Elisabeth Bishop causou incômodo, nos anos 60, ao declarar não ser o Rio uma “cidade maravilhosa”, mas um “cenário maravilhoso para uma cidade”. Desconfio que ela tinha razão. O Rio ainda é hoje, sob muitos aspectos, uma cidade sem dinâmica urbana; com exceção das favelas, que bem ou mal atualizam a paisagem, pouco se distingue além do conjunto edificado das décadas de 40-50. Confesso até que senti uma ponta de vergonha quando uma arquiteta austríaca, depois de circular pela cidade por dois dias, perguntou-me, intrigada: “mas afinal, onde está a arquitetura contemporânea”? Isso foi em meados dos anos 90, e só agora posso responder a ela: na Barra da Tijuca. Pois aí estão os shoppings e hipermercados, os condomínios fechados e as torres avarandadas que resumem bem a expansão urbana do Rio nas últimas décadas. Mas é aí também que surgem os dois edifícios hospitalares da rede Sarah, projetados e construídos nos últimos anos por Lelé, e a polêmica Cidade da Música, de Christian de Portzamparc.
Há muito o que dizer sobre este projeto, cujo ponto mais forte é sem dúvida seu partido arquitetônico. Conforme Portzamparc, esse consiste em “criar uma grande varanda” elevada do solo, enlaçando assim o edifício com a cultura arquitetônica brasileira. Além disso, foi intenção declarada do arquiteto dividir o programa em recintos independentes entre si porém contidos, ao mesmo tempo, numa figura geométrica regular, que se repete nas duas lajes sobrepostas (a 10 e 30 m de altura). Na verdade, a força desse partido - que mantém um diálogo evidente com os palácios de Niemeyer em Brasília - suplanta outros aspectos mais questionáveis do projeto, como o problema da acessibilidade num terreno de condição insular.
Portzamparc, arquiteto francês (o que quer dizer, inscrito numa tradição artística que glorifica a inspiração), projeta para sítios específicos, considerando todas as suas condições ambientais e espaciais. Nesse caso, um sítio extraordinário pedia um edifício igualmente extraordinário. E o arquiteto projetou-o com um impressionante domínio da escala do território. Seu edifício tem a grandeza das obras de engenharia que moldaram o território brasileiro, de Brasília às hidroelétricas. Em termos de escala, material e técnica construtiva, dialoga também com as melhores (e mais espetaculares) realizações da escola de concreto carioca: com suas pontes, viadutos, túneis e obras de sustentação de encostas, mas antes de tudo com a arquitetura de Niemeyer, claro, a quem o projeto é quase uma homenagem. Mas ao mesmo tempo – e nisso Portzamparc segue sua poética própria, que nada fica a dever à arquitetura brasileira -, foi dada toda a atenção à esfera mais íntima associada à fruição da música clássica. A alternância constante entre as duas escalas – a escala pública-territorial e a esfera dos prazeres mais íntimos e pessoais - é muito rápida e quase brusca, de maneira que nos vemos sempre em estado de atenção. É impossível não sentir-se afetado pelo movimento que essa passagem provoca, e difícil resistir à reorganização perceptiva que ela nos abre. A cada passo, a pessoa pára, vira-se, avança ou retrocede, e vê surgir novas formas, massas, perspectivas. Talvez incomode um certo excesso de desenho, a manipulação extremamente inventiva das formas, materiais e detalhes que alimenta o caráter espetacular do projeto, embora correndo o risco de beirar o ornamental. Mas é assim que, de descoberta em descoberta, realiza-se uma experiência muito particular e com certeza irrepetível (claro, porque fenomenológica) desse continuum espacial que não se limita ao perímetro bem demarcado do edifício, mas envolve igualmente o fluxo de trânsito e as vias expressas que circundam o terreno e nele se entrecruzam. No nível da “varanda” (a primeira laje, a 10 m de altura), a sensação é a de sermos varados pelo eixo perpendicular à praia. Aí, a velocidade dos carros, o som, o vento; tudo se soma para nos manter em trânsito. Logo nos damos conta de que boa parte da força do projeto está justamente em nos manter na iminência: de outra escala, outra luz, outro ponto de vista, outra experiência. Tudo o que se vê dali – as montanhas, a linha do horizonte, as torres vizinhas – se vê, afinal, como se fosse pela primeira vez.
[publicado originalmente no blog Posto 12 no dia 23 jan. 2009]
sobre o autor
Ana Luiza Nobre, arquiteta (UFRJ), doutora em história (PUC-Rio), professora de teoria e história da arquitetura no Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio