As cidades são, desde pelo menos a Grécia antiga, o espaço do encontro, da política (construção coletiva do porvir), da troca entre as pessoas e delas com o mundo. As ruas ocupam o papel fundamental de “casa pública”, que me articula com o mundo exterior e com os outros. As ruas são, portanto, lugar de troca (de informações, experiências, produtos) que qualifica a experiência humana na civilização. Se estas são banalidades sobre o tema, fica evidente que elas não se aplicam à realidade de Belo Horizonte e das grandes cidades brasileiras, o que merece análise.
Grande parte do espaço público nas nossas cidades é tomado pelo trânsito de veículos, estas bolhas isolantes. A rua deixa de ser a extensão pública da casa e se torna suporte para o trânsito de “pequenas casas” de vidro e aço, espaços privados sobre quatro rodas. No entanto, diferente das arquiteturas efêmeras “libertadas da sua inércia tectônica” propostas por Simone Cortezão e Welington Cançado (1), os veículos comuns não propiciam o encontro e limitam a troca de experiências. Ou seja, da arquitetura guardam principalmente o aspecto de proteção e isolamento (o que nem sempre funciona), empobrecendo a experiência articulada do contato com os outros.
Sem o espaço da rua para complementação qualificada da vida privada, a gangorra rotineira da nossa civilização, que oscila entre dentro e fora, eu e o mundo, fica cambeta. Nossa experiência pública fica restrita a lugares residuais: os poucos parques, os passeios estreitos, as brechas entre os veículos; ou semi-públicos: os shopping centers; ou digitais: a internet. Embora cada um deles propicie contato social, fica evidente a incompletude e desqualificação da nossa experiência pública na maior parte das grandes cidades brasileiras: não podemos sair de casa e encontrar um lugar qualificado e aberto para a troca (de informações, experiências, produtos) com os outros e com o mundo.
Frente a este cenário, este artigo apresentará 3 situações vivenciadas pelo autor de inversão do uso da rua, a fim de, por comparação, vislumbrar uma discussão sobre o espaço público e a utilização das ruas nas cidades brasileiras.
1. Antuérpia, 20 de setembro de 2008
Sol. As ruas da cidade se enchem de pessoas. Ciclistas, pedestres, skatistas, patinadores, alguém que senta para tomar sol, mesas de bares, vitrines de lojas mostrando as novidades da coleção de inverno. A atmosfera é de troca de experiências, de atividade comum, de vida em sociedade potencializada pela qualidade do espaço.
Isto só ocorre porque grande parte das ruas do centro da Antuérpia foram fechadas para veículos. O único meio de transporte que continua a trafegar em algumas delas é o bonde elétrico, garantindo o acesso ao centro da cidade, mas com baixo impacto aos pedestres. Trata-se de uma interferência pública feita pelo município, a fim de qualificar a experiência dos que moram e visitam a cidade, potencializando também o turismo e o comércio.
Antuérpia faz parte de uma tendência internacional de qualificação do espaço do pedestre e investimento no transporte público, o que foi feito, de alguma maneira, em Curitiba.
2. Bruxelas, 21 de setembro de 2008
O dia internacional “Sem meu carro” fez com que todas as ruas da cidade de Bruxelas fossem ocupadas para atividades sociais, culturais e de lazer. As pessoas caminhavam, pedalavam e patinavam no meio da via pública, topando com parques de diversão, grama artificial e feiras de produtos. Outros desciam com mesas e cadeiras, e faziam o almoço de domingo ao ar livre. A rua voltou a ser, por um dia, o lugar do encontro com o outro, de vivência do mundo em seus diversos aspectos que compartilhamos socialmente.
O evento “Um dia sem meu carro” se tornou internacional, tendo sido feito pela primeira vez na França, há dez anos. Em Bruxelas, é promovido pelo ministério dos transportes, cobre 375 km2 e conta com toda uma programação de atividades, além da participação da polícia para fiscalização e organização. Esta edição foi a segunda do ano na cidade, que já planeja ter 4 dias sem carro em 2009.
3. Belo Horizonte, 13 de junho de 2006
Estréia do Brasil na Copa do Mundo da Alemanha. A partida contra a Croácia, em plena terça feira às 16h, provoca enorme engarrafamento já a partir do meio dia. Com o trânsito difícil, deixo para sair do escritório as 16h05, esperando que o início da partida arrefecesse o ânimo dos motoristas. E eis que, batata: não havia um único veículo circulando desde o Gutierrez até o São Bento, onde fui ver a partida na casa de uma amiga.
A experiência das Avenidas do Contorno e Prudente de Morais sem carros (exceto o meu) permitiu vislumbrar uma gama de ocupações para as ruas de Belo Horizonte. A ausência de carros fez das ruas lugares potenciais, aptos para receber atividades diversas. Ao mesmo tempo, ausência tão radical aponta o engajamento da população com o futebol e a possibilidade desta abertura para o lúdico transbordar para a cultura em geral.
Porvir
As duas primeiras situações, ocorridas em cidades européias, mostram como as políticas públicas podem transformar as cidades, e, no caso, como podem qualificar a vida dos moradores ao propiciar experiências citadinas significativas. Trata-se, portanto, de um esforço deliberado dos governantes para criar espaços de troca e de convivência, tendo como fundo o investimento em transporte público eficiente.
A terceira situação, ocorrida em Belo Horizonte, não foi fruto de um esforço deliberado do governo, mas de uma ação espontânea das pessoas. O engajamento com o futebol (e com o lúdico) tem no Brasil extremo potencial de radicalidade. Em seu novo livro, José Miguel Wisnik aponta, em uma genial combinação de argumentos de Machado de Assis e do filósofo Vilém Flusser, como o futebol constitui no Brasil, ao invés de alienação da realidade, a própria realidade, lúdica e absorvente (2).
O engajamento e abertura para o jogo, presentes de maneira espontânea nos brasileiros, poderiam fazer das nossas ruas espaços maravilhosos de rituais dos mais diversos, fundando novas maneiras de apropriação das cidades para as trocas sociais. A rua de pedestre da Antuérpia e o “Dia sem carro” de Bruxelas seriam tacanhos diante de tamanha pujança social e abertura para a riqueza do inesperado.
Mas não nos enganemos. O livro de Wisnik se chama Veneno remédio: a mesma droga que gera a embriaguez do parágrafo anterior cria o clima permissivo para a ineficiência política, para a falta de compromisso dos governantes com o ambiente urbano, com o bem estar social, enfim, com a vida das pessoas.
Este lado perverso do Brasil, de descompromisso com a população, de apropriação do bem público para interesses privados, pode ser visto no desenvolvimento urbano de Belo Horizonte: uma cidade que quase dobrou sua frota de veículos em dez anos; e que, não obstante, se nega a investir adequadamente no metrô e em áreas públicas de lazer; que faz obras pontuais de alargamento de vias, apenas desviando os engarrafamentos para mais adiante; que constrói viadutos e trincheiras para serem “revitalizados” daqui há dez anos (3).
Não temos política urbana, mas projetos eleitorais. Enquanto não combatermos este veneno, nosso “Dia sem carro” continuará a ser a cada quatro anos, e durante 90 minutos.
notas
1
CORTEZÃO, Simone; CANÇADO, Wellington. Projeto Rotativos. Belo Horizonte, Fiat Mostra Brasil, 2006.
2
WISNIK, José Miguel. Veneno remédio. O futebol e o Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2008.
3
Ver: CANUTO, Frederico; MARQUEZ, Renata; CANÇADO, Wellington. O espaço-cidade e suas muitas palavras. Letras do Café, 2007. <www.cafecomletras.com.br/adm_v3/
UPLOAD/image/LetrasdoCafe08.pdf>.
sobre o autor
Roberto R. Andrés é arquiteto e mestre em teoria da arquitetura pela UFMG