerando que os marcos das comunidades são “lugares de memória”. Esses lugares são destinados a marcar e ampliar a memória. Nora diz que memória e história não são sinônimas:
“A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos [...] aberta à dialética da lembrança, e do esquecimento, inconsciente de suas deformações, [...] a história é a reconstrução sempre problemática do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no presente; a história, uma representação do passado” (2).
Em Januária, praticamente inexiste uma política pública cultural preservacionista e a sociedade ainda não se sensibilizou para as questões de identidade e memória. No entanto, a sociedade local pode apresentar cobrança do cumprimento dos deveres do município em resguardar o patrimônio histórico cultural, já que dispõe de lei municipal de proteção – Lei 1.800, de 27 de agosto de 1998, que dispõe sobre a proteção do patrimônio cultural. Desde 1985, portanto, antes da existência da lei local, o município recebe do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA-MG incentivo para o tombamento e o reconhecimento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (Figura 2), localizada na zona rural do Brejo do Amparo, como patrimônio de excepcional valor histórico. Está configurada no Livro II do Tombo de Belas Artes e no Livro III do Tombo Histórico do IEPHA-MG.
Como exemplar arquitetônico, sua importância é um marco na história do povoamento de Minas e da região. Mesmo sendo tombada, seu estado de conservação é bastante precário: está abandonada, quase em ruínas. Ainda sem um aprofundado estudo investigativo da história da formação do povoado, a origem da igreja liga-se aos primeiros anos do século XVIII. É tal o estado de ruína da igreja que já não se realizam missas em seu interior, a população participa dos cultos do lado de fora da edificação, no adro, onde são feitos também casamentos coletivos. Outro relato é encontrado no Processo de Avaliação para o tombamento que avalia “sua conservação até os nossos dias se deve mais a uma feliz casualidade do que a qualquer esforço oficial nesse sentido”, registra o documento do IEPHA-MG.
A campanha “Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição Engenheiro Halfeld”, realizada pela Confederação das Associações Comerciais do Brasil e executada pela Federação das Associações Comerciais, Industriais, Agropecuárias e de Serviços do Estado de Minas Gerais – (Federaminas) percorreu, entre 14 de outubro e 18 de novembro de 2001, o rio e seu entorno para avaliação dos bens culturais e naturais do Vale do São Francisco. O Relatório de Participação Técnica, elaborado pela equipe multidisciplinar de pesquisadores da área de história e de patrimônio, indicou que:
“Há comunidades onde se formou sólida consciência de preservação, que se transmitiu para o poder público e os empresários locais. Em outras cidades ocorreu o inverso; a população, a iniciativa privada e o poder público parecem irmanados no descaso e mesmo na agressão ao patrimônio cultural, que vai se desfazendo” (3).
Quanto ao estado de conservação e à proteção legal, o relatório aponta para situações extremamente díspares entre si. Em alguns casos os bens foram tombados, mas deixados abandonados à própria sorte.
Outro laudo técnico de interesse de proteção cultural foi levantado pela Promotoria de Justiça de Januária, que, no ano de 2004, requisitou ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Urbanismo e Habilitação – CAO – MA (4), um relatório de avaliação e levantamento dos bens. O relatório cultural preventivo consta de mais de duzentas páginas apresentando considerações sobre a história cultural de Januária e indicações para as ações imediatas que a Prefeitura Municipal e o Conselho Deliberativo Municipal do Patrimônio Cultural. Desde a conclusão do Relatório apresentado pelo Ministério Público, a sociedade januarense ainda não tomou conhecimento de efetivação das ações cobradas pelo órgão.
A população da cidade precisa cuidar da memória de Januária, pois somente com informação podem contribuir para que esses acervos ainda existentes sejam preservados. Certos conjuntos históricos são lugares em que são guardadas as experiências e as vivências, valores que se obtém somente com o tempo. Outros aspectos a serem considerados são: a necessidade de um trabalho de preservação e conscientização em benefício do aproveitamento do patrimônio; a falta de interpretação por parte da população, que ainda não se conscientizou do valor cultural do seu patrimônio nem desenvolveu com ele uma relação interativa, não tendo portanto conhecimento dos benefícios garantidos pela lei municipal que estabelece a proteção desses bens culturais dos cidadãos de Januária.
O reconhecimento de preservação é revelado, por exemplo, em entrevista com a Diretora da Casa da Memória do Vale do São Francisco, Maura Moreira que conta:
“A catedral de Nossa Senhora das Dores foi demolida entre 1971-1972, quando ela iria completar 100 anos de construção. Sua arquitetura era muito rica. Por dentro possuía uma nave grande com corredores laterais sustentados por pilastras em mármore. O altar-mor era muito trabalhado na madeira. No teto havia pinturas e imagens. Possuía três torres, duas laterais e uma no meio um pouco mais alta. A sua demolição foi comunicada pelo bispo da época – Dom João Batista – que anunciou durante uma reunião com as autoridades locais. Os representantes da sociedade e o povo não questionaram a decisão da igreja. Somente uma senhora chamada Diva Pimenta, que morava na capital, contestou a decisão da igreja” (5).
A sociedade local sempre entendeu que o progresso da cidade viria se fossem demolidas as “casas velhas”. As antigas construções não representavam prosperidade para a cidade. As figuras 03, 04 e 05 retratam a Matriz de Nossa Senhora das Dores em épocas distintas, a primeira, quando ainda não possuía a torre central. Na figura 05 a edificação nos anos de 1970, pouco tempo antes de ser demolida.
Entende-se que a demolição da Matriz é para os moradores de Januária uma perda de referência no conjunto de construções do Centro. Contrário a essa idéia de renovação, o artesão Irênio de Souza, nascido em 1919, relembra o tempo em que freqüentava o templo católico em Januária, e de sua migração para a Igreja Maranata, em conseqüência de haver testemunhado em 1940 da demolição da Capela na praça do Rosário (figura 06), da Matriz de Nossa Senhora do Amparo, em 1968, da Igreja da Santa Cruz, em 1971 (figura 07), e da Matriz da Nossa Senhora das Dores, em 1972. “Ai eu perdi a fé, porque, como eles diziam que aquilo era de muita estimação” (6), protestou.
Essa idéia de renovação, de modernidade, tem a ver com a noção de um país moderno que se tentou formar no período do governo de Getúlio Vargas (7). Naquele momento, em 1972, a nova catedral de Januária representaria um franco progresso para a cidade, conforme observado em entrevista respondida por alguns dos moradores. Passados mais de trinta anos, os mesmos moradores se ressentem da demolição da catedral, uma perda que foi antecedida da destruição de três outras Igrejas, como já mencionado; todas demolidas sob o pretexto de risco de cair.
As sucessivas reconstruções também fazem parte da paisagem do cais de Januária, conseqüência das enchentes periódicas, que na maioria das vezes o danificavam. As pilastras do cais Coronel Rocha (figura 09) foram demolidas na primeira metade da década de 1950, aparentemente sob o argumento que a construção de um novo cais seria novidade para a cidade. Outro cais foi construído no lugar (figura 10), e posteriormente, esse cais foi demolido dando lugar ao novo cais – um dique para conter ás águas da enchente – que nos dias atuais se encontra na avenida beira-rio (figura 11). Nota-se que, de década em década, a paisagem urbana sofre modificações lastimáveis. As praças que contornam o porto igualmente sofrem transformações que não respeitam o conjunto histórico do cais (figura 08).
Recentemente, em 2001, o prédio que abrigou o Colégio São João (Figura 12), tradicional estabelecimento de ensino, referência na região e no Estado (durante décadas nele vinham estudar alunos do interior da Bahia e até de Goiás), foi mais uma vítima da demolição. No lugar, se encontra um lote vago, destinado, segundo previsto, à construção de um conjunto de lojas. “É a cultura dos condomínios fechados, das praças privatizadas, do paraíso dos shoppings”, aponta Almandrade (8).
O debate da permanência da fachada estendeu-se por cerca de dois anos. Foi necessário uma ação judicial impetrada pelo próprio Ministério Público, pela qual se desejava assegurar ao menos a permanência da fachada, que é de valor simbólico e histórico, foram derrubados pelo argumento de que não existe o tombamento real do imóvel, apenas seu inventário.
A cidade de Januária possui aspectos históricos relevantes para a história do Estado de Minas Gerais. Nas construções, certos detalhes demonstram a influência que a região recebeu da arquitetura baiana. As características destas influências estão impressas no estilo colonial civil português, nos beirais das casas decorados por rendilhados, esculturas, telhados com acentuado caimento, proporcionando um cômodo entre o forro e o telhado, nos florões, frisos, capitéis e outros detalhes modelados em argamassa nas fachadas de cada casa.
Baseando em exemplos de cidades que realizaram projetos apoiados em incentivos ou isenção fiscal, é possível constatar que recuperações no patrimônio urbano só se deram de fato, a partir da decisão e empenho do poder público, da sociedade, e principalmente das escolas.
Não há porque obstar o crescimento de uma cidade, ele é necessário e bem-vindo, mas as perdas de referências da população em relação a seu passado provocam, por exemplo, a perda concomitante da noção de “pertencimento, princípio e segredo da identidade” (9), que no nosso entendimento passa pela educação patrimonial.
Ana Alaíde Barbosa do Amaral é natural de Januária, graduada em História pelo Centro de Educação Integrada do Vale do São Francisco – Ceiva, e fotógrafa.
notas1
SAINT-HILAIRE, Auguste de. 1779-1853. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.p.347.
2
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares: Revista Projeto História. São Paulo, nº10, p 7-28. dez. 1993.
3
Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relatório de Participação Técnica. Campanha Rio São Francisco Patrimônio Mundial – Expedição Engenheiro Halfeld. 2002.
4
PROTOCOLO CAO-MA Nº 2.457/2.004. Levantamento dos bens culturais de interesse de proteção. Promotoria de Justiça da Comarca de Januária. 2004.
5
Maura Moreira, Entrevista gravada em Januária no dia 24 abr. 2005. 6
LIMA. Ricardo Gomes, O Senhor do Flandres. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2004. p.17.
7
A chamada Era Vargas (1930-1956) impulsionou a atividade industrial, imprimindo uma ideologia de construção de um país próspero. Mas, no entanto, foi nessa mesma Era que se formou a idéia de preservação do patrimônio brasileiro. 8
ALMANDRADE. A cultura e o planejamento da cidade. Disponível em www.culturaemercado.com.br/setor.php?setor=3&pid=3259.
9
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. revista projeto história. São Paulo, nº10, dez. 1993. p.18.
sobre o autorAna Alaíde B. do Amaral é fotógrafa e graduada em História pelo Centro de Educação Integrada do Vale do São Francisco (Instituto Superior de Educação de Januária). Atualmente desenvolve atividades em Educação Patrimonial