"Itamarandiba, pedra corridaPedra miúda rolando sem vidaComo é miúda e quase sem brilhoA vida do povo que mora no vale"(Itamarandiba, Milton Nascimento e Fernando Brandt)
Em Minas Gerais somos abençoados com um rico e belo patrimônio arquitetônico que, sobrevivendo através do tempo, conta um pouco de nossa história. Cidades mineiras, como Ouro Preto, Congonhas e Diamantina, dentre tantas outras, são conhecidas não só em todo o Brasil, mas também mundialmente. No entanto, não são apenas essas suntuosas cidades barrocas que compõem o nosso patrimônio. Em pequenas cidades, muitas vezes desconhecidas e infelizmente esquecidas, encontra-se grande parte de nosso acervo cultural. É de uma dessas cidadezinhas, de onde vem minha família, que vou falar.
Itamarandiba, com pouco mais de 30.000 habitantes, situa-se no alto Vale do Jequitinhonha, a cerca de 130 Km de Diamantina. Ali, no Vale, a riqueza cultural contrasta com a pobreza do povo.
A história da cidade nos remete a meados do século XVIII, quando a região foi descoberta em função da exploração de pedras preciosas no norte de Minas. Contudo, não foram as riquezas minerais que garantiram o desenvolvimento do povoado, mas sim a fertilidade da terra. Até hoje as atividades agropecuárias, juntamente com a produção de carvão vegetal, são fundamentais para a economia do município, onde cerca de 40% da população reside na zona rural.
Em 1765 foi construída a capela de São João Batista, que mais tarde daria lugar a Igreja Matriz. Entre o templo e o córrego também chamado São João Batista nasceu o Arraial de mesmo nome, que foi elevado a Distrito de Itamarandiba em 1840 e emancipado em 1862. É justamente nesta porção da cidade e nas suas proximidades que se conformou um singelo Centro Histórico (Imagens 01 e 02), composto no alto pela Igreja Matriz e pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário, e no meio por um casario colonial caracterizado por suas janelas à beira da rua (Imagem 03), acompanhado da pequenina Igreja de Santa Luzia (Imagem 04), construída em 1910. De qualquer lugar da cidade avista-se a Igreja do Bom Jesus da Lapa (Imagem 05), construída em 1964.
A relação de admiração e inspiração que Itamarandiba manteve historicamente com Diamantina foi estreitada pelos tropeiros, homens dignos de orgulho para a comunidade. Na cidade vizinha, mais rica e mais próspera, muitos foram em busca de estudo e de trabalho. Em Itamarandiba foi construída uma “réplica” em menor escala do Mercado Colonial de Diamantina (Imagem 06), chamado Mercado Velho (Imagem 07). Ali arranchavam os tropeiros vindos de outras paragens para vender ou trocar seus produtos com os comerciantes locais. O lugar logo se tornou ponto de encontro e de referência na cidade.
Desconhecido para muitos, e tantas vezes esquecido por seus próprios donos, o patrimônio cultural de Itamarandiba vem se perdendo com o tempo. A ausência de políticas públicas, de programas educacionais e de consultoria adequada contribui para a degradação e, pode-se dizer, destruição do acervo arquitetônico da cidade.
Lembro de alguns exemplos que retratam esta situação. Na década de 1970, o antigo Mercado Velho foi demolido, sendo substituído poucos anos depois pelo chamado Mercado Novo (Imagem 08), um galpão de gosto duvidoso construído na Praça dos Agricultores, às margens do Córrego São João Batista. Em 1998, um incêndio levou ao chão a Igreja Matriz. Em uma intervenção descabida, o forro da Igreja de Nossa Senhora do Rosário foi pintado com tinta látex (Imagens 09 e 10). Quanto ao casario colonial, parte vem se deteriorando, como é o caso do primeiro sobrado da cidade, construído ainda no século XVIII (Imagem 11). Os telhados coloniais vem sendo substituídos por terraços de telha metálica e as esquadrias de madeira por outras de alumínio. Em meio ao conjunto histórico são erguidos edifícios de 04 ou mais pavimentos (Imagem 12). Pergunto: Em uma cidade com baixa densidade demográfica, topografia predominantemente plana que favorece sua expansão horizontal, é necessário verticalizar e descaracterizar o centro tradicional? Respondo: Não, não é, mas é através destas construções e destas estranhas intervenções que muitos enxergam a chegada de uma distorcida “modernidade”.
Hassan Fathy, um arquiteto egípcio, disse que “a arquitetura é o feliz encontro entre os desejos de um povo e as possibilidades de um lugar”. Em Itamarandiba parece que a arquitetura, se resumida a planos e volumes, se esvai no tempo. mas se pensarmos na arquitetura enquanto espacialização e realização de desejos e possibilidades resta-nos reconhecer que lugares se conformam a partir dos sentimentos e dos valores que lhe são atribuídos.
Talvez por isso seja emocionante assistir a uma missa de domingo com minha avó na nova Igreja de São João Batista (Imagem 13). Construída ao longo dos anos de 2002 e 2003, a Igreja não ostenta as belezas e as riquezas barrocas que se perderam com o exemplar anterior, mas guarda a fé e o carinho da população. Não há dúvida de que em Itamarandiba as tradições religiosas são mantidas, assim como os costumeiros encontros nas manhãs de sábado no Mercado Municipal (Imagem 14), ou a marujada (Imagem 15) que anima as festas da cidade. Fica assim o desejo de que a singela arquitetura, que ainda caracteriza a vida de seus habitantes, passe a ser bem cuidada e permaneça para as gerações futuras como um registro da vida e da cultura de um povo.
referências bibliográficas
COSTA, Clemente Gelmo. Os tropeiros de São João Batista. Belo Horizonte: Editora O Lutador, 2004.
PAVIE, Paulo. História de Itamarandiba. Editora UFMG. Belo Horizonte, 1988.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Plano de Desenvolvimento Integrado do Turismo Sustentável do Pólo Turístico do vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte, 2004.
sobre o autor
Ana Carolina Maria Soraggi, Arquiteta e Urbanista, graduada em 2005 pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Planejamento Ambiental Urbano, pelo Instituto de Educação Continuada da PUC Minas, 2007. Chefe de Planejamento Urbano da Prefeitura Municipal de Itabirito – MG e sócia do escritório Spatium Arquitetura e Urbanismo